Brasil em ascensão: O papel da difusão de políticas como instrumento regulatório internacional
Contradições da modernização brasileira e respostas a mazelas do subdesenvolvimento inspiraram uma interpretação positiva do modelo de desenvolvimento, permitindo ao Brasil se apresentar como um ator capaz de propor soluções e caminhos para o desenvolvimento da periferia.
Contradições da modernização brasileira e respostas a mazelas do subdesenvolvimento inspiraram uma interpretação positiva do modelo de desenvolvimento, permitindo ao Brasil se apresentar como um ator capaz de propor soluções e caminhos para o desenvolvimento da periferia.
Por Henrique Zeferino de Menezes e Marco Vieira*
Apesar das importantes diferenças de conteúdo e estratégia, as administrações tucanas e petistas planejavam e executavam sua política externa baseando-se em princípios norteadores e interesses claros. O Brasil pleiteava e alcançava projeção política e prestígio internacional por caminhos diferentes, afirmando perspectivas político-ideológicas e interesses diversos ao longo de governos que se sucediam.
Hoje, o Brasil passa por um desmanche profundo da sua política externa, acentuando uma forte perda de relevância global, com efeitos políticos e econômicos ainda a serem mensurados. Esse desmanche se percebia de forma eloquente na retórica e ação “desconstrutiva” do legado e dos princípios norteadores da política externa brasileira, adotado pelo antigo chanceler Ernesto Araújo, assim como na passividade, quase nunca vista, do atual ministro das Relações Exteriores do Brasil.
Em artigo publicado no Journal of International Relations and Development, intitulado Explaining Brazil as a rising state, 2003‒2014: the role of policy diffusion as an international regulatory instrument, analisamos e discutimos um período recente da história da política externa brasileira de forte e importante ativismo político e aumento do protagonismo brasileiro em importantes áreas das relações internacionais. A partir de uma perspectiva particular, buscamos entender o papel da implementação e da difusão internacional de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico e social, bem sucedidas e bem avaliadas, como um instrumento de poder e de projeção internacional.
Ao longo das administrações de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, o Brasil formulou e adotou um projeto de desenvolvimento econômico e social inovador que buscava lidar com parte dos problemas mais latentes do subdesenvolvimento brasileiro. Se por um lado houve uma reinterpretação do papel do Estado na indução do crescimento econômico e fomento à inovação tecnológica, por outro, o governo tratou de planejar e implementar políticas públicas com o objetivo de reduzir a pobreza e diminuir as desigualdades sociais. De forma mais precisa, as políticas de redução da pobreza, transferência de renda, aumento do emprego e dos salários passaram a compor uma parte essencial da estratégia de desenvolvimento econômico, ultrapassando a sua dimensão assistencialista, ao conceber o aumento da renda e do consumo como fator de dinamização da economia.
Independente dos diferentes conceitos trabalhados para caracterizar esse momento e essa estratégia, o que importa é ressaltar o papel ativo do Estado na produção de respostas políticas e institucionais na produção de uma estratégia de desenvolvimento socioeconômico que alcançou resultados expressivos em termos de crescimento econômico e redução generalizada na pobreza. O outro lado dessa moeda foi justamente a construção de uma agenda e uma estratégia de inserção internacional que respondesse a esse projeto de desenvolvimento. Tradicionalmente, a política externa é retratada como um instrumento de desenvolvimento nacional e, particularmente, ela reflete de forma mais precisa os objetivos e estratégias de desenvolvimento formulados e executados em diferentes momentos e por diferentes governos.
Para o Brasil era importante manter as possibilidades e liberdades para sustentar as políticas de fomento à indústria nacional, da mesma forma que era essencial a legalização e legitimação internacional de suas políticas de desenvolvimento social. Assim, o governo brasileiro atuou para difundir e transferir internacionalmente as políticas que estavam no centro do modelo de desenvolvimento implementado a partir de 2003, dando sentido à ideia de internacionalização de um modelo centrado na ação pública para fomentar o crescimento econômico com redução da pobreza e da desigualdade.
