Daniel Buarque: A ação de Bolsonaro contra o prestígio do Brasil no mundo
Grandes potências indicam uma série de caminhos que podem ajudar o país a aumentar seu status internacional. Avaliação dessa percepção em comparação com a política externa de Bolsonaro mostra que o governo brasileiro corroeu as ‘pontes’ que poderiam ajudar o país a se tornar um ator importante no mundo
Grandes potências indicam uma série de caminhos que podem ajudar o país a aumentar seu status internacional. Avaliação dessa percepção em comparação com a política externa de Bolsonaro mostra que o governo brasileiro corroeu as ‘pontes’ que poderiam ajudar o país a se tornar um ator importante no mundo
Por Daniel Buarque*
A busca do Brasil por um lugar de prestígio na política global depende em ampla medida do nível de reconhecimento que o país alcança junto a nações que já têm um status internacional elevado. A percepção externa sobre o Brasil, entretanto, indica que o país está longe de ser aceito como uma grande potência e que deu passos para trás nesse processo nos últimos anos. Em vez de impulsionar o status do país, o governo de Jair Bolsonaro “destruiu pontes” que poderiam levar o Brasil a alcançar um status mais alto.
Este é um dos temas discutidos no artigo acadêmico Burning bridges: The paths to increase Brazil’s international status and Bolsonaro’s ‘new foreign policy’, preparado com base em dados da minha pesquisa de doutorado no King’s College London (em parceria com a USP) e publicado neste mês pela revista Carta Internacional. Esta avaliação já havia sido apresentada no artigo de opinião Bolsonaro derruba pontes para construção de prestígio internacional do Brasil, publicado em O Globo em 2020, mas foi expandida e consolidada em uma análise sistemática de dados para se tornar um artigo científico mais formal.
O artigo analisa as percepções estrangeiras sobre a busca por status do Brasil e contrasta com a diplomacia do governo Bolsonaro. Ele se baseia em uma análise temática reflexiva de dados primários de 94 entrevistas com a comunidade de política externa de grandes potências. E argumenta que Bolsonaro corroeu os principais caminhos que as nações poderosas veem como servindo para a construção e expansão do prestígio internacional do Brasil.
Segundo este estudo, do ponto de vista das grandes potências, a melhor forma de um Estado como o Brasil (que não tem muito poder militar) atingir o nível de prestígio de uma grande potência seria focar no desenvolvimento econômico. No entanto, a percepção das elites que compõem a política externa dessas poderosas nações é que, mesmo sem se tornar a potência econômica, o Estado deveria ser capaz de “escolher suas brigas” para melhorar sua reputação e focar em uma série de caminhos que eram vistas como formas legítimas para o país construir seu prestígio e aumentar seu status.
Para os entrevistados neste estudo, os principais caminhos, ou “pontes”, para o Brasil galgar uma posição mais elevada na sociedade estratificada internacional seriam:
- Ter um papel relevante na liderança regional;
- projetar o Brasil através do multilateralismo, construindo poder institucional em diferentes fóruns internacionais e participando de grupos como BRICS e IBAS;
- profissionalismo do corpo diplomático do Brasil, reconhecido como um dos melhores do mundo;
- participações em Operações de Manutenção da Paz da ONU;
- liderança na política ambiental e no combate às mudanças climáticas;
- promoção da democracia e promoção da igualdade por meio da política; e
- papel de mediação em conflitos internacionais.
Muitos dos diferentes caminhos sugeridos pelos entrevistados fazem parte do repertório tradicional da política externa brasileira em sua tentativa histórica de colocar o país no centro das decisões globais mais importantes. Muito dessa tradição foi deixada de lado, entretanto, durante o governo de Bolsonaro, que transformou a política externa brasileira e foi visto internacionalmente como virando a diplomacia do país de cabeça para baixo.
Embora tanto o presidente quanto seu governo frequentemente tenham defendido uma projeção que melhorasse o prestígio do país, as ações durante seu tempo no poder pareceram ter surtido efeito contrário, atacando algumas das “pontes” indicadas para a construção do prestígio do Brasil.
Em termos de liderança regional, Bolsonaro tirou o Brasil da Unasul e tentou incluir sua agenda ideológica nas relações bilaterais e multilaterais, o que fragilizou o papel do Brasil na região, distanciando o país de nações com governos de ideologias diferentes e perdendo a capacidade de representar a região
A construção do multilateralismo também passou por profundas transformações, já que o governo adotou uma narrativa antiglobalista que rejeitava totalmente o ideal de multipolaridade. Além disso, o Brasil se afastou das outras grandes nações emergentes, já que um dos principais “inimigos” escolhidos pela ideologia de Bolsonaro foi a China.
O profissionalismo do Itamaraty também perdeu força na projeção do país, especialmente nos primeiros anos, sob a chancelaria de Ernesto Araújo. Uma agressiva agenda conservadora foi implementada dentro do Itamaraty, rompendo com seu tradicional isolamento e independência. Estudos apontam que o Itamaraty passou por uma reorganização burocrática sem precedentes, excluindo quem discordasse das novas diretrizes.
O governo Bolsonaro também reduziu a participação em missões de paz da ONU. Em 2021, pela primeira vez desde 2004 o Brasil não teve uma participação robusta em missões de paz da ONU. A participação brasileira caiu 72% em 2020 em número de militares, e o orçamento para essas missões caiu 70%.
A liderança ambiental talvez tenha sido a estratégia de busca por status mais afetada por Bolsonaro. Seu governo desistiu de sediar uma cúpula global sobre meio ambiente, reduziu a fiscalização e desregulamentou a proteção dos recursos naturais do Brasil e permitiu um grande aumento no desmatamento e na destruição da Amazônia.
O papel da democracia na construção do status do Brasil também perdeu força sob Bolsonaro. Enquanto esteve no poder, ele fez uma campanha para desacreditar o sistema eleitoral nacional, ameaçou um golpe militar e disse que “só deus” poderia tirá-lo do poder.
Por último, o papel de mediador em conflitos também perdeu força. Embora este seja um caminho controverso, ele também foi alterado. Bolsonaro modificou essa agenda nacional e adotou um discurso intervencionista e belicista, tanto nacional quanto internacionalmente. Essa posição fica clara no apoio ao governo israelense e em sua ação junto aos povos palestinos. Também fica evidente no apoio às ações dos EUA (sob Donald Trump), sob o pretexto de que estes estariam defendendo o Ocidente.
Em suma, a política externa brasileira passou por mudanças radicais após 2019, quando Bolsonaro chegou ao poder, alterou as prioridades e alinhamentos da posição internacional do Brasil, travou brigas com aliados históricos, ameaçou importantes relações econômicas e afetou a forma como o país é visto no resto do mundo. É verdade que, desde a volta de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, em 2023, o país voltou a reconstruir estes caminhos tradicionais de busca por prestígio, mas é importante avaliar detalhadamente o legado de Bolsonaro, especialmente para entender até que ponto o dano às “pontes” pode ter sido permanente ou o quanto elas podem ser levantadas novamente.
*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador do pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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