16 abril 2025

Com inflação e redes sociais, cai vantagem da ‘máquina na mão’ dos partidos no poder

Com inflação persistente e redes sociais amplificando frustrações, a tradicional vantagem de partidos no poder nas eleições tem diminuído globalmente. Estudo mostra que insatisfação com a vida pesa mais que indicadores econômicos, e oposição cresce em diversos países, impulsionada por descrédito nas elites e um novo cenário digital

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Ao longo de décadas, deter o poder foi visto como uma grande vantagem para os partidos de turno nas eleições. No entanto, os últimos pleitos nas Américas, com frequentes vitórias da oposição, e alternâncias de poder cada vez mais frequentes na Europa colocam em questão tal vantagem. Uma mudança em comum foi a das redes sociais, normalmente impulsionadoras de insatisfações. Outra é a inflação, que segue em níveis elevados pelo mundo historicamente, e vem se mostrando politicamente mais relevante que outras variáveis econômicas.

Seguindo a eleição norte-americana de 2024, o veículo Marketplace fez um levantamento sobre os pleitos nas principais economias desde 2022, quando a invasão da Ucrânia pela Rússia impulsionou a inflação global. O resultado foi o de 70% dos incumbentes perdendo eleições, com grande parte das manutenções se tratando de casos bem específicos, como o partido LDP no Japão, que comanda o país desde os anos 50. 

‘Jair Bolsonaro foi o primeiro presidente a não se reeleger desde que é permitido, em um final de mandato marcado pela alta inflação’

No Brasil, em 2022, Jair Bolsonaro foi o primeiro presidente a não se reeleger desde que é permitido, em um final de mandato marcado pela alta inflação. No mesmo ano, na Colômbia, Gustavo Petro rompeu com as tradições partidárias mais que centenárias do país e se tornou o primeiro esquerdista no poder na Casa de Nariño.

Na Argentina, o principal tema da campanha de Javier Milei em 2023 foi a galopante inflação, o que lhe rendeu apoio popular para propostas radicais. Ao longo de 2024, o resultado das medidas foi uma recessão e alta no desemprego, mas alta da aprovação do presidente diante de uma desaceleração na inflação, que permaneceu elevada, acima de 100% no ano. 

‘Nos Estados Unidos, a derrota da democrata Kamala Harris foi em parte atribuída aos preços persistentemente altos no país’

Nos Estados Unidos, a derrota da democrata Kamala Harris foi em parte atribuída aos preços persistentemente altos no país, algo que pesou mais na avaliação econômica do que o forte crescimento durante o mandato de Joe Biden e a taxa de desemprego em mínimas históricas. 

Por sua vez, a fraqueza dos partidos no poder vem de antes da escalada inflacionária que seguiu a pandemia e o conflito ucraniano. No caso norte-americano, por três eleições seguidas, o partido no poder não conseguiu renovar sua permanência na Casa Branca. 

‘Na Argentina, nas últimas três eleições o partido incumbente saiu derrotado’

Na Argentina, nas últimas três eleições o partido incumbente saiu derrotado. O Peru é o caso mais emblemático de insatisfação com os presidentes eleitos, onde o último a completar o mandato venceu o pleito no ano de 2011, com o país contando com seis líderes desde então.

Na Europa de maioria parlamentarista, o efeito da insatisfação com o partido no governo vem se dando através de eleições antecipadas cada vez mais frequentes, inclusive em países nos quais, nas últimas décadas, os mandatos tradicionalmente foram cumpridos até o final. Em boa parte dos pleitos, a oposição vem conseguindo tomar o poder, caso dos trabalhistas britânicos em 2024 e dos democratas-cristãos na Alemanha em 2025. O fenômeno já foi apelidado de “italianização”, devido ao histórico de frágeis governos em Roma. 

‘A satisfação com a vida foi duas vezes mais importante para explicar o desempenho dos detentores do poder do que a taxa de desemprego e cerca de 30% mais importante do que o crescimento do PIB’

Um estudo de George Ward, do MIT, ajuda a explicar o fenômeno. Ele analisou o que mais explicava a variação na porcentagem de votos dos incumbentes em 15 eleições europeias entre 1973 e 2014. A satisfação com a vida foi duas vezes mais importante para explicar o desempenho dos detentores do poder do que a taxa de desemprego e cerca de 30% mais importante do que o crescimento do PIB. Ward também descobriu que quase metade das pessoas que estavam muito satisfeitas com as suas vidas disseram que votariam no titular, enquanto menos de um terço das pessoas que não estavam nada satisfeitas o fariam.

No artigo A infelicidade está aumentando em todo o mundo publicado na Economist, o diretor do instituto de pesquisa Gallup, Jon Clifton, observou que o tema é um fenômeno crescente de forma global. Segundo o pesquisador, existem cinco causas principais: pobreza, comunidades desfeitas, fome, solidão e escassez de bons trabalhos. De acordo com levantamentos pelo mundo do Gallup, 17% das pessoas consideraram “muito difícil” sobreviver com o seu rendimento atual – uma das porcentagens mais elevadas já registradas. 

‘Dois bilhões de pessoas estão tão insatisfeitas com o local onde vivem, e dizem que não recomendariam a sua comunidade a ninguém que conhecem’

Além disso, Clifton apontou que “comunidades desestruturadas não estão ajudando: dois bilhões de pessoas estão tão insatisfeitas com o local onde vivem, e dizem que não recomendariam a sua comunidade a ninguém que conhecem”. Para ele, as redes sociais explicam parte do fenômeno. 

