27 maio 2024

Aquecimento global – conta dos eventos extremos será paga pelas futuras gerações

O relatório mais recente do IPCC sobre Adaptação, Impactos e Vulnerabilidade (2022) indicou que as crianças de 10 anos de idade ou menos em 2020 sofrerão um aumento de quase quatro vezes em eventos extremos, se o aquecimento global for de 1,5°C até 2100; e um aumento de cinco vezes, se o aquecimento chegar a 3°C nesse período

Inundação em Porto Alegre (Foto: Gustavo Mansur/Secom RS)

Por Mercedes Bustamante e Valério Pillar*

Na catástrofe vivida pela população do Rio Grande do Sul, convergem fatores globais, regionais e locais que resultam majoritariamente de ações humanas em interações insustentáveis com processos que regulam o funcionamento biofísico de nosso ambiente. A chamada ciência da atribuição objetiva determinar quais eventos recentes podem ser explicados ou vinculados a uma atmosfera em aquecimento e não resultam simplesmente de variações naturais.

Evidências indicam que o aquecimento global contribuiu significativamente para a intensidade sem precedentes das chuvas, e que a falta de medidas de adaptação, em escalas regional e local, agravou os impactos negativos da precipitação concentrada em poucos dias e das cheias na região hidrográfica do Guaíba.

Fatores globais

A concentração de precipitação sobre o sul do Brasil está relacionada à atuação do fenômeno El Niño, aquecimento superficial das águas do Pacífico da América do Sul, mesmo que as condições fossem menos intensas que no segundo semestre de 2023. Apesar do El Niño ser uma fase climática que ocorre naturalmente, estudos recentes sugerem que o aquecimento global gera eventos de El Niño mais fortes.

Os extremos atuais da temperatura da superfície do mar provocados pelo El Niño se intensificaram em cerca de 10% em comparação com os níveis anteriores a 1960. Adicionalmente, a frequência de eventos extremos do El Niño poderia dobrar no próximo século devido ao aquecimento mais rápido da superfície do leste do Oceano Pacífico provocado pelo aumento da temperatura global.

Fatores regionais e locais

As mudanças na cobertura e uso da terra afetam o aquecimento pelas emissões de gases de efeito estufa e também pelas alterações nas interações entre a atmosfera, a vegetação e o solo. As profundas alterações das paisagens naturais, as transformações em larga escala da cobertura vegetal, e a ocupação rural e urbana desordenada do território resultam na degradação das funções em bacias hidrográficas e potencializam os impactos de eventos climáticos extremos.

Nesse quadro, a mitigação (redução das emissões de gases associados ao aquecimento global) e a adaptação (ações para reduzir os impactos negativos da mudança do clima) estão fortemente associados.

A Bacia Hidrográfica é uma unidade de planejamento e gestão ambiental, adequada ao planejamento e gerenciamento da paisagem por integrar sistemas ecológicos e hidrológicos, além de considerar as mudanças nos padrões de uso da terra. O manejo tecnicamente adequado das bacias hidrográficas, com participação social, é vital para o enfrentamento de sua situação crítica e para construção de resiliência diante da realidade de eventos extremos mais intensos e frequentes.

Legislação descumprida e desconstruída

Os primeiros marcos legais de proteção das águas (Código das Águas) e da vegetação (Código Florestal) são da década de 30 do século passado e foram ajustados a novas perspectivas ao longo do século XX. A Constituição Federal de 1988 tornou todos os recursos naturais bens públicos (incluindo às águas) e de uso comum, cabendo à União o dever de legislar sobre o domínio dos recursos naturais e garantindo à população o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A vegetação nativa presente nas bacias hidrográficas é regulada pela Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei Federal 12.651/2012, que estabelece os critérios de proteção. A recuperação de áreas degradadas, proteção de nascentes e de áreas de recarga, conectividade de remanescentes de vegetação (por exemplo, reservas legais em propriedades privadas), e a exigência de autorização legal para a supressão da vegetação nativa florestal e não florestal, são essenciais para a integridade das bacias hidrográficas e a manutenção de seus benefícios para a sociedade.