Um amplo arcabouço de políticas e intervenções públicas voltadas ao combate à pobreza e redução das desigualdades construíram uma infraestrutura institucional robusta que impactou a sociedade e economia brasileiras de forma profunda. O modelo de transferência condicionada de renda, centrado no Bolsa Família, e o conjunto de ações para o desenvolvimento agrário, com efeitos sobre a pobreza rural, e combate à fome, ganharam um amplo espaço em agências e organizações internacionais, assim como foram objeto crítico da agenda de cooperação internacional para o desenvolvimento implementada pelo Brasil.
O Banco Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) são exemplos de organizações internacionais que absorveram e difundiram políticas brasileiras, além de estabelecer laços de cooperação com órgãos governamentais para transferir ações brasileiras de combate a fome e redução da pobreza para países da América Latina, África e Ásia. O Brasil também atuou por meio da cooperação técnica internacional, envolvendo diversos ministérios e órgãos públicos, para contribuir com processos de aprendizagem e absorção de conhecimentos pelos parceiros brasileiros.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são casos de sucesso de políticas públicas voltadas ao estímulo à agricultura familiar difundidos internacionalmente. Por meio da compra pública de alimentos, o PAA gera estímulos para a consolidação de um sistema produtivo de pequena escala sustentável, com efeitos sobre a redução da pobreza no campo e ampliação do acesso a alimentos saudáveis à grandes parcelas populacionais em diversos equipamentos públicos. Considerando os efeitos difusos de uma política dessa natureza e a expertise brasileira, a FAO desenvolveu uma frutífera colaboração com o Brasil, que incorporou como uma das suas iniciativas mais relevantes a difusão do PAA para o continente africano. Desde 2012, o modelo brasileiro de compra direta de alimentos tem sido difundido mundialmente, contando ainda com a parceria do World Food Programme (WFP) e do Department for International Development inglês.
A incorporação das políticas brasileiras por diversas organizações internacionais sinalizava uma contribuição do país ao redesenho de práticas internacionais e construção de normas que justifiquem e iluminem um modelo de desenvolvimento internacional. Em um processo ainda mais relevante de institucionalização desse modelo, algumas agências internacionais foram desenhadas, com ativo papel brasileiro, com o intuito de divulgar e difundir o modelo e as políticas de desenvolvimento brasileiras. O International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC-IG), o Centro de Excelência Contra a Fome e a Iniciativa Brasileira de Aprendizagem para um Mundo Sem Pobreza foram criadas justamente com o propósito de contribuir com a consolidação de uma forma particular de lidar com problemas sociais internacionais a partir de perspectivas e experiências bem sucedidas e replicáveis. E o Brasil era um modelo para o mundo.
O modelo de desenvolvimento socioeconômico brasileiro, focado na redução da pobreza e distribuição de renda, se difundiu de forma a influenciar as normas internacionais associadas ao desenvolvimento social. Como resultado, o Brasil passou a desempenhar um papel significativo na promoção de soluções para problemas globais, através da disseminação de políticas públicas que forneceram uma nova estrutura de governança para a cooperação internacional. O Brasil contribuiu com a reformulação de práticas em organizações internacionais tradicionais, bem como contribuiu com a estruturação de novos mecanismos internacionais que encapsulam a perspectiva nacional de como lidar com os problemas de desenvolvimento da periferia.
É nesse sentido que nos referimos ao Brasil como um rising state – um país com uma agenda ativa que aumentava sua presença internacional ao propor alternativas normativas e de governança que espelhavam suas práticas, mas que também refletiam seus interesses. As contradições da modernização brasileira e as respostas bem sucedidas para lidar com as mazelas do subdesenvolvimento serviram de inspiração para a construção de uma interpretação positiva do modelo inovador de desenvolvimento, permitindo ao Brasil se apresentar como um ator capaz de propor soluções e caminhos para o desenvolvimento da periferia.
As mudanças de rumo na política econômica e social iniciadas em 2016, com a retomada de um discurso e reformas neoliberais, que reverteu as estratégias de desenvolvimento industrial e as políticas de distribuição de renda. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 coloca fim a trajetória de construção de uma agenda autonomista e socialmente referenciada da política externa brasileira, lançando o Brasil a um hiato entre a irrelevância política e a nocividade internacional.
Henrique Zeferino de Menezes é professor do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência Política pela UNICAMP e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas: UNESP, UNICAMP, PUC-SP.
Marco Vieira é professor de relações internacionais da Universidade de Birmigham, no Reino Unido. É doutor em relações internacionais pela London School of Economics.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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