Astrud Gilberto divulgou a bossa nova para o mundo, mas teve pouco reconhecimento no Brasil
‘Embaixadora’ da bossa nova, cantora ajudou a catapultar o estilo para o primeiro plano da música popular. Apesar da sua da fama global, ela foi retratada no Brasil como uma ‘garota de sorte’, que conquistou a fama da noite para o dia simplesmente por estar no lugar certo, com o homem certo, na hora certa
‘Embaixadora’ da bossa nova, cantora ajudou a catapultar o estilo para o primeiro plano da música popular. Apesar da sua da fama global, ela foi retratada no Brasil como uma ‘garota de sorte’, que conquistou a fama da noite para o dia simplesmente por estar no lugar certo, com o homem certo, na hora certa
Por Mario Higa*
Astrud Gilberto nunca imaginou que seria uma “embaixadora” da bossa nova, gênero musical brasileiro admirado por amantes da música em todo o mundo.
Segundo Astrud, que morreu em 5 de junho de 2023, aos 83 anos, ela não esperava participar da gravação de 1964 de Garota de Ipanema, música pela qual é mais lembrada.
Na época da gravação, ela nem era cantora profissional.
Mas a voz suave de Astrud, – quase um sussurro, sensual e límpida – ajudou a catapultar a canção, a cantora e a bossa nova para o primeiro plano da música popular internacional.
No entanto, apesar da fama global, Astrud nunca recebeu no Brasil o reconhecimento que seu talento merecia. Na única apresentação individual que fez no país, em 1966, chegou mesmo a ser vaiada.
Quando a Bossa Nova emplacou
Astrud Gilberto e Garota de Ipanema marcaram uma virada histórica na bossa nova.
O gênero havia surgido no Rio de Janeiro em 1958, quando João Gilberto inventou no violão uma batida nova, criada a partir do samba tradicional. Comparada ao samba, a bossa nova apresentava um ritmo mais relaxado, com ênfase em progressões harmônicas e melodias, cuja sofisticação, João Gilberto e Antônio Carlos Jobim haviam buscado no jazz americano.
Em 1963, o saxofonista americano Stan Getz convidou João Gilberto e Jobim para gravar um álbum de jazz-bossa em Nova York.
Naquela época, o jazz nos Estados Unidos estava perdendo popularidade para outros gêneros, como o rock ‘n’ roll, que atraía mais fãs. Getz, em busca de uma nova sonoridade, obteve enorme sucesso com seu disco de 1962, Jazz Samba, o único álbum de jazz a alcançar, então, o primeiro lugar nas paradas da Billboard. A incursão na bossa nova com duas estrelas consagradas do gênero seria seu próximo passo.
A essa altura, muitos amantes da música americana já estavam algo familiarizados com o novo estilo. Antes de Jazz Samba de Getz, o filme franco-brasileiro Orfeu Negro, de 1959, com o tema Manhã de Carnaval, havia apresentado o gênero para o público internacional – o filme ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro nos EUA.
O cantor de jazz Tony Bennett também foi um dos pioneiros na divulgação do gênero. Em 1961, voltou para casa de uma viagem ao Rio de Janeiro com uma batelada de discos de bossa, a que Getz teve acesso, e que o inspirou a colaborar com algumas estrelas brasileiras do gênero.
João Gilberto chegou ao estúdio de gravação em Manhattan, para gravar com Getz, acompanhado de sua esposa, Astrud, então com 22 anos.
O que aconteceu a seguir é contestado, com Getz reivindicando o crédito por sugerir que Astrud cantasse em inglês duas faixas: The Girl From Ipanema, de Jobim e Vinicius de Moraes, e Corcovado, ou Quiet Nights of Quiet Stars, de Jobim. Além do português, Astrud falava inglês (ao contrário de João Gilberto) e algumas outras línguas.