Outros instrumentos de gestão ambiental – como o Plano Diretor, Zoneamento Ecológico Econômico, Zoneamento Ambiental, Zoneamento Agrícola deveriam ordenar o uso e cobertura da terra, garantindo a sustentabilidade.

Na Região Hidrográfica do Guaíba, a mais afetada pela catástrofe, dados do MapBiomas mostram que, entre 1985 e 2022, 1,4 milhão de hectares de vegetação nativa foram convertidos, sobretudo para uso agrícola. A maior dessa perda (81%) foi de campos nativos, transformados sobretudo em lavouras de soja e sem a devida autorização legal. Tampouco, as necessárias reservas legais foram estabelecidas.

Além de estarem sendo descumpridos, arcabouços legais de proteção às funções de ecossistemas estão sendo desconstruídos de forma brutal e em oposição a um robusto conjunto de evidências científicas e à realidade da mudança do clima que se impõe.

A conta ficará para as futuras gerações

O falacioso discurso que contrapõe a conservação de nossos ecossistemas e seus povos ao desenvolvimento social e econômico impede a construção de alternativas que conciliem usos e valores e que garantam condições de bem-estar à sociedade brasileira e suas futuras gerações.

O relatório mais recente do IPCC sobre Adaptação, Impactos e Vulnerabilidade (2022) indicou que as crianças de 10 anos de idade ou menos em 2020 sofrerão um aumento de quase quatro vezes em eventos extremos, se o aquecimento global for de 1,5°C até 2100; e um aumento de cinco vezes, se o aquecimento chegar a 3°C nesse período. Em contraste, uma pessoa com 55 anos em 2020 não sofrerá esses impactos em seu tempo de vida restante em nenhum cenário de aquecimento.

A conta mais cruel nas próximas décadas será paga por nossas crianças e jovens e não por nossos legisladores e tomadores de decisão que deveriam proteger os direitos a um ambiente ecologicamente equilibrado como preconizado por nossa Constituição.

Ciência: o caminho para novas trajetórias

Os avanços do conhecimento científico e de novas tecnologias nas últimas décadas, como o sensoriamento remoto e observações em larga escala de processos ecológicos, permitem monitorar as condições dos biomas brasileiros. As evidências do monitoramento são claras ao demonstrar quais são os vetores e a velocidade dos processos de degradação.

O Brasil foi pioneiro no monitoramento da perda de vegetação nativa pelo uso de satélites e também na transparência desses resultados por meio de sua divulgação pública. Hoje, redes de instituições e entidades da sociedade civil atuam também no fornecimento de importantes informações sobre nosso território, incluindo alertas precoces que permitem uma atuação rápida do poder público, quando o mesmo demonstra interesse em coibir ilícitos ambientais.

Contamos também com infraestruturas de informação sobre a biodiversidade que organizam e armazenam milhares de registros e dados sobre a distribuição de espécies da flora e fauna. Redes de pesquisa acompanham os impactos das mudanças ambientais sobre nossa biodiversidade, que hoje é também afetada, mesmo em áreas protegidas. A biodiversidade é um dos fatores de estabilidade dos ecossistemas e de suas funções, que determinam os serviços ambientais essenciais para nossa saúde e seguranças hídrica, alimentar e energética.

Há alternativas viáveis para novas trajetórias com foco na sustentabilidade e que, absolutamente, não passam pelo negacionismo científico e ambiental, componentes do atraso e da falta de compromisso ético. Apesar de ainda termos muito o que conhecer e pesquisar, o que hoje já conhecemos por meio da ciência e de outros sistemas de conhecimento é suficiente para apontar de forma contundente que nenhuma sociedade que despreza a proteção da natureza conseguirá garantir um futuro a suas populações. Somos imersos e dependentes do mundo natural.


Mercedes Bustamante é professora do Departamento de Ecologia, Universidade de Brasília (UnB)

Valério Pillar é professor do Departamento de Ecologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

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