30 junho 2022

A Otan e o dilema da segurança

Expansão da aliança ocidental após o fim da Guerra Fria pode ser pensada sob o prisma do processo através do qual, diante da percepção de uma ameaça externa, os Estados empreendem ações dissuasivas que são potencialmente percebidas como ameaças por seus rivais, resultando em uma espiral de rearmamento que mina a estabilidade e pode precipitar a guerra

Expansão da aliança ocidental após o fim da Guerra Fria pode ser pensada sob o prisma do processo de relações internacionais através do qual, diante da percepção de uma ameaça externa, Estados empreendem ações dissuasivas que são potencialmente percebidas como ameaças por seus rivais, resultando em uma espiral de rearmamento que mina a estabilidade e pode precipitar a guerra

Sede da Otan, em Bruxelas (Divulgação)

Por Carlos López Gómez*

Uma avaliação global do papel da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na história das relações internacionais desde a sua criação é tarefa difícil para o historiador, especialmente se for questionada em termos de luzes e sombras, exigindo do autor da reflexão uma posição de aprovação ou desaprovação da Organização.

A protecção dos Estados-Membros

Deixando de lado o relativismo ético, uma primeira dificuldade é dada pela inevitável coexistência de perspectivas díspares. Assim, no que diz respeito à defesa do sistema capitalista na América do Norte, Europa Ocidental, Grécia e Turquia durante a Guerra Fria, e no que diz respeito à dissuasão de qualquer ataque soviético contra esses países e à manutenção militar e política em relação aos Estados Unidos, certamente falaríamos de uma história de sucesso (lembre-se das palavras prescientes de seu primeiro secretário-geral, Hastings Ismay: a Otan foi criada para manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães para baixo).

O mesmo se poderia dizer da percepção de segurança derivada da adesão à Otan para os Estados que a ela se juntaram em ondas sucessivas após o fim da Guerra Fria, que entendem – e a situação atual na Ucrânia obviamente alimenta essa convicção – que o guarda-chuva Atlântico protege sua segurança de qualquer agressão do exterior.

Os riscos da dissuasão

No entanto, se tomarmos como referência a manutenção da paz mundial no longo prazo (não numa perspectiva idealista, mas assumindo, como Kissinger, que a paz se dá pela estabilidade da ordem), algumas dúvidas podem surgir. Não se deve esquecer que a assinatura do Tratado de Washington de 1949 constituiu mais um passo na perigosa escalada de tensão entre os blocos que deu origem à Guerra Fria, nem que foi a incorporação da República Federal da Alemanha em 1955 que desencadeou a criação, do outro lado da Cortina de Ferro, do Pacto de Varsóvia.

Estudiosos da teoria das relações internacionais falam de um dilema de segurança que surge quando, diante da percepção de uma ameaça externa, os Estados empreendem ações dissuasivas que são potencialmente percebidas como ameaças por seus rivais, resultando em uma espiral de rearmamento que mina a estabilidade e pode precipitar a guerra.

Assinatura do Tratado de Washington pelo presidente dos EUA, Harry Truman, em 4 de abril de 1949 (Wikimedia Commons/Abbie Rowe)

Deste ponto de vista, a história da Otan, especialmente após o fim da União Soviética, constitui um interessante estudo de caso. A dissolução do Pacto de Varsóvia em 1991 e as tentativas de tornar realidade a casa comum europeia defendida por Mikhail Gorbachev, com a entrada dos antigos países socialistas no Conselho da Europa ou a criação da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), bem poderia ter levado ao desaparecimento da Otan, que já perdeu sua razão de ser original.

Uma nova OTAN no pós-guerra fria

Ao contrário, a Otan não só não desapareceu como empreendeu uma transformação ambiciosa que a levou a intervir além de suas fronteiras, configurando-se como uma espécie de polícia mundial. Foi aí que ocorreram as suas primeiras operações de combate militar, as realizadas na Bósnia-Herzegovina entre 1992 e 1995, que obrigaram os sérvios a aceitar uma negociação que pôs fim a essa guerra.

Se as ações na Bósnia tiveram o aval das Nações Unidas e gozaram de amplo consenso internacional, o mesmo não aconteceu com a intervenção na Iugoslávia em 1999, realizada com a oposição da Rússia e da China (cuja Embaixada em Belgrado era, aliás, bombardeada).

Nesse mesmo ano, a Polónia, a República Checa e a Hungria aderiram à Organização na primeira das cinco rondas de expansão a leste que vivemos até agora, e foi aprovado na Conferência de Washington um novo Conceito Estratégico que previa que a Otan assumisse uma responsabilidade que vai além da mera defesa coletiva na gestão de crises e segurança em escala global, papel desempenhado em missões como a desdobrada no Afeganistão entre 2003 e 2014, após a invasão norte-americana, ou na luta contra a pirataria no Oceano Índico entre 2008 e 2016.

Deu mais estabilidade?

Não é surpreendente que a expansão das atividades da Otan, com cerca de 30 missões desde 1990, e sua expansão para os atuais 30 membros, além de acordos de cooperação com tantas outras nações, tenham despertado receios em seus potenciais rivais. Muito tem sido lembrado na Rússia nos últimos meses da promessa –não escrita– feita pelo Secretário de Estado dos EUA James Baker a Gorbachev em 1990 de que a Otan não se estenderia “nem uma polegada” para o leste. Em termos semelhantes também se expressaram o secretário-geral Manfred Wörner e outros líderes ocidentais. Além disso, quando em 1997 foi levantada a possibilidade de dar entrada aos países da Europa Central, o ex-embaixador dos EUA na URSS Jack Matlock desaconselhou-a perante o Senado do seu país como “o erro estratégico mais profundo cometido desde o fim da Guerra Fria”, e George F. Kennan, idealizador da Doutrina Truman em 1947, observou no New York Times que era um “erro trágico” para o qual “não havia razão nenhuma”.

As recentes agressões cometidas pela Rússia (relembremos que, antes da atual invasão da Ucrânia, o mesmo país tinha sido atacado em 2014 e que em 2008 a tinha sido a vez da Geórgia, para não falar das atrocidades cometidas na segunda guerra na Chechénia –em território da Federação Russa– entre 1999 e 2002), entre cujas justificativas foi apresentada a necessidade de a Rússia proteger o seu “cordão de segurança” contra uma Otan hostil, pode muito bem nos fazer duvidar que o novo papel da Aliança tenha resultado numa maior estabilidade e segurança para o mundo. Por outro lado, nada disso justifica minimamente os crimes e excessos do presidente Putin ou questiona a lógica de que, na situação atual, Suécia e Finlândia batam à porta do refúgio atlântico.

Resta resolver a questão de qual teria sido a política externa russa dos últimos 20 anos diante de um Ocidente desotanizado. Não nos é dado experimentar a história isolando variáveis ​​como em um laboratório, mas a experiência recente do governo Trump entre 2017 e 2020, quando, diante das explosões nacionalistas do excêntrico magnata, o vínculo transatlântico parecia pendurado por um fio para grande satisfação do autocrata russo, é desagradável.

O dilema de segurança da OTAN continua vigente.


*Carlos López Gómez é professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidad Nebrija


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em espanhol.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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