09 junho 2022

Chacina na Vila Cruzeiro: cidadania desigual, guerra às drogas e a democracia no Brasil

Em artigo, Christoffer Guldberg diz que o exercício da violência no Brasil, particularmente pela polícia, se dá segundo visões de cidadania e direitos ligadas ao racismo e se manifesta na distinção entre “bandido” e “trabalhador”, levando a uma presunção invertida de inocência onde a maioria das pessoas que as polícias matam são designadas como “bandidos” até que o contrário seja provado

Em artigo, Christoffer Guldberg diz que o exercício da violência no Brasil, particularmente pela polícia, se dá segundo visões de cidadania e direitos ligadas ao racismo e se manifesta na distinção entre “bandido” e “trabalhador”, levando a uma presunção invertida de inocência onde a maioria das pessoas que as polícias matam são designadas como “bandidos” até que o contrário seja provado

Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (Foto: Instagram/BOPE_PMERJ)

Por Christoffer Guldberg*

Nas últimas semanas vimos duas tragédias no Brasil e nos Estados Unidos, com a chacina na Vila Cruzeiro e o massacre em uma escola no Texas. Apesar das diferenças entre os dois países e eventos, existe também em uma clara semelhança, qual seja, a naturalização de certas práticas que são intimamente ligadas a visões nacionais e internacionais sobre a distribuição de direitos e cidadania e que servem a interesses institucionais e políticos, assim como mercado financeiro, e indústria de armamento.

No caso dos EUA, sabemos que a indústria do armamento teve um importante papel em promover uma leitura da Constituição desse país que, apesar de ser bastante recente, é vista como uma condição imutável, normal e natural da vida americana: o direito dos cidadãos de se armarem, inclusive com armamento de guerra. Isso é intimamente ligado não só aos interesses pecuniários da indústria do armamento, mas ao racismo e à defesa contra a ameaçadora presença de latinos e negros em espaços públicos, particularmente com a era dos direitos civis.

Mesmo que o caso do Brasil seja diferente, o exercício da violência, particularmente policial, neste país também se pratica segundo visões de cidadania e direitos ligadas a um racismo que data desde a escravatura e a abolição. Hoje em dia a manifestação mais evidente desta distribuição se dá na famosa, e raramente questionada, distinção entre “bandido” e “trabalhador”, segundo a qual, o primeiro é geralmente um pequeno criminoso associado ao tráfico de drogas, roubo ou furto. No caso da chacina na Vila Cruzeiro, vemos isso na presunção invertida de inocência em que a maioria das pessoas que as polícias mataram na operação são designadas como “bandidos” até que o contrário seja provado –e isso somente em teoria, já que estes homicídios raramente são investigados seriamente.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/christoffer-guldberg-em-uma-sociedade-democratica-nao-e-papel-da-policia-decidir-quem-e-bandido/

No presente ensaio viso contextualizar historicamente esta distinção para poder questionar práticas de violência que são tidas como necessárias, normais ou inevitáveis.

Assim, Segundo a historiadora Lillian Schwartz, nos dias seguintes à Abolição, podia se ouvir na rua, que “a liberdade é negra, mas a igualdade é branca”[i]. Ou seja, enquanto a cidadania incluía formalmente negros libertos, distribuía desigualmente os direitos entre eles e brancos[ii].

Fica então a pergunta: como se deu na prática tal distribuição desigual entre quem era formalmente igual? A resposta é simples –identificar as práticas associadas a negros e proibir tais práticas para poder então controlar os movimentos destes mesmos. Como a maconha era popularmente associada à população negra, sendo conhecida como “fumo de negro”, a criminalização desta substância virou uma das principais maneiras de alcançar este objetivo[iii], ao que se juntava a ideia de que esta substância deixava esta população mais propicia ao crime e ao ócio.

