18 dezembro 2025

Acordo com União Europeia – Um Mercosul aberto ao mundo?

Para o Brasil, o Acordo deverá abrir caminho para uma economia com ganhos de escala e mais competitiva, e pode resgatar o padrão histórico de nossa política externa equilibrada em três eixos: um Mercosul mais relevante e aberto; um Brics sem deter a dominância na PEB; um engajamento construtivo (mas sempre adiado) com a OCDE

Cúpula de Presidentes dos Estados Partes do Mercosul e dos Estados Associados (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Do efêmero dinamismo à prolongada estagnação

O Mercosul, no contexto regional, demonstra relevância comercial decrescente e visível distanciamento político, enquanto o quadro internacional exibe janela de oportunidade para o bloco, tanto no plano econômico (desglobalização), como na esfera política (União Europeia em busca de alianças alternativas).  

Seus primeiros anos foram de expressiva expansão comercial, seguida, entretanto, de prolongada estagnação que perdura até hoje.  

Tinha os ingredientes para um futuro promissor, mas que nunca se realizou. Hoje surge um horizonte de esperança, com o Acordo Mercosul-União Europeia. Por que deu errado?  Poderá dar certo?

Por que o Mercosul perdeu relevância?

A relativa irrelevância atual do Mercosul fica visível na comparação entre o dinamismo comercial dos primeiros anos e a estagnação atual. Em 1990, o comércio intrazona representava 11% do intercâmbio total dos quatro países. Em 1998 já significava 24%, mas em 2023 involuiu para os mesmos 11%. 

As razões para esse desempenho medíocre são basicamente três: 

  • (i) políticas macroeconômicas insustentáveis – expansionismo fiscal descontrolado, seguido de políticas contracionistas;
  • (ii) protecionismo comercial, com forte resistência a firmar acordos de livre comércio e tímida inserção na economia global; e 
  • (iii) baixa competitividade externa e forte concorrência de produtos chineses.

No momento de sua criação (Tratado de Assunção, de 1991), o Mercosul poderia seguir dois caminhos: Zona de Livre Comércio (ZLC), com liberdade para cada país fixar individualmente sua política comercial; ou União Aduaneira (UA), constituída por uma Tarifa Externa Comum (TEC), com aspiração de evoluir para um Mercado Comum, nos moldes da então Comunidade Econômica Europeia (CEE). 

Opção pelo modelo de união aduaneira – A relação custo-benefício

O Mercosul se constituiu como uma UA, o que contribuiu para fortalecer os vínculos dos quatro países com o processo de integração, provavelmente inexistente na hipótese de uma ZLC. Apesar dessa vantagem política, a UA passou a ter tantas imperfeições (perfurações à TEC, imobilismo negociador externo) que as desvantagens foram maiores que os benefícios. 

A TEC exigia que acordos comerciais fossem negociados em bloco, com aprovação de todos os quatro países. A essa regra se somava o histórico perfil de fechamento das duas maiores economias (Brasil e Argentina) e  ocorreu o inescapável. O mundo negociava centenas de acordos de livre comércio, enquanto o Mercosul se isolava e não ia além de três modestos acordos, com Israel, Egito e Autoridade Palestina. 

‘A essa razão de ordem comercial para a trajetória medíocre do Mercosul, se somava o padrão de políticas macroeconômicas ciclotímicas – ondas expansionistas seguidas de rigor fiscal’

A essa razão de ordem comercial para a trajetória medíocre do Mercosul, se somava o padrão de políticas macroeconômicas ciclotímicas – ondas expansionistas seguidas de rigor fiscal. Como a política fiscal e monetária sempre prevaleceu sobre a política comercial, o resultado foi a lenta,  recorrente introversão do bloco, alimentada por baixa competitividade externa, com exceção do extraordinário desempenho do agronegócio. 

