Como o medo motiva o crescimento da extrema-direita europeia
Os discursos xenófobos têm ganhado espaço no continente, mas razões para isso parecem superar as fronteiras físicas
O fenômeno da extrema-direita na Europa é algo crescente. Itália, França, Alemanha, Portugal e Reino Unido são exemplos de países que, antes democraticamente estáveis, agora apresentam sintomas de radicalização e xenofobia. Mas um dado curioso é que a ultradireita europeia é mais presente nas cidades menos populosas e de interior dos países, justamente onde se concentram menos imigrantes, os quais tendem a ficar nos grandes centros urbanos.
Esse cenário é um dos fatores que levaram pesquisadores a supor a hipótese de que as mudanças demográficas – o crescimento populacional de estrangeiros e culturas distintas – não bastam para explicar esse medo e apreensão que se cria em torno disso. Augusto Veloso, do Grupo de Estudos Mundo Árabe, diz que não é uma questão de números, mas sim de narrativas. “A partir da presença dessas pessoas é construída essa sensação de ameaça a partir de um número; pode ser cem, pode ser mil, pode ser 1 milhão”.
Um mundo em mudança
Augusto Veloso comenta que a Europa, historicamente hegemônica na posição de poder, tem interesses em se proteger de culturas marginalizadas que possam penetrar sua bolha. Na prática, isso se traduz em discursos extremados por parte de um setor da população e também de um nicho político que se aproveita desse medo para se alavancar. “Há uma preocupação em manter essa situação de dominação política e econômica não somente dentro da Europa, mas também da posição global.” O que Veloso diz é que uma análise do micro e do macro precisa ser feita para se entender a questão: há o medo de uma suposta virada cultural dentro da Europa, mas isso também é um reflexo de uma mudança de valores no mundo.
Nesse sentido, o receio deles tem um parcial respaldo na realidade, na medida em que, no aspecto global, críticas estão de fato sendo feitas no mundo acerca da posição dos países do Norte. Não que a Europa esteja acabando ou saindo de uma posição de domínio; longe disso, mas há, sim, cada vez mais questionamentos dessa posição. A perda de uma validação para sua hegemonia, assim, seria um dos fatores que têm gerado receio nos mais conservadores.
Pensamentos anticoloniais
Paulo Daniel Farah, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)da USP, complementa as questões levantadas por Augusto Veloso, analisando porque mudanças no modo de se pensar o mundo afetam os tradicionalistas europeus: “A legitimação na Europa, internamente, sempre se baseou em um discurso que, de um lado, destacava a necessidade de levar os valores europeus ao mundo como um todo e, de outro, mobilizava e fomentava o medo contra os ‘incivilizados’ africanos, árabes e muçulmanos, entre outros povos”.
Esses povos agora não só entram na Europa, mas buscam assumir maior protagonismo mundial, a exemplo do Brics e do crescimento econômico do mundo árabe. Do ponto de vista da hegemonia, “eles precisariam ser controlados e dominados para que não ameacem os valores do Norte global. A retirada da condição humana de certos grupos foi uma estratégia historicamente adotada e que continua até os dias de hoje”, afirma Farah.
Colocar os estrangeiros, em especial os muçulmanos e racializados, numa posição de problemáticos e criminosos é um dos pontos mais levantados sobre o assunto. Augusto Veloso, em sua tese de mestrado, destaca a repercussão midiática negativa que os estrangeiros carregam na Europa. Veloso escreve que algumas matérias veiculadas “argumentam que ‘uma proibição generalizada do véu’ pode facilitar a integração e que ‘como austríacos, devemos requerer que os imigrantes façam adaptações culturais, se quiserem permanecer aqui’”.
O medo
Segundo Farah, esse clima de tensão não é recente. O processo histórico que o legitimou até então vem desde o período da colonização e ocupação de praticamente todos os países africanos e árabes, com base num discurso e em práticas de inferiorização dessas populações. “Isso fica nítido na ideia de que seria necessária uma missão civilizatória para salvar esses povos de si mesmos e para levar a eles a verdadeira civilização, que seria a europeia e, posteriormente, a euro-americana”, diz ele.
Mas agora, com os movimentos de mudança econômica e cultural no mundo, os discursos de hegemonia estão ficando acuados. Hoje já não há mais a mesma validação dos valores europeus e a dominação do Norte como sendo o “certo”. Paulo Daniel Farah explica: “As pesquisas demonstram que, sem dúvida, o medo também está associado à perda de hegemonia, às críticas ao eurocentrismo e a essa ideia equivocada de que valores europeus são universais, assim como o fortalecimento de novas epistemologias que valorizam e incorporam saberes tradicionalmente marginalizados e excluídos”.
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