‘Não é a nocividade de determinadas práticas que determinam sua criminalização, mas a cor de pele de quem as pratica’

No entanto, não só a maconha, mas também o samba foi criminalizado, o que serve para sublinhar que não é a nocividade de determinadas práticas que determinam sua criminalização, mas a cor de pele de quem as pratica. Assim, samba e o consumo de maconha, práticas com quase nenhum efeito nocivo e vários efeitos benéficos (particularmente comparadas com drogas como álcool), se tornaram objetos de criminalização por estarem associadas à população negra. Isso permitia, junto com a famosa lei da vadiagem, prender pessoas negras que se encontrava em certos espaços. Podemos dizer então que a violência nasce da própria criminalização e não da droga em si.

Hoje em dia ainda existe a criminalização não só da maconha, mas também de várias outras drogas, assim como cocaína e crack, sob a lema da famosa guerra às drogas. Esta guerra que, por ser uma guerra formalmente contra uma substância e um conceito, acaba por design não tendo fim (ao contrário de guerras clássicas entre países e outras entidades políticas e militares). Isso força-nos a fazer a seguinte pergunta: Se não se pode ganhar esta guerra, para que e a quem ela serve?

‘Apesar do nome “guerra às drogas”, uma guerra sempre visa pessoas, mas pessoas estas que a droga serve para deslegitimar como cidadãos plenos’

Para chegar a uma reposta, primeiro teremos que entender que, apesar do nome “guerra às drogas”  e das fotos policialescas mostrando drogas apreendidas, uma guerra sempre visa pessoas, mas pessoas estas que a droga serve para deslegitimar como cidadãos plenos. As consequências em termos de vidas perdidas é fato conhecido e brutal.

Com esta afirmação podemos passar então para uma leitura da atual política de guerra contra as drogas e seus enveredamentos políticos e institucionais, para entender como especificamente funciona esta política de criminalizar pessoas.

Vemos que a criminalização da maconha foi historicamente uma questão de controlar negros, inclusive moralmente, para que não se dessem para a “vadiagem”. Tais ideias morais ainda estão claramente presentes, mas temos que também ter em mente como funciona institucionalmente e a quais interesses elas servem hoje em dia. Assim, é necessário lembrar que a criminalização não se dá de maneira universal e igual, mas visa um determinado elo de uma cadeia de produção e distribuição, a qual é ocupada por pessoas negras, muitas vezes moradoras de favelas.

Estas pessoas, geralmente jovens ou mesmo menores, trabalham na ponta de uma cadeia que tem os seguintes elos 1) o cultivo de maconha e folha de coca; 2) o refino (particularmente da cocaína); 3) a distribuição, venda e transporte em atacado; 4) a distribuição e venda em varejo; e 5) o consumo.

Da maneira como é praticada a criminalização, ela se dá principalmente nos 4º e 5º elos, quais sejam a venda em varejo e consumo, sendo as práticas de repressão nestes dois elos ainda mediadas pela cor do suspeito, lugar de moradia e situação socioeconômica. Isso serve inclusive para distinguir entre tráfico e consumo num flagrante exemplo e discriminação racial praticado pelo judiciário.

Este foco permite 1) controlar um grupo de pessoas historicamente tidas como “perigosas” e; 2) concentrar o lucro no mercado do atacado, ocupado por pessoas que possuem terras, conexões e infraestrutura para operar com tais quantidades de droga, assim como no caso do famoso “Helicoca”. Em relação à concentração de lucro, esse também tem a ver com a diferença de risco entre quem trabalha com varejo e quem trabalha com atacado, sendo que a constante troca de lideranças e de soldados nas filas dos varejistas assegura que nenhum lucro possa se concentrar ali. Enquanto o outro elo, além de poder concentrar e esconder o lucro ao ter acesso a serviços financeiros, também não é alvo da letalidade policial nem sofre repercussões jurídicas.

Além desta questão de enfraquecer financeiramente um elo específico do caminho das drogas pelo Brasil e o mundo, a política também tem como objetivo controlar as pessoas que moram nas favelas. Fazem isso através de uma política de terror e um moralismo que distingue entre o “trabalhador” ou “cidadão de bem” (o que, por acaso, era o título da revista oficial da Klu Klux Klan nos Estados Unidos) e o ainda mais famoso “bandido”.