“Através das plataformas online os usuários podem constatar que a sua miséria nem sempre é compartilhada. A comparação é a ladra da alegria, como diz o ditado, e as redes sociais permitem a comparação como nada mais. Eles trazem pessoas de todo o mundo para as casas umas das outras através de dispositivos portáteis e mais pessoas têm smartphones do que nunca”, avaliou.

‘A culpada apontada pelo baixo padrão de vida é normalmente a classe política’

Com a disparada dos preços das habitações na Europa, Estados Unidos e Canadá, jovens dessas regiões sonham em trabalhar remotamente em lugares mais baratos que reforcem seus poderes de compra. Por outro lado, latino-americanos são bombardeados com vídeos no TikTok contando as maravilhas de imigrar para países desenvolvidos, onde seus salários teriam um acesso maior a bens, incluindo iPhones e carros de alto-padrão. Em ambos os casos, a culpada apontada pelo baixo padrão de vida é normalmente a classe política.

Um dos elementos centrais da percepção de mundo a partir das redes sociais é o que o escritor Giuliano Da Empoli chama de “política quântica”, em detrimento da “clássica newtoniana”. Neste ambiente, os fatos possuem bem menos relevância do que o ponto de vista do observador. 

Um dos exemplos mais caricatos que já presenciei disso foi uma discussão entre dois nômades digitais em Medellin. Uma norte-americana progressista dizia ter escolhido a cidade por conta do sucesso das políticas de esquerda que teriam sido aplicadas ali. Em contrapartida, um canadense via na Colômbia de Petro um refúgio contra a cultura “woke” que supostamente havia tomado seu país. 

‘Com as tendências demográficas e os últimos resultados eleitorais entre os mais jovens, movimentos observados como anti-establishment devem seguir com bons resultados’

Com as tendências demográficas e os últimos resultados eleitorais entre os mais jovens, movimentos observados como anti-establishment devem seguir com bons resultados. Em duas das exceções nas quais governos no poder mantém alta popularidade e conseguiram se reeleger, México e El Salvador, a retórica contra as instituições é marcante. No caso mexicano, com a política dominada por décadas pelo PRI, o partido Morena, de Andrés Manuel López Obrador, conseguiu se posicionar como um movimento anti-sistema. Já o salvadorenho Nayib Bukele é um dos líderes globais que melhor soube captar a insatisfação impulsionada pelas redes.

No campo dos preços, há motivos suficientes para acreditar que os “choques temporários”, como dirigentes de bancos centrais costumam afirmar, tenham virado o novo normal. No caso dos alimentos, eventos climáticos extremos, cada vez mais comuns, fizeram com que, nos últimos anos, azeite, café e cacau alcançassem recordes históricos. É razoável acreditar que o mesmo ocorra com outros cultivos daqui para frente.

‘Em inflação, as expectativas normalmente são profecias autorrealizáveis, e os dirigentes são cautelosos em suas declarações buscando manter as perspectivas “ancoradas”’

Em inflação, as expectativas normalmente são profecias autorrealizáveis, e os dirigentes são cautelosos em suas declarações buscando manter as perspectivas “ancoradas”. No entanto, boa parte dos bancos centrais, com destaque para o BCE, já vem sinalizando que as mudanças climáticas serão cada vez mais um tema a ser levado em conta para suas metas.

Entre os bens, também há razões suficientes para acreditar que o avanço do protecionismo global, além de eventuais acirramentos de confrontos geopolíticos, faça com que os preços sofram com novas altas. Uma série de governos já demonstrou que as tarifas impostas por Donald Trump serão retaliadas, o que impulsiona perspectivas de altas de preços em todo o globo. 

‘Um dos setores mais sensíveis é o dos chips, no qual as restrições de fornecimento e as disrupções na oferta por disputas entre China e Taiwan podem causar uma disparada global nos eletrônicos ‘

Um dos setores mais sensíveis é o dos chips, no qual as restrições de fornecimento e as disrupções na oferta por disputas entre China e Taiwan podem causar uma disparada global nos eletrônicos nos próximos anos. Os efeitos nas cadeias de fornecimento são temidos, especialmente em itens como celulares.

Em 2026, análises e pesquisas mostram que Petro não deve manter-se no poder na Colômbia, diante de altos índices de rejeição. No caso do Brasil, o cenário é mais nebuloso, mas a alta nos alimentos e a crise de comunicação que o governo sofreu nas redes, levando a uma queda na popularidade em 2025, mostraram que estes também devem ser os principais desafios para o PT seguir no poder. No Peru, a rejeição generalizada ao sistema político fez com que mais de 40 candidatos fossem apontados para o próximo pleito, com nenhum deles atingindo uma popularidade razoável.

Por sua vez, o fenômeno não vem se repetindo em âmbitos municipais e em entes regionais, com manutenções de partidos no poder em boa parte do mundo. A culpa pela perda do poder de compra vem recaindo sobre os líderes com maior visibilidade. Como lembra o já clichê dos anos 90: “é a economia, estúpido”. No entanto, nesta década, a insatisfação é reforçada pelos algoritmos, que lucram bastante com uma economia específica: a da atenção. 

Matheus Gouvea de Andrade é jornalista focado em temas internacionais baseado na América Latina. Trabalhou no Grupo Estado e publicou em veículos como BBC, Rest of World, Climate Change News, DW Brasil, Folha de S. Paulo, Piauí e Público, escrevendo a partir de Lisboa, Medellín, Lima, Buenos Aires e São Paulo

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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