Deveriam os homens continuar tendo direitos civis?
Não precisamos de distopia para falar do show de horrores que é viver sob a égide do patriarcado, sistema caracterizado pela dominação masculina na sociedade (política, economia, cultura e religião) e sobre os corpos das mulheres

Nos últimos anos tem sido uma prática comum recorrer a distopias totalitárias quando os direitos das mulheres são atacados – o que acontece praticamente toda semana.
Acontece na fala de líderes políticos, de produtores de conteúdo da “machosfera”, de empresários, atores falidos que se reinventaram como bastiões da família tradicional. Acontece quando deputadas, senadoras e até presidentas são vítimas de violência política de gênero.
Direitos das mulheres são atacados quando deputados formam maioria para alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente de modo a revogar mecanismos de proteção para meninas violentadas. Quando governos reduzem substancialmente as verbas para políticas de amparo às vítimas de violência doméstica. Quando aliadas do patriarcado tentam alterar a Lei Maria da Penha para proteger os agressores.
Direitos das mulheres são atacados quando agressões e ameaças de ex-companheiros são denunciadas e estes violam as medidas restritivas. Quando vítimas de violência sexual são descredibilizadas e/ou revitimizadas pelos meios de comunicação, pelas autoridades policiais ou pela justiça. Quando na hora de parir, mulheres são violentadas por profissionais da saúde. Hospitais recusam a realizar procedimentos como colocação de DIU ou cirurgia de laqueadura.
‘Não precisamos de distopia para falar do show de horrores que é viver sob a égide do patriarcado, sistema caracterizado pela dominação masculina na sociedade e sobre os corpos das mulheres’
Não precisamos de distopia para falar do show de horrores que é viver sob a égide do patriarcado, sistema caracterizado pela dominação masculina na sociedade (política, economia, cultura e religião) e sobre os corpos das mulheres.
O controle da reprodução é uma forma pela qual a dominação se exerce, mas não é a única. A violência, neste caso, não é produto de monstros com a mente adoecida. É um espectro que assombra a existência, criando a falsa promessa de que basta se comportar bem que nada ruim irá acontecer. Acontece e não acontece pouco.
Chega de energia feminina, precisamos de energia feminista
Mais do que uma distopia, precisamos de uma utopia feminista que nos ajude a pensar o mundo fora dessa chave.
No livro O país das mulheres (2010), Gioconda Belli conta a história de um país latino-americano fictício governado por mulheres.
Ao tomar posse, a presidenta Viviana Sansón, determina que os cargos públicos sejam ocupados por mulheres. Os homens devem ficar em casa se ocupando das tarefas domésticas, da criação dos filhos e se engajar no trabalho comunitário de preparo de refeições e manutenção das vias públicas nos locais onde residem.
Os empregos dos homens seriam devolvidos depois de um certo prazo. A ideia é que eles jamais teriam empatia pelo trabalho gratuito fornecido pelas mulheres, se não vivessem essa realidade.
‘Trata-se de um exercício de alteridade, no qual as condutas masculinas passam a ser direcionadas para o cuidado doméstico e compromisso com a coletividade’
Não se trata de opressão, porque os homens não passam a ser violentados ou ter seus corpos controlados por serem homens. Trata-se de um exercício de alteridade, no qual as condutas masculinas, ao invés de voltadas para a violência e dominação, passam a ser direcionadas para o cuidado doméstico e compromisso com a coletividade.
Resultado: a presidenta toma um tiro. Calma, não é spoiler, é só o começo da história.
Trata-se do exercício de imaginar uma sociedade governada por mulheres que não têm compromisso em agradar o patriarcado. Este exercício prevê que o desejo de dominação e a violência masculina não morreriam facilmente.
Mas, se já estão nos matando, o que temos a perder em tentar mudar as estruturas que sustentam a dominação?
Totalmente descolado da produção acadêmica sobre gênero, o feminismo das redes sociais (sempre de olho na monetização ou em usar o tema como plataforma eleitoral) não consegue se desvencilhar do estereótipo patriarcal de docilidade feminina.
‘No feminismo das redes sociais, a boa feminista quer direitos iguais, nunca vingança’
A boa feminista quer direitos iguais, nunca vingança. Ela acolhe quem facilmente lhe jogaria numa fogueira. Ela é feminina, usa maquiagem, é magra, casada, mãe, boa dona de casa. Ela precisa provar que não perdeu a “energia feminina”.