Tal moralismo prega tanto o trabalho duro como a abstinência de drogas, álcool, e chega a proibir até ficar na rua ou em casa de amigos até tarde, caso particularmente das Unidades de Polícia Pacificadora[iv].

Assim serve para uma economia desigual onde o trabalho, em geral precário, é reservado para favelados e serve inclusive para garantir direitos civis. Ou seja, quem não tem a famosa carteira assinada pode ser impunemente assassinado pela polícia.

‘Além deste controle social, este objetivo de controlar uma população consiste ainda em negar a subjetividade política e os direitos políticos coletivamente para negros e moradores de favelas’

Além deste controle social, este objetivo de controlar uma população consiste ainda em negar a subjetividade política e os direitos políticos coletivamente para negros e moradores de favelas. Aqui salta aos olhos a operação que foi feita pela CORE pouco antes da chacina na Vila Cruzeiro para derrubar um monumento na favela do Jacarezinho em homenagem aos mortos de uma outra chacina da mesma instituição.

Este monumento tinha os nomes de todos os mortos, muitos deles tendo sido executados como represália em uma morte de policial, cujo nome também constava no monumento, junto com os mortos pela polícia.

Ou seja, apesar do velho ditado, nem na morte podemos ser iguais.

No entanto, tal operação não só visa os mortos, mas também os vivos, sendo o sinal de uma proibição de atividades políticas por pessoas negras da favela. Além disso, há a imediata associação com tal atividade a supostos “problemas sociais” ou “crime organizado”, o que, como sabemos, foi também o caso da vereadora Marielle Franco, que teve o nome falsamente associado ao tráfico depois de ter sido executada.

‘Qualquer projeto de redemocratizar o Brasil em todos os níveis envolve o controle político sobre forças de segurança em todos os níveis’

Por que então o exercício da política por parte de pobres e favelados tem que ser proibido na visão de uma polícia militarizada? A resposta parece ser que a ameaça da política vem da natureza desta mesma de questionar as hierarquias e práticas normalizadas e tidas como naturais ou necessárias numa sociedade autoritária e militarizada.

E de fato é para isso que serve a política. E, portanto, qualquer projeto de redemocratizar o Brasil em todos os níveis envolve o controle político sobre forças de segurança em todos os níveis.

Assim, a política como conceptualizada por Hanna Arendt rechaça a necessidade, normalidade ou naturalidade como justificativas, sublinhando, por sua vez, a igualdade como preceito da liberdade e criatividade humana. O controle político das forças de segurança tem então que recuperar uma ética verdadeira em contraste ao lema militar de “missão dada – missão cumprida”, sendo que a igualdade e a liberdade permitem questionar o porquê dessa missão, para que e a quem serve. Tal ética é também uma ética de responsabilidade, segundo Weber, como formulado por este em A Política como Vocação. Ou seja, a responsabilidade tem que envolver todas as consequências daquilo que fazemos, não se limitando a julgar uma ação pelo motivo ostensivo, seja ele de acabar com as drogas, defender a ”sociedade” ou lutar contra ”bandidos”, o que também requer uma reponsabilidade continuada, que não pode nem ser delegada para outrem, sejam eles policias ou políticos eleitos, ou limitada a uma operação ou missão.


*Christoffer Guldberg tem doutorado de dupla titulação em relações internacionais pela Universidade de São Paulo e King’s College London. Trabalhou no Parlamento Europeu e na Organização Internacional das Migrações com a luta contra o tráfico de seres humanos, democracia e direitos humanos.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Notas:

[i] Schwarcz, Lilia Moritz. 2019. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Editora Companhia das Letras.

[ii] Holston, James. 2008. Insurgent Citizenship: Disjunctions of Democracy and Modernity in Brazil. Princeton University Press.

[iii] Saad, Luísa. 2019. “Fumo de Negro” : A Criminalização Da Maconha No Pós-Abolição. Salvador: EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA.

[iv] Carvalho, Monique Batista. 2012. “A Experiência Da Pacificação Em Um Conjunto de Favelas Na Tijuca: Rupturas e Contradições Na Gestão Da Ordem Pública.” Iser Comunicações 67 (31): 173–83.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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