06 julho 2022

Competência das instituições eleitorais não afasta ameaça de retrocesso democrático no Brasil

Brasil está à frente dos EUA no ranking mundial de integridade eleitoral, e instituições já demonstraram suficientes autonomia e capacidade para gerir com integridade a competição pelo voto, mas não é suficiente para garantir o respeito aos resultados das urnas, que depende de outros atores e instituições. Para a professora Gabriela Tarouco, o desconhecimento público sobre o modelo brasileiro de governança eleitoral se junta a suspeitas levantadas por Jair Bolsonaro para incluir o Brasil em onda global de desafios à democracia

Brasil está à frente dos EUA no ranking mundial de integridade eleitoral, e instituições já demonstraram suficientes autonomia e capacidade para gerir com integridade a competição pelo voto, mas não é suficiente para garantir o respeito aos resultados das urnas, que depende de outros atores e instituições. Para a professora Gabriela Tarouco, o desconhecimento público sobre o modelo brasileiro de governança eleitoral se junta a suspeitas levantadas por Jair Bolsonaro para incluir o Brasil em onda global de desafios à democracia

TSE apresenta resultado do teste de segurança da urna eletrônica (Abdias Pinheiro/TSE)

Por Gabriela Tarouco*

A democracia vem enfrentando sérios desafios ao redor do mundo com a eleição de governos que desafiam as instituições, no que vem sendo chamado de democratic backsliding. Uma das estratégias destas lideranças é questionar o processo eleitoral e desafiar os seus resultados, como aconteceu nos Estados Unidos após a derrota de Donald Trump. O debate recente sobre isso no Brasil se alimenta das suspeitas levantadas pelo presidente mas também do compreensível desconhecimento público sobre o modelo brasileiro de governança eleitoral. Neste artigo argumento que nossas instituições eleitorais já demonstraram suficientes autonomia e capacidade para gerir com integridade a competição eleitoral, e que infelizmente isso não é suficiente para afastar a ameaça de retrocesso democrático.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/eleicoes-ranking-global-classifica-os-eua-como-a-mais-fraca-entre-as-democracias-liberais/

O modelo brasileiro de governança eleitoral

Frequentemente se diz que o modelo brasileiro de governança eleitoral seria sui generis, ou seja, que nossa forma de gerir a competição política seria esdrúxula, não encontrando par em outros países. Este diagnóstico apressado, entretanto, é um equívoco. O Brasil compartilha características do seu desenho institucional com vários outros países, especialmente da América Latina.

O que a ciência política conceitua como governança eleitoral inclui a regulação, a administração e a adjudicação da competição eleitoral. No Brasil, a regulação é exercida pelo Congresso Nacional no processo legislativo e de forma complementar pelo TSE através da emissão de resoluções. A administração das eleições e o julgamento dos conflitos são exercidos pelas mesmas instituições: o TSE e os TREs, que são órgãos do poder judiciário. Nada disso é exclusividade do Brasil.

Todo órgão de gestão eleitoral exerce em algum nível alguma atividade regulatória, sem a qual seria impossível organizar e conduzir eleições. É através da emissão de resoluções que procedimentos administrativos e logísticos são definidos, que critérios são uniformizados, que direitos e deveres definidos na legislação são operacionalizados na prática.

A concentração das funções de administração e adjudicação no mesmo órgão, por sua vez, também acontece em vários países, incluindo Costa Rica e Uruguai, dois exemplos de democracia na América Latina. A inserção do tribunal de justiça eleitoral na estrutura do poder judiciário tampouco é original: também ocorre em outros países, inclusive Paraguai e México, por exemplo.

‘O desenho brasileiro de gestão eleitoral tem funcionado por décadas com estabilidade, autonomia e capacidade operacional’

Assim, a governança eleitoral no Brasil, assim como nos demais países, é uma combinação de alternativas institucionais que podem até ser criticadas, mas não por serem esdrúxulas. O desenho brasileiro de gestão eleitoral tem funcionado por décadas com estabilidade, autonomia e capacidade operacional. Acima de tudo, tem permitido adotar aperfeiçoamentos tecnológicos que aumentaram a integridade das eleições ao longo dos anos, como mostrou o desafio das eleições municipais de 2020.