Sobra conteúdo dizendo que você pode ser feminista e se depilar ou saber botar uma bela mesa. Combater o patriarcado que é bom, ninguém quer.
Como diz Virginie Despentes (2016), este tipo de atitude é uma maneira de tranquilizar os homens.
Manter-se feminina e preservar uma aura de docilidade e acolhimento para não ser confundida com as outras, as feministas más, as muito barulhentas, radicais, que recusam a viver para agradar o patriarcado. Ninguém quer se a feminista raivosa, peluda, esquisita, respondona, que engorda, envelhece, se relaciona com mulheres, não quer ter filhos, tem filhos e não romantiza a maternidade, ninguém quer ter a pecha de agressiva, porque isso não é muito feminino. Tem que falar baixo, com jeitinho, acolher todo mundo, que fofa ela.
‘Enquanto isso, a organização da coletividade segue sendo uma prerrogativa masculina’
Enquanto isso, a organização da coletividade segue sendo uma prerrogativa masculina. A propagação de discursos misóginos e a existência de homens que se sentem muito à vontade para nos dizer como devemos viver para termos direito de ser consideradas humanas é interpretada como um sintoma da crise da masculinidade. Como se a parte dominada não estivesse se comportando direito. Como se esses homens fossem apenas motivo de chacota, e não perigosos. Como se externar raiva por não estarmos seguras em nenhum lugar fosse de algum modo equivalente aos 718 feminicídios registrados no Brasil apenas no primeiro semestre de 2025.
Criminalização não é solução
A reação mais comum aos casos alarmantes de violência contra a mulher ocorridos no último fim de semana de novembro é o clamor pela criminalização/ampliação das penalidades. Em menor escala, fala-se que a solução virá pela via eleitoral (sim, claro), pela eleição de um Congresso mais comprometido com o combate à violência de gênero.
Entendo que para maioria das pessoas o Estado é o único vetor de ação política. Contudo, acho importante pesar a realidade social brasileira antes de abraçar o discurso punitivista. Levar em consideração que população carcerária é predominantemente formada por homens negros e o fato de que os crimes que mais condenam estão ligados ao tráfico de drogas ilícitas e ao patrimônio (roubos e furtos). Sem falar que 30% dos detentos ainda não passaram por julgamento. Ao mesmo, é preciso considerar que 1- A Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) já é um agravamento de penalidades 2- Tanto esta quanto a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), voltada pro combate à violência doméstica não estão ajudando a preservar nossas vidas.
‘É preciso considerar o racismo estrutural ao reivindicar mais punição, porque não se pode resolver o problema da violência de gênero agravando o encarceramento em massa’
Ou seja, é preciso considerar o racismo estrutural ao reivindicar mais punição, porque não se pode resolver o problema da violência de gênero agravando o encarceramento em massa. Antes disso, temos de entender onde o que já existe está falhando e como proporcionar segurança e reparação para as vítimas da violência de gênero após efetuarem as denúncias.
Interditar ou dificultar a circulação de discurso misógino poderia ajudar a evitar que adolescentes e homens jovens fossem seduzidos por esta retórica? Talvez. Mas de que adianta criminalizar a misoginia laica, se a religiosa continuar liberada? Se sacerdotes e influenciadores seguirem ensinando submissão feminina enquanto feminicidas, abusadores e agressores são acolhidos por essas comunidades?
‘É justamente dessa força despida da feminilidade dócil que precisamos agora’
Não adianta criminalizar a misoginia, se nós continuarmos premiando as mais capazes de suportar a dominação masculina. Como descreve Despentes, as mais “encantadoras, as charmosas, as mais amigáveis” são as que ocupam bons cargos, porque ainda são os homens, na maioria das vezes, que aceitam ou excluem mulheres de posições de poder. As outras, “as furiosas, as feias, as de cabeça dura são asfixiadas, descartadas, anuladas”. No entanto, é justamente dessa força despida da feminilidade dócil que precisamos agora.
P.S. Se você é homem e chegou até aqui procurando a proposta de revogar seus direitos, espero que tenha entendido a mensagem. O que para vocês é clickbait, para as mulheres é uma possibilidade real.
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional