30 abril 2022

Eleições na França: o que representam e o que esperar

Vitória de Macron oferece lições sobre a ascensão do radicalismo conservador na Europa, a importância do intervencionismo estatal e os riscos em torno do projeto europeu; decisão francesa também vai influenciar relações com o Brasil após pleito de outubro

Vitória de Macron oferece lições sobre a ascensão do radicalismo conservador na Europa, a importância do intervencionismo estatal e os riscos em torno do projeto europeu; decisão francesa também vai influenciar relações com o Brasil após pleito de outubro

Cartazes de campanha dos candidatos à Presidência da França

Por Pedro de Abreu e Lima Florêncio*

Nada mais representativo das eleições francesas do que os slogans dos dois candidatos do segundo turno. Enquanto um Emmanuel Macron mais sóbrio, complacente e seguro apelava por “Nós todos”, Marine Le Pen com sorriso aberto e quase maternal conclamava “Por todos os franceses”. Essas eram as opções à mesa no dia 26 de abril. De um lado, Macron inclusivo, aberto, pró-modernidade, favorável aos imigrantes e ao projeto europeu. De outro, Le Pen excludente, fechada, tradicionalista, contra os imigrantes e eurocética.

Nas três semanas que precederam o escrutínio, nem parecia que a França estava às vésperas do pleito. As notícias da guerra consumiam quase todo o tempo da mídia, e a vantagem que Macron abriu em relação aos demais candidatos, em função do conflito, principalmente pelo vínculo de Le Pen com Putin, prenunciavam certo desinteresse com as eleições.

A isso se somava o atual descrédito dos eleitores franceses com a política tradicional, fenômeno observado em diversos outros países europeus e que favorece a ascensão de movimentos populistas, principalmente de extrema direita, e a derrocada de partidos tradicionais. Não por acaso, aliás, os centenários partidos franceses não contavam, dessa vez, com candidatos em condições de chegar ao segundo turno.

‘A súbita ascensão de Le Pen foi suficiente, no entanto, para tirar Macron do gabinete e lançá-lo às ruas’

Poucas semanas antes do primeiro turno, no entanto, Marine Le Pen, do “Rassemblement National”, passou a subir nas sondagens e se aproximou de Macron. Aproveitando-se de certo descaso do incumbente, e ardilosamente associando-o a um ar de pretensa arrogância, própria da elite empresarial-financeira, desvinculada dos problemas mundanos, ela passou a ganhar cada vez mais adeptos. O discurso era certeiro e preciso: o custo de vida excessivo. Algo que um ex-banqueiro formado nas prestigiosas escolas da França com certeza não poderia jamais compreender de maneira vívida e concreta na sua essência. A súbita ascensão de Le Pen foi suficiente, no entanto, para tirar Macron do gabinete e lançá-lo às ruas. Ele passou a sorridentemente circular pela França, percorrer os bairros, conversar com o povo.

O segundo turno, mais uma vez opôs na França a extrema-direita ao centro, exatamente como 5 anos antes. Dessa vez, no entanto, as sondagens davam vantagem muito mais apertada a Macron: 4 pontos percentuais. Mais preocupante, entretanto, é que os votos do terceiro colocado – Jean-Luc Melenchon – de extrema-esquerda, não estavam necessariamente indo para onde seria natural: o centro. Muitos dos eleitores de Melenchon ou declaravam preferência pela abstenção, ou, por incrível que pareça, rumavam para o extremo oposto. Por mais paradoxal que pareça, o fenômeno faz sentido. Tal como os eleitores de Le Pen, os de Melenchon sentem-se excluídos do recente processo de crescimento francês. Também são contra o aumento da idade mínima para aposentadoria, demandam maior proteção do Estado e julgam ser necessário proteger alguns setores da economia da concorrência estrangeira, processo que Marine carinhosamente alcunhou de patriotismo econômico. Valorizemos a economia local, preconizava Le Pen.