Capacidade: o teste de organizar eleições sob a pandemia

As eleições municipais de 2020 podem ser consideradas um marco na trajetória da democracia brasileira porque exigiram adaptações normativas e tecnológicas e demandaram decisões do legislativo e do judiciário.

Como ocorreu em outros países, a realização de eleições durante a pandemia foi vista com preocupação. As atividades públicas do ciclo eleitoral (como a campanha e a votação) poderiam implicar riscos de propagação do Covid-19, mas o seu cancelamento implicaria riscos para a democracia. Parecia haver um dilema entre garantir direitos políticos e proteger o direito à saúde.

Adiada pelo legislativo a data das eleições, coube ao TSE tomar uma série de outras decisões para garantir a lisura e a acessibilidade no direito ao voto e garantir que seu exercício não representasse risco à saúde dos eleitores. A solicitação do título de eleitor passou a ser feita remotamente, a identificação por biometria foi suspensa, a justificativa da ausência passou a ser recebida pelo aplicativo do e-título e um protocolo de segurança sanitária foi estabelecido para as rotinas das seções eleitorais.

‘A realização das eleições da pandemia mostrou por um lado a capacidade do TSE, mas por outro os limites do seu alcance’

A realização das eleições da pandemia mostrou por um lado a capacidade do TSE, mas por outro os limites do seu alcance. A segurança sanitária nas atividades de campanha, por exemplo, dependia de regulação dos executivos locais que raramente conseguiram impedir aglomerações de candidatos e eleitores. As medidas comportamentais impopulares de combate à pandemia (como o isolamento social, por exemplo) variaram conforme a discricionariedade dos governos. A limitação ou liberação de atividades públicas de campanha, mais importantes para candidatos desafiantes do que para mandatários que pleiteavam reeleição, era prerrogativa dos próprios prefeitos, partes interessadas no resultado. A lição aprendida em 2020 foi que a governança eleitoral no Brasil tem capacidade para garantir o direito de escolha dos eleitores, mas não é suficiente para garantir segurança durante todo o ciclo eleitoral.

Autonomia: o teste de prover transparência

Um dos aspectos fundamentais da integridade eleitoral é a certeza sobre os procedimentos, ou seja, a segurança de que todos os processos, rotinas e decisões seguirão as mesmas regras públicas, estando a salvo de arbitrariedades. A certeza sobre os processos de governança eleitoral é o que garante a incerteza sobre os resultados da competição, ou seja, assegura que a vitória será definida apenas pelo voto no dia da eleição, sem qualquer influência prévia de qualquer autoridade.

‘Um dos aspectos fundamentais da integridade eleitoral é a certeza sobre os procedimentos, rotinas e decisões seguirão as mesmas regras públicas’

Tanto a certeza sobre os procedimentos quanto a incerteza sobre os resultados precisam ser demonstrados publicamente através de mecanismos de transparência da governança eleitoral. No Brasil, o TSE dá visibilidade de suas ações através de vários meios, aos quais acrescentou recentemente a Comissão de Transparência das Eleições. A referida comissão inclui representantes de várias organizações da sociedade de quem se espera que auxiliem o TSE a difundir informação segura e a remover obstáculos no acesso da sociedade ao conhecimento dos processos eleitorais. No momento em que este artigo está sendo escrito, várias das sugestões feitas por membros da Comissão foram acatadas, outras seguem em análise para o futuro e algumas foram rejeitadas após análise.

A autonomia da gestão eleitoral, fundamental para a integridade eleitoral, encontra-se justamente no encontro da transparência com a responsabilidade. A transparência permite questionamentos e suscita sugestões, cuja adoção é prerrogativa da autoridade eleitoral. Acatar ou não qualquer sugestão é responsabilidade do TSE, instituição legítima para organizar e administrar a competição eleitoral. A sua autonomia reside na separação entre os seus membros (os ministros que tomam as decisões) e os atores políticos que têm interesse na competição (governo e partidos políticos).

