Bem-vindos à Era de Ouro
Estamos nos dias iniciais do segundo governo de Donald Trump. São dias de decepção. A “Era de Ouro” à qual ele se referia antes das eleições não passou de retórica de campanha. A taxa de inflação, próxima dos 3%, está mais alta do que há seis meses, e o mercado acionário caiu diante da perspectiva […]
Estamos nos dias iniciais do segundo governo de Donald Trump. São dias de decepção. A “Era de Ouro” à qual ele se referia antes das eleições não passou de retórica de campanha. A taxa de inflação, próxima dos 3%, está mais alta do que há seis meses, e o mercado acionário caiu diante da perspectiva de aumento de preços, como resultado das tarifas impostas a Canadá, China e México. São dias de apreensão crescente. O eufemismo do clichê segundo o qual Trump seria um presidente “pragmático” foi substituído pela constatação de que uma administração autoritária e corrupta está conduzindo um ataque à democracia.
Esse ataque pode ser observado em cinco áreas distintas. Na primeira, Trump conduz um expurgo nos ministérios mais poderosos, transformando a lealdade pessoal no critério mais importante de indicação para cargos de alto escalão. Com isso, o presidente pode usar esses ministérios para perseguir e intimidar a oposição. Trump e seu governo também tentaram maximizar o alcance do executivo. Ao adotar a teoria de um “executivo unido”, eles usurparam os poderes constitucionais do congresso nacional, com a colaboração do presidente da câmara e de membros acuados do próprio Partido Republicano. Na segunda, diante das inevitáveis contestações jurídicas, o governo demonstrou desprezo pelos tribunais, sinalizando a intenção inequívoca de mentir, desafiar e desviar do judiciário.
Na terceira área, o governo tenta intimidar e controlar a imprensa. Na quarta, o presidente usa o Departamento de Eficiência do Governo (DOGE, na sigla em inglês) para atingir o funcionalismo público federal. Comandado pelo bilionário Elon Musk, que não foi eleito, o DOGE está obtendo informações sensíveis de forma ilegal, destruindo agências públicas e realizando demissões em massa de servidores. Finalmente, o governo Trump reverteu a política americana para a Ucrânia, numa medida que gerou críticas e protestos.
Os “ministérios poderosos” são aqueles que põem em prática medidas de coerção, investigação e perseguição, e que podem ser usados contra supostos inimigos. Entre eles estão o gigantesco Departamento de Defesa, com orçamento de US$ 850 bilhões, que abarca as Forças Armadas e as agências de inteligência militar; o Departamento de Justiça, liderado pela Procuradora-Geral da República, que abriga diferentes procuradores e o FBI; e o Departamento de Segurança Interna. Graças à maioria republicana no Senado, Trump garantiu aprovação de seus indicados para o comando desses órgãos.
Trata-se de uma turma estranha. Cada um à sua maneira, Tulsi Gabbard (diretora de inteligência nacional), Kash Patel (diretor do FBI), Pam Bondi (procuradora-geral), Pete Hegseth (secretário de defesa), Kristi Noem (secretária de segurança interna), e John Ratcliffe (diretor da CIA) não têm as qualificações necessárias para os cargos. No entanto, todos compartilham duas características comuns: lealdade pessoal ao presidente e a disposição de expelir de suas agências qualquer pessoa que considerem ter ofendido ou se oposto a Trump, ou que carregue identificação muito próxima ao governo Biden.
Decretos para reafirmar o poder de Trump
A enxurrada de decretos (89, até o momento em que este artigo foi escrito) tem a intenção de fazer o poder da presidência adentrar territórios até então preservados. Uma vez que conta com maioria em ambas as casas do Congresso, Trump poderia ter recorrido à legislação ordinária. Mas já está claro que seus assessores desejam afirmar o poder do presidente, e não simplesmente garantir reformas políticas.
