Dilemas da União Europeia – Mais que um mercado, menos que uma solução
Estudos de fôlego buscam sugerir saídas para os dilemas da União Europeia, que vive uma situação de baixo crescimento econômico e descrédito da democracia representativa, com aumento da rejeição à imigração e aumento do nacionalismo
Analistas críticos têm identificado uma interligação profunda entre as duas crises contemporâneas do liberalismo: o baixo crescimento econômico, que conduz o centro do sistema à estagnação, e o descrédito da democracia representativa, que resulta em radicalização política, também em países da periferia.
O esgotamento do modelo exportador abalou fortemente a Alemanha, mas França, Polônia e Itália também sofrem sérias consequências da maior dependência dos Estados Unidos e de seu instrumento de manutenção da hegemonia estratégica, a Otan.
A guerra na Ucrânia agrava o declínio em curso. Volumosas importações agrícolas ucranianas (extra-UE) impactaram a renda dos agricultores comunitários, enquanto a restrição no fornecimento de gás russo fez subir todos os preços, pelo alto custo de triangulação comercial da energia. O avanço da imigração e dos refugiados, distorcido pela manipulação de mídias desreguladas, alimentou o nacionalismo e a xenofobia, adormecidos por décadas sob o manto da integração.
Parte significativa do eleitorado passou a rejeitar o sistema político e, em alguns casos, a própria democracia, vistos como incapazes de conter a queda do poder aquisitivo e de prevenir a guerra. A extrema-direita e uma nova esquerda deslocaram o apoio aos partidos da direita tradicional e da social-democracia, desvitalizados pela ortodoxia das políticas aplicadas a partir dos anos 90. Em defesa do que restou de seu bem-estar, parcela significativa da população escolheu sacrificar os estrangeiros e a própria noção de civilidade que, na visão europeia do pós-guerra, deveria ser uma aspiração global.
Dois estudos de fôlego recentes, encomendados por instituições comunitárias, buscam sugerir saídas para os dilemas da União Europeia.
O relatório do ex-diretor do Banco Central Europeu, Mario Draghi, intitulado O futuro da competitividade europeia, atribui a erosão de produtividade do continente ao fracasso em acompanhar a revolução digital ocorrida nos EUA.
Em sua ótica, o esgotamento dos “dividendos” da paz, do livre comércio internacional e da energia barata colocou a Europa diante de desafios simultâneos em tecnologia, descarbonização e segurança. Em cenário geopolítico complexo, somente uma mudança de rumo poderia evitar a corrosão de pelo menos um dos três valores europeus fundamentais, que seriam o bem-estar, a liberdade e a proteção do meio ambiente.
O economista sugere como recurso imediato a integração da inteligência artificial nos ramos em que a Europa ainda desfruta de capacidades, como indústria automotiva, robótica, transporte de passageiros e fretes. É preciso igualmente sustar a decadência do setor farmacêutico, dependente de insumos e produtos acabados importados, e reduzir o gap entre pesquisa acadêmica, inovação e comercialização, de forma a converter “inventors into investors”.
Em certas áreas de ponta, como as clouds de dados, entretanto, seria imprescindível cooperar com companhias dos EUA, desde que encontradas soluções soberanas, como o uso de sistemas de criptografia europeus.
O texto apresenta como diretriz geral a adoção de políticas fiscais de estímulo à produção industrial, políticas comerciais de incentivo à competição e uma política externa econômica que garanta o fornecimento de matérias primas para as cadeias produtivas, com acordos de comércio e investimentos preferenciais com países exportadores de minerais críticos.
Alerta para a necessidade de planejamento e organização comunitária para que a descarbonização da economia não gere efeitos negativos em certos países-membros, tendo em conta vulnerabilidades energéticas estruturais: carência de recursos naturais, alta volatilidade do mercado de gás e precariedade das redes elétricas, além do excessivo peso dos impostos sobre a energia como fonte fiscal.
Draghi é a favor do aumento dos investimentos em defesa, da produção de armas padronizadas em escala continental e da coordenação das compras públicas de equipamentos militares.
Em sua opinião, a tentativa de promover um choque de inovação na produção exige companhias maiores (“campeões nacionais”), mas não deve recorrer à asfixia da competição ou ao rebaixamento dos custos de mão-de-obra, e sim ao investimento em altas habilidades, por meio de capacitação e treinamento contínuos.
