Devido à usina de Belo Monte, tragédia da seca já é realidade há tempos na Volta Grande do Xingu
A seca na Volta Grande do Xingu, no Pará, é uma tragédia em andamento, causada pelo desvio das águas do rio para geração de energia na usina hidrelétrica de Belo Monte, e agravada pela seca deste ano. Esses impactos se acumulam e estão levando à morte desse trecho único do rio, com consequências terríveis para a biodiversidade e para as populações indígenas e ribeirinhas que dependem dele.
A seca na Volta Grande do Xingu, no Pará, é uma tragédia em andamento, causada pelo desvio das águas do rio para geração de energia na usina hidrelétrica de Belo Monte, e agravada pela seca deste ano. Esses impactos se acumulam e estão levando à morte desse trecho único do rio, com consequências terríveis para a biodiversidade e para as populações indígenas e ribeirinhas que dependem dele
Por Camila Ribas, Janice Muriel-Cunha e Juarez Carlos Brito Pezzuti*
Existe um trecho de um grande rio amazônico onde as florestas alagáveis já estão morrendo há tempos, onde os peixes e tracajás agonizam em poças secas e não conseguem mais se reproduzir, e as populações indígenas e ribeirinhas já tiveram que alterar seus modos de vida por causa da falta de água. Se hoje os efeitos da seca severa que atinge a Amazônia chocam e geram discussão, no Rio Xingu eles são conhecidos desde 2016 sem que a maior parte da sociedade brasileira tome conhecimento.
A seca na Volta Grande do Xingu, no Pará, é uma tragédia em andamento, causada pelo desvio das águas do rio para geração de energia na usina hidrelétrica de Belo Monte, e agravada pela seca deste ano. Esses impactos se acumulam e estão levando à morte desse trecho único do rio, com consequências terríveis para a biodiversidade e para as populações indígenas e ribeirinhas que dependem dele.
Enquanto isso, a operação da usina de Belo Monte é mantida. Mesmo em um ano de seca extrema, a pouca água que chegar das cabeceiras do Xingu continuará sendo desviada para gerar energia. Uma energia chamada de “limpa” em vários textos publicitários do consórcio Norte Energia, que opera o complexo da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Mas que as populações indígenas e ribeirinhas tentam mostrar para o mundo que está matando os ecossistemas locais. E sem esses ecossistemas funcionando, suas fontes de alimento e de vida vão acabar.
Monitoramento independente
Desde 2014, indígenas e ribeirinhos se organizaram para coletar dados sobre a biodiversidade e os recursos naturais na Volta Grande do Xingu, buscando documentar as condições anteriores à construção da barragem e os graves impactos que só eles e pesquisadores independentes pareciam prever na região. Com a parceria do Ministério Público Federal de Altamira, eles buscaram colaborações com cientistas para desenvolver um programa de monitoramento independente da concessionária que opera a usina – que pela lei brasileira é a responsável por acompanhar as consequências de suas próprias ações.
Formou-se, assim, o Monitoramento Ambiental e Territorial Independente da Volta Grande do Xingu (MATI-VGX), liderado por Josiel Juruna, vice-liderança da aldeia Miratu, da Terra Indígena (TI) Paquiçamba, em colaboração com grupos liderados por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (Dra. Janice Cunha, Dr. Juarez Pezzuti), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Dra. Camila Ribas, Dr. Adriano Quaresma, Dr. Jansen Zuanon), Universidade Federal do Amazonas (Dr. Ingo Wahnfried), Instituto Socioambiental (Dra. Thais Mantovanelli), MPF-PA (Dra. Cristiane Carneiro) e Universidade de São Paulo (Dr. André Sawakuchi).
E o que esse grupo de pesquisadores tem visto e documentado na Volta Grande do Xingu é o que indígenas e ribeirinhos anteviam desde o início: a morte. A área é dominada por igapós, sarobais e corredeiras, ecossistemas amazônicos únicos que dependem do alagamento sazonal. Alagamento que quase não existe mais em razão do desvio da maior parte da água do rio para geração de energia. Com a falta de uma estação de cheia do Xingu que tenha amplitude e duração adequadas, desde 2016 – e principalmente desde 2019, quando a usina começou a operar em capacidade mais alta – os ecossistemas na Volta Grande do Xingu já vinham sofrendo enormes impactos ambientais. E com a seca deste ano eles estão morrendo ainda mais rapidamente.