Exemplo disso é a tentativa de Trump de abolir, por decreto, a cidadania por nascimento – direito claramente protegido pela 14a emenda à Constituição, que diz: “todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas a essa jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do estado em que residem”. O decreto do presidente foi negado por um juiz federal, mas a tentativa de dar fim a uma longa tradição constitucional, com uma canetada, demonstra o maximalismo do atual governo. De maneira geral, vários decretos foram contestados pelos tribunais, sobretudo em casos movidos por promotores em estados controlados pelo Partido Democrata. Mas a estratégia de Trump parece ser assinar vários ao mesmo tempo, de modo que alguns acabem de fato virando lei.
Mais perturbadora ainda é a perspectiva do governo em relação aos tribunais. “Aquele que salva o país não viola a lei”, escreveu o presidente numa rede social, citando Napoleão. O vice-presidente J.D. Vance declarou que “juízes não podem controlar o poder legítimo do executivo”. A afirmação ignora o fato de que o papel dos tribunais, dentro da separação de poderes que supostamente existe nos Estados Unidos, é justamente decidir o que é ou não é legítimo. Em meados de fevereiro, Elon Musk tweetou o seguinte: “é preciso que haja uma onda imediata de impeachments a juízes, no plural”.
A visão do atual governo sobre a imprensa é igualmente preocupante. A Casa Branca tomou para si a tarefa de selecionar os jornalistas que integram o pool que cobre a instituição, papel que há tempos cabia à Associação de Correspondentes da Casa Branca. Trump também fez ameaças e conduziu exclusões seletivas, numa tentativa de obter uma cobertura mais favorável. Para um presidente que diz detestar as supostas “fake news”, Trump mostra-se obcecado pelo jornalismo exercido pela grande imprensa. Ele quer ser reverenciado. Suas atitudes são uma grave violação à tradição democrática dos Estados Unidos, na qual o direito à imprensa livre é um pilar fundamental, protegido na 1ª emenda à Constituição.
Alguns donos de veículos, como Jeff Bezos – que controla tanto a Amazon quanto o Washington Post –, estão fazendo o serviço de Trump. Antes da eleição, Bezos cancelou a publicação de um editorial que apoiava a candidatura de Kamala Harris. O episódio levou cerca de 200 mil leitores cancelarem a assinatura. Famoso pela cobertura independente do escândalo Watergate, que levou o governo Nixon à crise no início da década de 70, o Post adota agora uma linha favorável “às liberdades pessoais e ao livre mercado”. David Shipley, um dos editores do jornal, pediu demissão como resultado da mudança, e o Washington Post deixou de ser voz confiável na imprensa americana.
A estranha criação do DOGE
Uma das características mais preocupantes e antidemocráticas da atual administração é a criação do DOGE. Esse grupo de jovens profissionais da área de TI, chefiado por Elon Musk, obteve acesso a informações sensíveis e comandou uma grande onda de demissão de servidores federais. Para justificar um assalto sem precedentes ao poder, o DOGE fez uso de informações enganosas sobre agências do governo e promoveu um assassinato de reputação de vários funcionários públicos.
Considerando que as empresas de Elon Musk têm contratos bilionários com o governo, o conflito de interesses do empresário à frente do DOGE é evidente. (Recentemente, o Departamento Federal de Aviação cancelou um contrato de 2,4 bilhões de dólares que havia sido concedido à Verizon, transferindo-o para a Starlink de Musk, numa medida que surpreendeu até a comunidade de Washington, calejada por casos de corrupção). Apesar disso, Musk e sua equipe jamais passaram pelos processos de aprovação do senado e de verificação de segurança, que permitem ter acesso a áreas sensíveis do governo. À semelhança de tantas ações de Trump, o DOGE foi criado da noite para o dia, por decreto.