Draghi situa obstáculos importantes no âmbito institucional. Menos regulação, especialmente para a indústria digital, simplificação das regras de tomada de decisão e redução dos procedimentos administrativos exigidos, em particular, das pequenas e médias empresas, são as principais medidas aconselhadas.
O ex-presidente do BCE defende mais integração no plano supranacional. Os países-membros devem resistir ao apelo da subsidiariedade e privilegiar o financiamento estatal conjunto ao setor privado, em áreas como computação quântica, inteligência artificial e conectividade, que ele considera bens públicos. Seria recomendável completar a união dos mercados de capitais, com a emissão de títulos comuns de dívida soberana, oferta de fundos de previdência privada e relançamento da securitização.
Já o relatório do ex-primeiro-ministro da Itália, Enrico Letta, sob o título Muito mais que um mercado, foca especificamente nos unfinished business´ da liberalização comercial. O deputado pelo Partido Democrático e presidente do Instituto Jacques Delors coincide no diagnóstico de que setores definidos como estratégicos para o poder nacional – energia, tecnologias da informação, finanças – ficaram fora do mercado comum e por isso se encontram hoje ultrapassados.
A fragmentação seria o principal desafio a vencer. Melhorar a conexão da infraestrutura entre as capitais europeias (trens de alta velocidade e redes elétricas, por exemplo) é essencial para possibilitar a transição verde, a economia digital e a segurança coletiva. Em comum com Draghi, a receita de uma política industrial europeia, para tentar conter a queda de posição no mercado mundial de produção de manufaturas.
O caminho indicado por Letta acrescenta a adoção de um código europeu para os negócios, na linha de mais regulação. Refere-se ainda a preocupações sociais, entre as quais a resiliência dos sistemas de saúde, a ampliação do número de Estados-membros e as migrações. A liberdade de movimento das pessoas deveria contemplar a “freedom to stay”, uma vez que a imigração é uma alternativa real para o trabalho, diante da redução da população europeia, e não deve ser vista como causa da deterioração do nível de renda.
O experiente político preconiza para a União Europeia, além da livre circulação de pessoas, capitais, bens e serviços, uma “quinta liberdade”: de educação, pesquisa e inovação sem fronteiras temáticas ou de disciplinas.
A leitura, ainda que não exaustiva, dos dois textos, indica uma aposta forte de Draghi na indústria de defesa e na liberdade do mercado financeiro, consistente com seu histórico de banqueiro. Embora enuncie o objetivo de alcançar a competitividade dos EUA sem incorrer na mesma desigualdade social, seu enfoque – mais integração supranacional e menos regulação de mercados – parece apontar exatamente nessa direção. O relatório Letta, como reflexo de sua origem humanista e católica deposita confiança na regulação da conduta empresarial e na criatividade, sem tampouco questionar as premissas da integração.
Alguns economistas notam que ambos os estudos, ainda que aportem diagnósticos detalhados, falham ao não abordar o principal fator de restrição ao investimento público, qual seja, a ênfase na austeridade fiscal. No debate entre tradições clássicas, fica evidente a filiação dos autores italianos, em especial Draghi, à concepção de que a liberdade dos mercados, e do capital em particular, provoca um “choque de competitividade” capaz de impulsionar a economia.
O modelo distributivo, em contraste, argumenta que a expansão do consumo de bens e serviços, por meio da distribuição da renda, é o principal indutor do investimento e dos ganhos de produtividade. Para desbloquear a poupança e induzir o potencial econômico, inclusive dos imigrantes, seria necessário um projeto coordenado de combate ao rentismo, que inclua a taxação de grandes fortunas e das big techs e desestimule a remuneração exagerada dos capitais especulativos.
O enfrentamento da crise climática e a transição para uma economia sustentável, por sua vez, demandam uma transformação cultural e ética mais profunda, que altere os padrões de consumo dominantes e contenha o manejo dos big data por poucos, de forma a garantir a privacidade e os direitos de todos.
Autocrítica e ambição seriam, assim, elementos a incorporar às análises mainstream europeias, que parecem ainda resistir a mexer num time que está perdendo.
Cláudia de Borba Maciel é diplomata e embaixadora do Brasil na Guiné Bissau. Mestre em relações internacionais pela UNB, atuou nas embaixadas do Brasil em Buenos Aires, Caracas, Quito e Paris, no Consulado em Munique e na Missão junto à ONU, em Genebra.
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