04 maio 2022

Brasil em ascensão: O papel da difusão de políticas como instrumento regulatório internacional

Contradições da modernização brasileira e respostas a mazelas do subdesenvolvimento inspiraram uma interpretação positiva do modelo de desenvolvimento, permitindo ao Brasil se apresentar como um ator capaz de propor soluções e caminhos para o desenvolvimento da periferia.

Contradições da modernização brasileira e respostas a mazelas do subdesenvolvimento inspiraram uma interpretação positiva do modelo de desenvolvimento, permitindo ao Brasil se apresentar como um ator capaz de propor soluções e caminhos para o desenvolvimento da periferia.

Estudantes recebem produtos adquiridos pelo Programa de Aquisição de Alimentos (Sergio Amaral/MDS)

Por Henrique Zeferino de Menezes e Marco Vieira*

Apesar das importantes diferenças de conteúdo e estratégia, as administrações tucanas e petistas planejavam e executavam sua política externa baseando-se em princípios norteadores e interesses claros. O Brasil pleiteava e alcançava projeção política e prestígio internacional por caminhos diferentes, afirmando perspectivas político-ideológicas e interesses diversos ao longo de governos que se sucediam.

Hoje, o Brasil passa por um desmanche profundo da sua política externa, acentuando uma forte perda de relevância global, com efeitos políticos e econômicos ainda a serem mensurados. Esse desmanche se percebia de forma eloquente na retórica e ação “desconstrutiva” do legado e dos princípios norteadores da política externa brasileira, adotado pelo antigo chanceler Ernesto Araújo, assim como na passividade, quase nunca vista, do atual ministro das Relações Exteriores do Brasil.

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é condecorado pela ONU com o título de Campeão Mundial na Luta Contra a Fome (Ricardo Stuckert/PR)

Em artigo publicado no Journal of International Relations and Development, intitulado Explaining Brazil as a rising state, 2003‒2014: the role of policy diffusion as an international regulatory instrument, analisamos e discutimos um período recente da história da política externa brasileira de forte e importante ativismo político e aumento do protagonismo brasileiro em importantes áreas das relações internacionais. A partir de uma perspectiva particular, buscamos entender o papel da implementação e da difusão internacional de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico e social, bem sucedidas e bem avaliadas, como um instrumento de poder e de projeção internacional. 

Ao longo das administrações de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff, o Brasil formulou e adotou um projeto de desenvolvimento econômico e social inovador que buscava lidar com parte dos problemas mais latentes do subdesenvolvimento brasileiro. Se por um lado houve uma reinterpretação do papel do Estado na indução do crescimento econômico e fomento à inovação tecnológica, por outro, o governo tratou de planejar e implementar políticas públicas com o objetivo de reduzir a pobreza e diminuir as desigualdades sociais. De forma mais precisa, as políticas de redução da pobreza, transferência de renda, aumento do emprego e dos salários passaram a compor uma parte essencial da estratégia de desenvolvimento econômico, ultrapassando a sua dimensão assistencialista, ao conceber o aumento da renda e do consumo como fator de dinamização da economia.

Independente dos diferentes conceitos trabalhados para caracterizar esse momento e essa estratégia, o que importa é ressaltar o papel ativo do Estado na produção de respostas políticas e institucionais na produção de uma estratégia de desenvolvimento socioeconômico que alcançou resultados expressivos em termos de crescimento econômico e redução generalizada na pobreza. O outro lado dessa moeda foi justamente a construção de uma agenda e uma estratégia de inserção internacional que respondesse a esse projeto de desenvolvimento. Tradicionalmente, a política externa é retratada como um instrumento de desenvolvimento nacional e, particularmente, ela reflete de forma mais precisa os objetivos e estratégias de desenvolvimento formulados e executados em diferentes momentos e por diferentes governos.

‘O governo brasileiro atuou para difundir e transferir internacionalmente as políticas que estavam no centro do modelo de desenvolvimento implementado a partir de 2003’

Para o Brasil era importante manter as possibilidades e liberdades para sustentar as políticas de fomento à indústria nacional, da mesma forma que era essencial a legalização e legitimação internacional de suas políticas de desenvolvimento social. Assim, o governo brasileiro atuou para difundir e transferir internacionalmente as políticas que estavam no centro do modelo de desenvolvimento implementado a partir de 2003, dando sentido à ideia de internacionalização de um modelo centrado na ação pública para fomentar o crescimento econômico com redução da pobreza e da desigualdade.