Uma razão adicional para a modesta trajetória foi a politização do Mercosul.  A identificação ideológica com determinados regimes –, a Venezuela de Chávez, por exemplo – passou a ter prioridade sobre o interesse comercial concreto. Houve instrumentalização política das muitas instituições criadas na esfera regional, como a Unasul, em detrimento de medidas comerciais efetivas. 

Esse padrão provocou distorções nos numerosos (mas pouco eficazes) acordos comerciais com países da América Latina e uma postura ortodoxa em relação à Alca – Área de Livre Comércio das Américas. 

‘Eventual acordo bem negociado com a Alca poderia estimular concorrência nas duas economias mais fechadas e maiores do Mercosul. Infelizmente, prevaleceu a introversão, alimentada por uma modesta inserção internacional’

No governo Fernando Henrique Cardoso, as negociações com a Alca eram lentas, mas prosseguiam. Logo no primeiro governo Lula (2005) o processo foi interrompido, em grande medida por um equivocado mix de  protecionismo e nacionalismo. Eventual acordo bem negociado com a Alca – com uso criterioso de instrumento de defesa comercial, como salvaguardas e regras de origem – poderia estimular concorrência nas duas economias mais fechadas e maiores do Mercosul, com ganhos de produtividade. Infelizmente, prevaleceu a introversão, alimentada por uma modesta inserção internacional. 

Oscilações políticas e mudanças de rumo do Mercosul

As oscilações entre regimes de direita e de esquerda no Mercosul – sobretudo Brasil e Argentina – influenciaram as trajetórias de abertura ou fechamento do bloco. Em grande medida o Mercosul foi o desdobramento da intensa integração econômica entre Brasil e Argentina ocorrida após a redemocratização (1985). Uma química harmoniosa no plano político e pessoal entre os presidentes Sarney e Alfonsin muito contribuiu para exitosos projetos de integração entre os dois países. 

Os primeiros anos do Mercosul também testemunharam relação amistosa entre presidentes de perfil conservador e com visão do bloco mais aberta ao mundo – Collor, que introduziu forte rebaixa tarifária no Brasil, e Menem, com uma política fiscal ortodoxa, com viés de maior abertura, na Argentina. 

Mais tarde, nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso, o Mercosul implementou política comercial de abertura gradual, destinada a adaptar uma economia muito fechada à crescente globalização.  No lado argentino continuava Menem, com sua política ultraliberal – Lei de Convertibilidade do peso ao dólar, corte de gastos públicos e liberalização econômica. A tensão entre duas visões de mundo – social-democracia de FHC versus ultraliberalismo de Menem – não impediu a continuidade do avanço do Mercosul. Mas esse processo foi estancado com a grave recessão argentina. A descontinuidade ocorreu no final da década, com a incompatibilidade entre rígida convertibilidade e descontrolada expansão do déficit público. 

‘Os três mandatos iniciais do PT na presidência coincidiram com governos de corte intervencionista na Argentina. Isso contribuiu para um Mercosul introvertido na economia e politizado na América do Sul’

Após essa fase, os três mandatos iniciais do PT na presidência coincidiram com governos de corte intervencionista na Argentina – o casal Nestor e Cristina Kirchner. Isso contribuiu para um Mercosul introvertido na economia e politizado na América do Sul. Essa identidade ideológica Lula-Kirchner-Fernandez fraturou-se com a polarização entre a visão estatizante de Lula III e o ultraliberalismo trumpista de Milei.  

Mercosul-União Europeia – Duas décadas e meia de negociação

A trajetória dos vínculos Mercosul – CEE/UE teve dois momentos de promissora inflexão: 

  • (i) as negociações para a implantação de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca), no início dos anos 2000, que poderiam prejudicar interesses econômicos europeus na América Latina; e 
  • (ii) o atual declínio geopolítico e econômico da UE, triplamente ameaçada – sinais de abandono do sistema de defesa militar norte-americana, expansionismo territorial russo e robusta penetração comercial chinesa.  