Astrud não era na época, como já dito, uma cantora profissional, embora já tivesse se apresentado em alguns clubes do Rio de Janeiro. No entanto, ela possuía uma voz e um modo de cantar que combinavam com o novo estilo. Antes do surgimento da bossa nova, o cancioneiro brasileiro era dominado por uma forma de cantar quase operística em que o cantor impunha ao público uma imagem de figura grandiosa. Na revolução silenciosa e minimalista da bossa nova, a personalidade do cantor é subjugada e, em seu lugar, a música e a melodia vêm ocupar o centro do palco.
Nesse estilo, a quase sussurrante voz de Astrud interpreta The Girl From Ipanema e Quiet Nights of Quiet Stars. Os solos de saxofone de Getz são igualmente sutis. Não há nada chamativo. É tudo sobre a musicalidade da melodia, do ritmo e da harmonia.
Ainda assim, os vocais contidos e o sax, juntamente com a melodia fluida, provaram ser uma mistura potente. Quando a faixa foi lançada como single em 1964 – com os versos em português de João Gilberto cortados – tornou-se um sucesso mundial. Hoje, The Girl From Ipanema é a segunda música popular mais gravada de todos os tempos – superada apenas por Yesterday, dos Beatles.
O álbum em que apareceu, Getz/Gilberto, também se tornou mundialmente famoso, o qie motivou a prodição de uma sequência ao vivo, Getz/Gilberto #2, um ano depois.
O Brasil vira as costas
Mas o “Gilberto” do título do disco é o de João, e não o de Astrud.
João Gilberto recebeu US$ 23 mil pela sessão de dois dias de gravação de Getz/Gilberto. O próprio Getz embolsou perto de um milhão de dólares com as vendas. Astrud, por sua vez, recebeu apenas US$ 120, que era o mínimo exigido pelo sindicato dos músicos de Nova York por um dia de trabalho. Ela também não apareceu nos créditos do álbum original.
À medida que a popularidade da música e do disco cresciam, Getz, inclusive, teria ligado para Creed Taylor, chefe da Verve Records, para garantir que Astrud não fosse incluída na parcela dos royalties.
Apesar do sucesso, Astrud foi retratada no Brasil como uma “garota de sorte”, que conquistou a fama da noite para o dia simplesmente por estar no lugar certo, com o homem certo, na hora certa.
Ela se divorciou de João Gilberto em 1964, e a imprensa brasileira a culpou pelo fim do casamento, em meio a rumores – nunca confirmados – de um caso com Getz. Sem dúvida, a misoginia da cultura brasileira da época desempenhou um papel nessa empresa difamatória. O filho dela, Marcelo, mais tarde relembrou em entrevista que “o Brasil deu as costas” à mãe, acrescentando que “ela alcançou fama no exterior numa época em que isso era considerado traição pela imprensa”.
Astrud Gilberto teve uma carreira de sucesso, lançando 17 álbuns originais de 1964 a 2002 e colaborando com figuras como Quincy Jones, Chet Baker, Stanley Turrentine e George Michael.
Apesar desse sucesso, ela nunca foi aceita como uma estrela em seu país natal. Nisso, ela não estava sozinha: o Brasil raramente acolhe brasileiros que chegam ao estrelato morando no exterior, principalmente nos Estados Unidos. Antes de Gilberto, a cantora Carmen Miranda recebeu a mesma frieza. E os brasileiros também desdenharam (e ainda desdenham) de Sérgio Mendes, uma lenda da música brasileira, que alcançou a fama internacional no final dos anos 1960.
Astrud Gilberto acabou se apresentando apenas uma vez em seu país de origem depois do estrelato e de emigrar para os Estados Unidos em meados da década de 1960. Apesar de uma carreira de quatro décadas, Astrud foi e é vista por muitos no Brasil apenas como a esposa de João Gilberto – a garota que teve sorte com aquele disco de sucesso.
*Mario Higa é professor de estudos luso-hispânicos na Middlebury.
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Sua tradução foi revisada pelo próprio autor.. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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