Assim caminha a humanidade
Pressão política e econômica dos EUA contra Índia e Brasil reflete a dificuldade em aceitar a transferência do eixo da globalização do Ocidente Central para a Ásia

Um jornalista do Jornal Nexo procurou-me para conversarmos sobre a questão das tarifas de 50% que Donald Trump impôs à Índia para tentar impedir as importações daquele país de petróleo proveniente da Rússia. Juntamente com o Brasil, elas se encontram entre as maiores impostas pelos americanos a seus parceiros comerciais.
Como sabemos, a razão levantada por Washington tem viés político, dentro do alegado esforço de Trump de subverter a economia da Rússia para forçar Vladimir Putin a acabar com a guerra da Ucrânia. A resposta de Nova Delhi não tardou: a chancelaria indiana descreveu a decisão como “injusta, injustificável e irrazoável”, acrescentando que as importações são baseadas em fatores e preços do mercado e têm por objetivo manter a segurança energética da sua população.
‘O substrato de ambas as pressões tem viés político: no nosso caso o “fator Bolsonaro” e o ministro Alexandre de Moraes; no da Índia, a guerra da Ucrânia’
No mesmo “imbróglio” nos encontramos, nós brasileiros: como percebemos, o substrato de ambas as pressões tem viés político: no nosso caso o “fator Bolsonaro” e o ministro Alexandre de Moraes; no da Índia, a guerra da Ucrânia.
A este último respeito, ainda que o objetivo seja numa primeira leitura, encomiável, à luz das tergiversações do presidente americano com relação à questão ucraniana (“remember” a sua entrevista desastrosa com Volodymyr Zelensky, no Salão Oval, e do vexame a que expôs o presidente Cyril Ramaphosa, da África do Sul, durante a visita deste à Casa Branca, quando fez acusações de que estaria ocorrendo uma “limpeza étnica” contra brancos na África do Sul), fica evidente o quão errática é a sua percepção de mundo.
‘Trata-se, no nosso caso, de uma injustificável ingerência nos nossos assuntos internos’
Trata-se, no nosso caso, de uma injustificável ingerência nos nossos assuntos internos (cf. Constituição do Brasil – artigo 4º.).
A conversa derivou, então, para o ímpeto dos americanos de Donald Trump em tentar moldar e subjugar as agendas dos países ao que consideram valores universais “American style”. Discutimos, por extensão, sobre as diferenças de percepção de mundo – e , por corolário, das relações – entre o Ocidente e o Oriente: este é um tema que tenho “à flor da pele”, em razão da minha vivência na região!
Neste ponto, afirmei que, para mim, a primeira premissa é sabermos o quanto a nossa matriz civilizacional contemporânea – brasileira e miscigenada – atende aos valores do que eu chamaria do “Ocidente central”, e o quanto os compactuaríamos e compartilharíamos com a nossa cultura e ancestralidade: em suma, com o substrato africano e indígena da nossa matriz, que apesar de toda a influência da cultura europeia e americana, nos tempos mais recentes, e do negacionismo de parte da nossa elite, é fundamental para nos entendermos, até em razão dos conflitos que geram.
‘O diagnóstico mais importante – e difícil de ser assimilado por muitos: a transferência do eixo da globalização do Ocidente Central para a Ásia’
Em seguida, mencionei o que, para mim, é o diagnóstico mais importante – e difícil de ser assimilado por muitos: a transferência do eixo da globalização do Ocidente Central para a Ásia. Para mim, este fator está-se tornando cada vez mais evidente.
Senão vejamos:
- 1) segundo o Fundo Monetário Internacional, entre as dez maiores economias mundiais em termos de PIB nominal, três são asiáticas: China (2ª.); Japão (4ª.) e Índia (5ª.);
- 2) em termos de propriedade intelectual, que define o status da pesquisa tecnológica, segundo a Organização Internacional da Propriedade Intelectual (OMPI) os países que mais registraram pedidos de patentes de propriedade intelectual no ano passado, foram China, Estados Unidos, Japão, República da Coreia e Alemanha, sendo que a China lidera em vários indicadores, inclusive desenhos industriais e marcas, acompanhada do Japão e da Coreia do Sul;
- 3) entre os maiores exportadores mundiais estão a China (1º), o Japão e a Coreia do Sul;
- 4) a Índia e a China, nesta ordem, possuem as duas maiores populações do planeta – 2,8 bilhões conjuntamente – e a Índia, que possui a população mais jovem do mundo (mais da metade do seus 1,4 bilhão tem menos de 25 anos de idade), é um dos países que registraram maior crescimento nos últimos anos.
Fatos são fatos. Como lidar com esta realidade, tão longe geograficamente de nós e tão parecida, em definitivo, em termos de valores civilizacionais?
Na verdade, está sendo muito complexa a aceitação pelo Ocidente de que a dinâmica do mundo mudou e que é necessário conviver com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais: o Oriente tornou-se fator decisivo na economia/política globalizada.
Esta presença, crescente e irreversível, instiga sentimentos ambíguos: de um lado, respeito pelo despertar de um gigante de história muito antiga e, de outro, temor das consequências que esta presença possa causar.
‘Acostumado a exportar seus valores e a impor seus conceitos civilizatórios como verdades absolutas e perenes sobre essa metade da massa humana, o Ocidente não tem sabido lidar com este novo fenômeno’
Mais que tudo, evidencia o despreparo para lidar com esta realidade. Acostumado a exportar seus valores e a impor seus conceitos civilizatórios como verdades absolutas e perenes sobre essa metade da massa humana, o Ocidente não tem sabido lidar com este novo fenômeno.
Estaríamos no umbral de uma nova hegemonia, compartilhada desta vez entre Estados Unidos (ainda…), China e Índia? Quando eu nasci, em junho de 1945, a Grã-Bretanha era (“remember…the sun never sets on the British Empire”?…) o hegemon mundial; mas já não mais: exausta no final da II Guerra ela cedia o bastão para os Estados Unidos e a União Soviética (passei grande parte da minha carreira envolto nas questões da Guerra Fria…); em 1991, desfez-se a União Soviética, e os Estados Unidos se consolidaram como o único hegemon, até que no início deste século surge a República Popular da China numa disputa compartilhada.
E as relações entre os países seguem o caminho atribulado da globalização. Então, ficam a pergunta e o repto: já está(ão)-se conformando o(s) próximo(s) hegemon(s)?
Acima de tudo, fica o desafio: e nós, Brasil, para onde vamos?
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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