Um amplo arcabouço de políticas e intervenções públicas voltadas ao combate à pobreza e redução das desigualdades construíram uma infraestrutura institucional robusta que impactou a sociedade e economia brasileiras de forma profunda. O modelo de transferência condicionada de renda, centrado no Bolsa Família, e o conjunto de ações para o desenvolvimento agrário, com efeitos sobre a pobreza rural, e combate à fome, ganharam um amplo espaço em agências e organizações internacionais, assim como foram objeto crítico da agenda de cooperação internacional para o desenvolvimento implementada pelo Brasil.

O Banco Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) são exemplos de organizações internacionais que absorveram e difundiram políticas brasileiras, além de estabelecer laços de cooperação com órgãos governamentais para transferir ações brasileiras de combate a fome e redução da pobreza para países da América Latina, África e Ásia. O Brasil também atuou por meio da cooperação técnica internacional, envolvendo diversos ministérios e órgãos públicos, para contribuir com processos de aprendizagem e absorção de conhecimentos pelos parceiros brasileiros.

‘A incorporação das políticas brasileiras por diversas organizações internacionais sinalizava uma contribuição do país ao redesenho de práticas internacionais e construção de normas que justifiquem e iluminem um modelo de desenvolvimento internacional’

O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) são casos de sucesso de políticas públicas voltadas ao estímulo à agricultura familiar difundidos internacionalmente. Por meio da compra pública de alimentos, o PAA gera estímulos para a consolidação de um sistema produtivo de pequena escala sustentável, com efeitos sobre a redução da pobreza no campo e ampliação do acesso a alimentos saudáveis à grandes parcelas populacionais em diversos equipamentos públicos. Considerando os efeitos difusos de uma política dessa natureza e a expertise brasileira, a  FAO desenvolveu uma frutífera colaboração com o Brasil, que incorporou como uma das suas iniciativas mais relevantes a difusão do PAA para o continente africano. Desde 2012, o modelo brasileiro de compra direta de alimentos tem sido difundido mundialmente, contando ainda com a parceria do World Food Programme (WFP) e do Department for International Development inglês.

A incorporação das políticas brasileiras por diversas organizações internacionais sinalizava uma contribuição do país ao redesenho de práticas internacionais e construção de normas que justifiquem e iluminem um modelo de desenvolvimento internacional. Em um processo ainda mais relevante de institucionalização desse modelo, algumas agências internacionais foram desenhadas, com ativo papel brasileiro, com o intuito de divulgar e difundir o modelo e as políticas de desenvolvimento brasileiras. O International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC-IG), o Centro de Excelência Contra a Fome e a Iniciativa Brasileira de Aprendizagem para um Mundo Sem Pobreza foram criadas justamente com o propósito de contribuir com a consolidação de uma forma particular de lidar com problemas sociais internacionais a partir de perspectivas e experiências bem sucedidas e replicáveis. E o Brasil era um modelo para o mundo.

O modelo de desenvolvimento socioeconômico brasileiro, focado na redução da pobreza e distribuição de renda, se difundiu de forma a influenciar as normas internacionais associadas ao desenvolvimento social. Como resultado, o Brasil passou a desempenhar um papel significativo na promoção de soluções para problemas globais, através da disseminação de políticas públicas que forneceram uma nova estrutura de governança para a cooperação internacional. O Brasil contribuiu com a reformulação de práticas em organizações internacionais tradicionais, bem como contribuiu com a estruturação de novos mecanismos internacionais que encapsulam a perspectiva nacional de como lidar com os problemas de desenvolvimento da periferia.

‘Eleição de Bolsonaro coloca fim a trajetória de construção de uma agenda autonomista e socialmente referenciada da política externa brasileira’

É nesse sentido que nos referimos ao Brasil como um rising state – um país com uma agenda ativa que aumentava sua presença internacional ao propor alternativas normativas e de governança que espelhavam suas práticas, mas que também refletiam seus interesses. As contradições da modernização brasileira e as respostas bem sucedidas para lidar com as mazelas do subdesenvolvimento serviram de inspiração para a construção de uma interpretação positiva do modelo inovador de desenvolvimento, permitindo ao Brasil se apresentar como um ator capaz de propor soluções e caminhos para o desenvolvimento da periferia.

As mudanças de rumo na política econômica e social iniciadas em 2016, com a retomada de um discurso e reformas neoliberais, que reverteu as estratégias de desenvolvimento industrial e as políticas de distribuição de renda. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 coloca fim a trajetória de construção de uma agenda autonomista e socialmente referenciada da política externa brasileira, lançando o Brasil a um hiato entre a irrelevância política e a nocividade internacional.


Henrique Zeferino de Menezes é professor do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência Política pela UNICAMP e mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas: UNESP, UNICAMP, PUC-SP.

Marco Vieira é professor de relações internacionais da Universidade de Birmigham, no Reino Unido. É doutor em relações internacionais pela London School of Economics.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional. 

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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