‘Adolescência’ mostra os perigos do culto à masculinidade violenta
O ataque ao gênero não é uma cortina de fumaça para desviar atenção de alguma pauta mais importante. Ela é central para o fascismo contemporâneo, já que o culto à masculinidade violenta está nas falas de líderes políticos e CEOs das big techs e nas políticas anti gênero levadas a cabo na esfera pública e privada

Em 2020, a série chilena La Jauría (A Matilha) mostrava uma trama em que homens adultos recrutavam meninos por meio da Deep Web para transformá-los em misóginos criminosos. Num desses jogos em que o participante precisa cumprir uma série de missões, os garotos formavam uma matilha, com quem se deveria desenvolver laços de lealdade. Posteriormente isso evoluía para missões mais perigosas, como abusar de mulheres. Na série Adolescência, sucesso da Netflix, o discurso que promove ideais de masculinidade violenta aparece como algo bem mais mais acessível e difuso e, talvez por isso, mais perigoso.
Na trama um garoto de 13 anos é preso acusado de matar uma colega a facadas. Conforme as investigações avançam, é revelado que a motivação do crime envolve vazamento de nudes, técnicas ensinadas por “artistas da cantada”, comentários vexatórios em redes sociais e ideias masculinistas sobre popularidade e probabilidade de conquistar mulheres. Basicamente os conteúdos que circulam na “machosfera”, bolha de internet de conteúdos que a princípio ensinam homens a se aprimorar fisicamente e obter sucesso financeiro. São discursos antifeministas que, não raro, propagam o desprezo ao sexo feminino.
‘Influenciadores dividem o mundo em duas metades, masculina e feminina. Cada uma seria uma espécie de bloco monolítico heteronormativo, em que os padrões de comportamento e valores seriam os mesmos para todos os integrantes de cada metade’
Termos como masculinismo e suas subdivisões (incell, red pill, MGTOW) se popularizaram na imprensa brasileira quando o coach Thiago Schutz, conhecido como “calvo do Campari” passou de meme a caso de polícia. Acumulando milhares de seguidores em plataformas como Instagram, Youtube, TikTok, entre outros, esses influenciadores dividem o mundo em duas metades, masculina e feminina. Cada uma seria uma espécie de bloco monolítico heteronormativo, em que os padrões de comportamento e valores seriam os mesmos para todos os integrantes de cada metade, especialmente no tocante a relacionamentos sexuais e afetivos.
Evidentemente essa tentativa de dividir e explicar o mundo por meio de categorizações simplórias baseadas no sexo não foi inventada pelo masculinismo e nem se restringe às suas bolhas de internet. Ideias de que homens e mulheres possuem naturezas completamente diferentes já foram exploradas em best-sellers baseados em pseudociência como Homens são de Marte, mulheres são de Vênus (1992) e estão na boca dos líderes e entusiastas da extrema-direita no mundo e também na do tiozão do zap.
‘Com ou sem celular o jovem continua imerso em um cultura em que a masculinidade tóxica não é celebrada apenas por coaches e influenciadores digitais, mas sobretudo pela política’
Quando séries como essa ou casos reais de meninos matando meninas chegam ao debate público a necessidade de prestar atenção no que os filhos fazem ao celular logo é lembrada. Contudo, é um tanto ingênuo imaginar que prevenir assassinatos cometidos por adolescentes é uma tarefa que pode ser executada apenas com pais mais vigilantes. Com ou sem celular o jovem continua imerso em um cultura em que a masculinidade tóxica não é celebrada apenas por coaches e influenciadores digitais, mas sobretudo pela política.
Em defesa das crianças, mas nem sempre
Como já escrevi em uma coluna anterior, o ataque ao gênero não é uma cortina de fumaça para desviar atenção de alguma pauta mais importante. Ela é central para o fascismo contemporâneo, já que o culto à masculinidade violenta está nas falas de líderes políticos e CEOs das big techs e nas políticas anti gênero levadas a cabo na esfera pública e privada.
Além de pais mais vigilantes, evitar casos como o retratado na série Adolescência requer também ambientes em que seja possível debater e exercer outras formas de masculinidade. Mas isso se torna particularmente complicado quando a dominação do feminino pelo masculino é dogma das religiões cristãs e na sua versão laica, o mundo das tradwifes de rede social (porque se fosse tradicional mesmo nem rede social era pra ter).
‘A mobilização conservadora é tolerante com líderes religiosos que pregam “cura” pare homossexualidade, mas pede que vítimas de violência e abuso sexual perdoem seus agressores‘
A militarização das escolas públicas parece não estar ajudando muito no tocante a rever a valorização da masculinidade violenta. A falta de uma discussão ampla e consistente sobre gênero e sexualidade nas escolas também não. As duas coisas existem por causa da mobilização conservadora, que é tolerante com líderes religiosos que pregam “cura” pare homossexualidade, mas pede que vítimas de violência e abuso sexual perdoem seus agressores.
Outra causa dos conservadores é a flexibilização das regras para o porte de armas. Porém os mesmos consideram a regulação da internet como uma violação à liberdade de expressão e leis de mercado. Ambos facilitam o contato de adolescentes com discursos de ódio ao mesmo tempo que facilitam o acesso aos meios para cometer crimes.
Por fim, cabe lembrar que as denominações religiosas que mais crescem no Brasil, em meio ao seu projeto de ocupar cargos políticos, têm se realizado a realizar cultos em escolas laicas. Trata-se de uma visão de mundo que explicitamente prega a submissão da mulher ao homem, cuja criação do mundo e suas criaturas é totalmente atribuída ao masculino, enquanto tudo o que há de ruim é responsabilidade de uma mulher que deu ouvidos a uma cobra falante.
Antes tarde do que mais tarde
Quando o masculinismo aparece no debate público, não raro ele é apresentado como uma reação ao feminismo – como se discursos misóginos e violência contra a mulher fossem invenções recentes. Conforme afirma Virginie Despentes, autora de Teoria King Kong (2016), a organização da coletividade continua sendo uma prerrogativa masculina. Não obstante, homens que denunciam com virulência as injustiças sociais ou raciais são mais compreensivos quando se trata de violência machista, tratando o debate de gênero como algo secundário ou sem urgência.
‘O que vemos abordado em ‘Adolescência’ é essencialmente um problema de gênero, porque o modelo dominante de masculinidade é violento’
Porém, o que vemos abordado em Adolescência é essencialmente um problema de gênero, porque o modelo dominante de masculinidade é violento. Nesse sentido, mais do que estar atento ao que os adolescentes fazem no celular, é preciso alertar que a tradição machista é uma armadilha.
Ser homem de verdade, dentro dos padrões masculinistas, exige repressão das emoções, ter vergonha da sua vulnerabilidade, não saber pedir ajuda, mostrar agressividade, ter sucesso social para poder pagar as melhores mulheres. Desmontar esse modelo requer um trabalho coletivo.
Discutir gênero de forma ampla nas escolas. Defender o Estado e o ensino laicos. Criar mecanismos de moderação de conteúdo nas redes, agilidade para que conteúdos com discurso de ódio ou que praticam alguma forma de bullying sejam retirados do ar. Produzir algoritmos melhores, limitar o uso das IA para que elas não sejam usadas para produzir fakes de pornografia. Hoje o mundo está exatamente na contramão disso. Mas ainda é tempo para mudar.
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
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