Impactos evidentes
As árvores e arbustos dos sarobais crescem sobre os pedrais do rio e, em um ecossistema saudável, produzem frutos que caem na água na época de cheia e alimentam peixes e tracajás. Na Volta Grande do Xingu, grandes extensões de sarobais estão secos, mortos. Os igapós, que são as florestas alagáveis da região, na ausência do alagamento sazonal estão se tornando uma vegetação secundária, com o sub-bosque dominado por plantas invasoras e o chão seco dominado por ninhos de formigas cortadeiras.
As frutas das árvores do igapó também não caem mais na água para alimentar os animais aquáticos. A morte das florestas de igapó é mais lenta, mas os serviços ambientais que elas prestavam para o ecossistema já estão comprometidos. Até as aves típicas de igapós saudáveis são minoria nessas florestas que não alagam mais. Elas estão sendo substituídas por aves de florestas secundárias e da floresta não alagável, que também sofre com o desmatamento nas margens.
O controle do ciclo de enchente, cheia, vazante e seca na Volta Grande do Xingu pelo complexo de Belo Monte agora também impede que incontáveis locais de reprodução dos peixes, as piracemas, sejam alagados na época certa e pelo tempo necessário para a reprodução. Como consequência, os peixes não desovam, ou desovam em locais que logo secam, causando a morte de milhões de ovos, como foi registrado recentemente pelos pesquisadores indígenas e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Este ciclo das águas alterado, desconhecido pelos peixes, também faz com que muitos deles fiquem presos em poças no recuo abrupto da água. O fenômeno de animais morrendo em poças ou lagos que secam rapidamente, que ganhou destaque com a seca recente em várias partes da Amazônia, já tem sido documentado pelos moradores da Volta Grande do Xingu desde que Belo Monte passou a (des)regular o ciclo das águas.
Assim, os peixes e tracajás da Volta Grande do Xingu não têm mais alimento, não têm mais onde se reproduzir e morrem em poças rasas e quentes, desconectadas do rio. Recentemente, peixes deformados e adoecidos foram registrados na região. Com a morte da vegetação nos sarobais, os ninhos de tracajás estão sujeitos a altas temperaturas, que causam a morte dos embriões.
O monitoramento independente realizado pelas populações indígenas e ribeirinhas mostra redução na abundância, no peso e tamanho dos peixes e tracajás, com consequente redução na pesca, base da sua alimentação. Na Volta Grande do Xingu, até o período do defeso, que protegeria o ciclo de vida dos peixes, tem sido desrespeitado pela operação da usina de Belo Monte, que insiste em segurar a água quando a fauna aquática mais precisa, ou seja, no período de reprodução.
Partilha da água
Mesmo afetando o ciclo hidrológico de duas Terras Indígenas (TI Paquiçamba e TI Arara da Volta Grande), a operação do complexo hidrelétrico segue submetendo a região a um regime de vazão que está matando o ecossistema que sustenta as populações humanas locais, enquanto a empresa se recusa a implementar um esquema alternativo de partilha da água que assegure a manutenção da vida na região. Os impactos ambientais de Belo Monte agora são uma realidade evidente, e mesmo assim continuam sendo ignorados pelo monitoramento oficial conduzido pela concessionária Norte Energia.
A Amazônia e a Volta Grande do Xingu não devem morrer caladas em prol de um desenvolvimento que só traz morte, a curto, médio ou longo prazo. A vida na Volta Grande do Xingu pode e deve ser mantida, e isso precisa ser feito através de uma rediscussão da partilha da água. Em 15 de novembro começa mais uma vez o período de proteção à reprodução natural dos peixes, o defeso, e, sem água, mais uma estação reprodutiva será afetada. É urgente que a água seja liberada na Volta Grande do Xingu e alcance as piracemas e as comunidades que ali resistem tentando proteger o rio.
Camila Ribas é pesquisadora no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA);
Janice Muriel-Cunha é professora na Universidade Federal do Pará (UFPA) e
Juarez Carlos Brito Pezzuti é professor na Universidade Federal do Pará (UFPA)
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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