Até o momento, um dos piores exemplos das atividades do DOGE foi a destruição da Agência Americana para Desenvolvimento Internacional (USAID). Criado pelo presidente John F. Kennedy, o órgão existia há 60 anos e operava em mais de cem países. O orçamento do USAID era de US$ 40 bilhões, e cerca de 13 mil pessoas trabalhavam ali – incluindo funcionários federais, terceirizados e pessoas contratadas no exterior pelos escritórios da agência. O maior departamento bilateral de desenvolvimento internacional do mundo prestava ajuda humanitária, conduzia pesquisas sobre doenças infecciosas, projetos agrícolas, estudos sobre reforma governamental, melhorias na educação e desenvolvimento de infraestrutura. Um dos programas mais conhecidos do USAID era o PEPFAR, que fornecia medicamentos antirretrovirais para pacientes com HIV. O PEPFAR garantia a sobrevivência de cerca de 26 milhões de pessoas, e era particularmente importante na África.
No dia 2 de fevereiro de 2025, Elon Musk publicou o seguinte tweet: “O USAID é uma organização criminosa. Está na hora de morrer”. Teve início então a demissão de empregados, o fechamento de missões no exterior e da sede em Washington, e o cancelamento de contratos. Marco Rubio, secretário de estado, foi nomeado administrador interino da agência. Para supervisionar o desmonte do órgão, Rubio indicou um homem que participou da invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. Recentemente, Marco Rubio declarou que 83% dos contratos do USAID foram rescindidos, e o governo afirma que vai preservar apenas 294 funcionários.
Para Trump e Musk, eliminar o USAID foi uma medida fácil do ponto de vista político. A agência não contava com uma base forte de apoio doméstico, disposta a lutar por sua preservação. No cenário internacional, entretanto, acabar com o auxílio humanitário americano em nome da ideologia “America First” é um recado claro para o resto do mundo: os Estados Unidos não estão dispostos a liderar o enfrentamento dos desafios globais. Na América Latina e no Caribe, isso abre mais espaço para que a China assuma o papel de parceiro comercial confiável, investidor constante e alternativa desejável aos Estados Unidos.
Surge resistência aos métodos Elon Musk
Em Washington, observadores polidos fingem acreditar que a destruição do USAID por parte do DOGE era necessária para eliminar “desperdícios, fraudes e abusos” que atingiam o orçamento federal. Mas as atitudes do DOGE são uma caça às bruxas, e não um exercício de eficiência. Trump demitiu também auditores públicos que tinham autoridade e treinamento específico para eliminar gastos inadequados na administração federal como um todo. Além disso, o DOGE não conduziu uma avaliação cuidadosa dos programas antes de encerrar o USAID. Em vez disso, simplesmente atirou toda a agência no “moedor de lenha”, conforme a metáfora usada por Musk. O DOGE não presta contas a ninguém e, em certa medida, é impopular. Uma pesquisa recente mostrou que 53% dos americanos são contra a “força-tarefa criada para cortar gastos federais, comandada por Elon Musk”.
O USAID virou um alvo por motivos ideológicos, fundamentados na suposição de que a ajuda humanitária internacional dos Estados Unidos seria um tipo de trama nefasta contra o cidadão americano comum. A ideologia MAGA, ou “Make America Great Again”, também demoniza o setor público, que é enxergado como um parasita. Só o setor privado é visto como produtivo e virtuoso. Há ainda uma lógica política em funcionamento: o desejo de amedrontar e silenciar funcionários federais, e de fazer da lealdade política o critério mais importante para garantir a permanência de um servidor. As salvaguardas existentes para empregados do governo foram ignoradas. Com isso, os Estados Unidos voltam ao tempo anterior à aprovação da Lei Pendleton, de 1883, quando não havia um funcionalismo público profissional e estruturado, e cada governo indicava pessoas leais para postos onde o objetivo era desfrutar dos “mimos do cargo”.
O gasto federal com o funcionalismo representa de 5% a 6% do orçamento como um todo. Ou seja: a não ser que o DOGE vá além dos servidores e avalie também o sistema de compras públicas – sobretudo os desperdícios e as fraudes nos contratos do setor de defesa -, o autodeclarado objetivo de reduzir o desperdício não será atingido. Essa, porém, não é a verdadeira intenção. O compromisso de Trump de reduzir o déficit também é alimentado pela aprovação de um novo orçamento no congresso, que prevê 4,5 trilhões de dólares em cortes de impostos. Além disso, não parece haver grande compreensão por parte do governo sobre a parcela de gastos do USAID destinada a empresas e pessoas físicas americanas. Embora muitos agricultores do país tenham votado em Trump, eles provavelmente vão se aborrecer quando descobrirem que a agência deixará de comprar os alimentos que produzem (até então distribuídos nos programas de ajuda humanitária) e de financiar pesquisas acadêmicas que beneficiavam suas lavouras.
O desastre da coletiva com Zelensky
Talvez a ação do governo com custo político mais alto até o momento tenha sido a entrevista coletiva que reuniu o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, Trump e o vice-presidente americano J.D. Vance, realizada na Casa Branca em 28 de fevereiro. A despeito da percepção internacional sobre o encontro, o ponto mais importante é que a altercação gerou críticas disseminadas a Trump no cenário doméstico, sobretudo entre a elite política e especialmente entre republicanos tradicionais. O episódio faz parte do padrão geral de Trump, que se aproxima de ditadores e se afasta de aliados antigos como Canadá, México, parceiros da OTAN e outros.
Até mesmo analistas que aprovam as iniciativas de Trump em relação à Ucrânia admitem que repreender Zelensky ao vivo, diante das câmeras da imprensa, foi um erro. Ainda que Trump tenha comemorado a cena como um “sucesso na televisão”, o entrevero foi erro tático não calculado, que colocou Vance e o presidente no papel de valentões a serviço do Kremlin. Segundo pesquisas, o número de americanos que acha que Trump é um ditador é duas vezes maior do que o número de pessoas que diz o mesmo de Zelensky. Há décadas os cidadãos do país são condicionados a desconfiar da Rússia. De maneira geral, enxergam na Ucrânia uma democracia vítima de agressão, que merece o apoio dos Estados Unidos.
A política do atual governo para a Ucrânia transmite a impressão de que Trump prefere o presidente russo Vladimir Putin a Zelensky, e prejudica consideravelmente o secretário de estado Marco Rubio. Cubano-americano nascido em Miami, Rubio ganhou fama no Senado como opositor ferrenho dos regimes autoritários da ilha de origem de sua família, da Nicarágua e da Venezuela. Apesar disso, agora se vê obrigado a defender um presidente tido como aliado do Kremlin e do governo Putin – governo este que apoia o status quo em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela. Para piorar, Rubio precisa ser favorável à política de deportação de imigrantes venezuelanos, sendo que muitos deles fugiram do país por motivos políticos e agora se veem obrigados a voltar (com a cooperação de Nicolás Maduro). Diante disso, não surpreende que John Bolton, assessor de segurança nacional por um breve período no primeiro governo Trump, tenha defendido a renúncia de Rubio.
Em resumo: os dias iniciais do segundo governo Trump são dias de decepção e de apreensão crescente. O ataque do presidente à democracia inclui o uso de ministérios poderosos como arma contra adversários, expurgos no executivo motivados por questões políticas, usurpação do poder do orçamento do Congresso Nacional, desprezo pelos tribunais, intimidação da imprensa e reversão da linha política americana para a guerra na Ucrânia – afastando-se de uma democracia e aproximando-se de um regime expansionista e autoritário. Dizer que Trump está promovendo uma “américa-latinização” da política dos Estados Unidos seria um desserviço às democracias da América Latina que estão em bom funcionamento.
Dois analistas da democracia consideram que o país está à beira de se tornar um regime autoritário competitivo, ou então um regime no qual a arquitetura formal da democracia (incluindo as eleições) continua a existir, mas com um governo que ataca adversários, aumenta o custo de fazer oposição, coopta críticos e usa poder de perseguição e coerção para atingir inimigos. A análise é correta, mas os analistas se equivocam em um ponto. Os EUA não estão à beira de se tornar um regime autoritário. Eles já o são.
*O autor agradece a Beatriz Velloso pela tradução para o português.
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É diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center da Florida International University, professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London e membro sênior da Canning House
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