O primeiro ponto de inflexão – o processo negociador para a construção da Alca – teve vida breve, em consequência de nossa política de protecionismo nacionalista. Em 2005, o governo Lula retirava o Mercosul das negociações da ALCA, que era a razão maior para a UE se engajar no projetado acordo comercial com o Mercosul. A saída da Alca eliminou a possibilidade de abertura do Mercosul em relação às três grandes economias do Nafta (EUA, Canadá e México). 

Assim, afastado o risco de expansão do Nafta no mercado do Mercosul, desaparecia a principal razão para a Europa continuar engajada num eventual acordo Mercosul-UE. Assim, o processo de abertura do Mercosul sofreu perda dupla.  

‘A segunda inflexão – Acordo Mercosul-UE – poderá concretizar-se nos próximos dias  e surge como nova janela de oportunidade para o Mercosul’

A segunda inflexão – Acordo Mercosul-UE – poderá concretizar-se nos próximos dias  e surge como nova janela de oportunidade para o Mercosul. A razão maior, como antes indicado, é uma Europa triplamente vulnerável, com todas as razões para buscar alianças alternativas e que tem no Mercosul o candidato preferencial. Esse quadro favorável não elimina os núcleos de resistência ao Acordo – França, Áustria, Irlanda, Polônia – que historicamente foram mais robustos que seus defensores – Alemanha, Espanha e Portugal. 

Essa prevalência dos opositores ao acordo poderá ser revertida pelas três razões geopolíticas e econômicas antes apontadas. Além dessas condicionantes, dois pontos específicos aumentam as chances de concretização do Acordo. Primeiro, sua aprovação exige maioria qualificada, que tem como critério o apoio de países cujas populações totalizem 65% ou mais da população da UE. Há fortes indícios de que essa exigência será cumprida. Segundo , a Comissão Europeia ampliou as compensações para os produtores agrícolas europeus afetados pelo Acordo, bem como fortaleceu o sistema de salvaguardas. Isso enfraquece os principais argumentos dos grupos de pressão hostis ao Acordo.

Acordo Mercosul-União Europeia – Um jogo de ganha-ganha?

O Acordo poderá ser um jogo de ganha-ganha para os dois blocos pelas seguintes razões:

  • (i) O Acordo prevê a eliminação de tarifa para 90% do comércio de bens, ao longo de 12 anos. Assim, seus efeitos serão significativos, mas não imediatamente. Os dados globais de população e PIB demonstram o potencial do Acordo. População. UE =452 milhões. Mercosul= 275 milhões. PIB. UE = US$ 19,4 trilhões. Mercosul = US$ 2,9 trilhões;
  • (ii) O Acordo estará entre os maiores já firmados pela UE, que já tem acordos na América Latina com países andinos, Caribe, América Central e México. O Mercosul é a exceção;
  • (iii) Segundo estimativa da revista The Economist (edição de 4 de novembro de 2025), o Acordo poderá gerar aumento de US$56 bilhões nas exportações totais da UE e de Us$ 9 bilhões nas do Mercosul;
  • (iv) O Mercosul foi o grande ausente na multiplicação de Acordos de Livre Comércio (ALCs) dos anos 1990. Em contraste com centenas de ALCs no mundo, o Mercosul firmou apenas três, com Egito, Israel e Autoridade Palestina. Apenas recentemente foram concluídos dois Acordos, com Cingapura e com a EFTA – European Free Trade Area.  Também não participou da vigorosa expansão das cadeias globais de valor. O Acordo poderá contribuir para reverter esse padrão e, assim, promover abertura do Mercosul; e
  • (v) Argentina e Uruguai manifestaram insatisfação com a introversão do Mercosul. O Uruguai iniciou negociações com a CPTPP (Comprehensive  and Progressive Trans-Pacific Partnership). Essa parceria foi a sucessora do TPP (Trans-Pacific Partnership ), lançado por Obama em 2015, com a participação de EUA, Japão, Austrália, Canadá, México e Chile, e da qual os EUA se retiraram em 2017, com Trump. Do lado argentino, Milei já se manifestou favorável a um ALC com os EUA. Um Acordo Mercosul-UE, ao promover abertura do bloco, poderá reduzir essa insatisfação.