A publicidade dada recentemente ao debate entre o TSE e o representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência revela que o TSE mantém sua autonomia decisória e a independência em relação aos competidores políticos (neste caso em relação governo, representado pelo Ministério da Defesa, signatário de algumas das sugestões).

O Brasil e o ranking de Integridade Eleitoral

No ranking mundial do Índice de Percepção de Integridade Eleitoral, o Brasil se situa em melhor posição que os Estados Unidos, mas abaixo de dez outros países da América Latina. Produzido pelo Electoral Integrity Project, o índice varia de 0 a 100 e resulta da agregação de avaliações feitas por especialistas sobre diversos aspectos do ciclo eleitoral. Na eleição de 2014 o Brasil alcançou a pontuação geral de 66,3 (classificada como alto nível de integridade eleitoral) mas caiu para 61,2 na eleição de 2018 (nível moderado de integridade eleitoral).

‘No ranking mundial do Índice de Percepção de Integridade Eleitoral, o Brasil se situa em melhor posição que os Estados Unidos, mas abaixo de dez outros países da América Latina’

Três tipos de mudanças ocorreram de 2014 para 2018 que podem ter afetado a avaliação dos especialistas: mudanças relacionadas à regulação da competição, mudanças na adjudicação dos conflitos e mudanças nos atos e posicionamentos de atores políticos relevantes.

Ranking de nações de acordo com a percepção de integridade de suas eleições. As percepções de integridade eleitoral são medidas por especialistas para cada país um mês após o encerramento das eleições. Pede-se aos especialistas que avaliem a qualidade das eleições nacionais em 11 subdimensões: leis eleitorais; procedimentos eleitorais; limites distritais; recenseamento eleitoral; registro do partido; cobertura da mídia; financiamento de campanha; processo de votação; contagem de votos; resultados; e autoridades eleitorais. Esses itens somam um Índice de Integridade Eleitoral geral pontuado de 0 a 100

No nível da regulação, duas reformas legislativas afetaram a competição: em 2015 foram alterados dispositivos legais sobre custeio das campanhas eleitorais, administração dos partidos políticos e participação feminina; em 2017 foi instituído o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).

No nível da adjudicação, o judiciário eleitoral foi acionado após a eleição de 2014 pelo candidato presidencial derrotado e inundado com processos relativos à campanha eleitoral de 2018. O primeiro caso não acarretou qualquer alteração dos resultados, mas revelou uma falta de conformidade que não se espera em democracias estáveis. O segundo implicou uma sobrecarga de demandas judiciais relacionadas ao uso de novas tecnologias nas campanhas, cujo processamento não alcançou a velocidade com que seus efeitos afetam a competição.

Quanto aos atores políticos, durante o ciclo eleitoral de 2018, muita desinformação foi disseminada especialmente via redes sociais, levantando suspeitas e acirrando rivalidades. Como a medida de integridade eleitoral é uma percepção, ela dificilmente sairia intacta dos ataques ao processo eleitoral.

Nenhuma dessas mudanças representava risco à lisura da administração eleitoral, mas todas afetam a percepção geral de integridade. Uma eleição pode ter sua qualidade reduzida por vários fatores externos à sua gestão pelas autoridades eleitorais e possivelmente foi isso que afetou a queda do Brasil no ranking mundial em 2018.

‘O respeito aos resultados das urnas, indispensável em uma democracia, não pode ser garantido pela governança eleitoral, depende de atores e outras instituições’

A ciência política já demonstrou que instituições políticas importam, e também que não são uma panaceia. A relação entre governança eleitoral e integridade eleitoral no Brasil é um claro exemplo disso. O respeito aos resultados das urnas, indispensável em uma democracia, não pode ser garantido pela governança eleitoral, depende de atores e outras instituições. A nossa jovem democracia vem sofrendo ataques em uma das suas frentes mais fundamentais, que é o processo eleitoral. Entretanto, o dano real que estes ataques podem causar não é uma questão de administração eleitoral.


*Gabriela Tarouco é professora de ciência política na Universidade Federal de Pernambuco e líder do grupo de pesquisa Partidos e Eleições na mesma instituição

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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