Conclusão

O Mercosul foi um projeto econômico e político de inspiração social-democrata. Criado no auge do liberalismo pós-queda do Muro de Berlim, tinha como objetivo econômico adaptar economias altamente fechadas (Brasil e Argentina) a dois processos em curso no mundo – a formação de grandes blocos econômicos (CEE e Nafta),  e a globalização. O método escolhido foi a gradual redução tarifária a cada seis meses e uma União Aduaneira (UA) dotada de Tarifa Externa Comum (TEC).

O objetivo original de abertura de economias altamente fechadas (Brasil e Argentina) foi-se tornando muito difícil por três razões básicas: (i) falta de coordenação de políticas macroeconômicas e de medidas econômicas nacionais destinadas a conter a tendência histórica para políticas populistas; e (ii) oscilação entre regimes políticos de diferentes colorações ideológicas, com visões divergentes a respeito do Mercosul.

‘Os processos de integração na América Latina têm forte componente de política industrial e vínculos com as políticas de Industrialização por Substituição de Importação (ISI). A passagem desse modelo para outro dotado de maior abertura se revelou em grande medida inviável’

Os processos de integração na América Latina têm forte componente de política industrial e vínculos com as políticas de Industrialização por Substituição de Importação (ISI). A passagem desse modelo para outro dotado de maior abertura – como inicialmente visualizado pelo Mercosul – se revelou em grande medida inviável, por dois motivos. O primeiro era o protecionismo alérgico à concorrência destinado a manter privilégios. O segundo motivo tinha certa solidez.  Criticava a abertura econômica em função do elevado custo Brasil – impostos elevados, juros altos, insegurança jurídica e descontinuidade de políticas econômicas. 

O corolário dessa dificuldade estrutural de promover alguma abertura da economia é um Mercosul introvertido, isolado, incapaz de firmar Acordos de Livre Comércio (ALC), sem condições de trilhar a estrada da inserção competitiva na economia global.  

Foi nesse ambiente pouco promissor que surgiu – após 25 anos de frustradas negociações – a grande janela de oportunidade de firmar o sonhado Acordo Mercosul-União Europeia. 

A primeira oportunidade para esse acordo, em meados da década de 2000 – a negociação da Alca –  foi perdida. A segunda está hoje diante de nós. É preciso não a desperdiçar. É essencial adotar políticas econômicas distanciadas do populismo, racionais e sustentáveis. Isso exige não só a redução do custo Brasil, mas um sistema político menos polarizado e uma economia dotada de maior rigor fiscal e de menos privilégios corporativistas. 

‘O Acordo Mercosul-União Europeia tem valor simbólico no contexto de uma ordem internacional multipolar em gestação’

Além das vantagens indicadas, o Acordo Mercosul-União Europeia tem valor simbólico no contexto de uma ordem internacional multipolar em gestação. Representa alternativa – modesta, mas concreta – ao triplo desafio enfrentado pela UE: reduzido engajamento norte-americano no sistema de segurança europeu; expansionismo territorial russo; e invasão econômica da China.  

Para nosso país, o Acordo deverá abrir caminho para uma economia com ganhos de escala e mais competitiva. Além disso, poderia resgatar o padrão histórico de nossa política externa, equilibrada em três eixos: um Mercosul mais relevante e aberto; um Brics sem deter a dominância na PEB; um engajamento construtivo (mas sempre adiado) com a OCDE. Em caso de eventual ingresso nessa Organização, o Brasil seria o único país na condição singular de pertencer ao Mercosul, ao Brics e à OCDE – atributo com óbvias vantagens comparativas.   

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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