Para a felicidade do projeto europeu, não foi dessa vez que a extrema-direita levou a vitória. Mas o resultado deixa importantes lições. Primeiro, é notória e indiscutível a ascensão do radicalismo conservador na França. Se contra Jacques Chirac, 20 anos antes, o risco de ter o pai de Le Pen, Jean Marie, mobilizou 80% dos franceses para negarem a ascensão da extrema-direita, dessa vez foram somente 58%. O crescimento tem raízes no descrédito dos mecanismos políticos tradicionais, no aumento da desigualdade no país e no déficit democrático atribuído à União Europeia, fenômeno segundo o qual os cidadãos não se veem coerentemente representados em suas demandas cotidianas pela longínqua e árida burocracia de Bruxelas.

‘Para a felicidade do projeto europeu, não foi dessa vez que a extrema-direita levou a vitória’

A segunda lição é que, se o governo Macron nos seus primeiros cinco anos rumou mais à direita para realizar suas reformas e se distanciou da esquerda, e de maior intervencionismo estatal, talvez tenha que fazer o oposto agora, para não ficar isolado e perder ainda mais popularidade frente a uma população cada vez mais inquieta e cética. O desafio é como realizar isso, com o crescente déficit fiscal e a urgente necessidade de saneamento das contas públicas.

Por fim, a terceira lição é que se a União Europeia não se reformular, corre graves riscos de ver o seu projeto seriamente abalado. O primeiro duro golpe veio com a saída do Reino Unido. Angela Merkel não é mais a líder na Alemanha. E a cada ano que passa os partidos eurocéticos, principalmente os de extrema-direita, ganham mais adeptos nos dois sustentáculos da Europa: a França e a Alemanha. Na França, pelas razões já apontadas acima. Na Alemanha, pelo crescente ceticismo com relação a gastos crescentes indo para países com dificuldade de equilibrar suas contas de maneira mais sustentável e crível.

E para o Brasil, o que significa o resultado das eleições na França? Em cenário com o governo Bolsonaro nos próximos quatro anos, provavelmente representa maior possibilidade de isolamento em relação à Europa. Macron nitidamente tem desavenças pessoais com o presidente brasileiro. Bolsonaro teceu críticas desagradáveis a sua esposa e hostilizou o ministro das Relações Exteriores francês quando esteve no Brasil – preferiu cortar o cabelo a recebê-lo. Além disso, Macron é severo crítico das intenções ambientais do mandatário brasileiro, agenda muito presente no seu discurso. No debate com Le Pen, o Presidente francês chegou inclusive a se vangloriar de não ter permitido que o acordo com o Mercosul avançasse por essa razão específica.

‘E para o Brasil, o que significa o resultado das eleições na França? Em cenário com o governo Bolsonaro nos próximos quatro anos, provavelmente representa maior possibilidade de isolamento em relação à Europa’

Já com Lula, Macron simpatiza. Ele o recebeu com honras de chefe de Estado quando esteve em visita à Europa, enquanto mero candidato. Resta saber, no entanto, caso vença Lula, qual será o Lula que assumirá. Será o Lula mais propenso às reformas, à abertura comercial, a programa econômico fiscalmente responsável e sustentável? Ou será o Lula mais intervencionista, defensor dos campeões nacionais, com menos apego a processos de liberalização da economia, à agenda ambiental e às reformas econômicas que melhorem o ambiente de negócios? No segundo caso, a agenda entra em nítida contradição com a de Macron, e mais se assemelha à de Le Pen.

E caso surja uma opção de terceira via no Brasil? Logicamente que o resultado vai depender muito do candidato vencedor. Pode-se, no entanto, afirmar, com algum nível de segurança, que muito provavelmente esse candidato terá razoáveis chances de manter boas relações com um governo de Macron. A razão é muito simples: ele próprio representa a terceira via na França. Surgiu há quatro anos, justamente em função do cansaço dos eleitores com os candidatos tradicionais e como uma agenda ponderada, que amealhou adeptos do centro.


*Pedro de Abreu e Lima Florêncio é especialista em políticas públicas e gestão governamental do Ministério da Economia, atualmente em exercício no CADE. Formado em economia pela Universidade de São Paulo (USP), e em direito pelo Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Possui mestrado em direito econômico internacional pela Universidade de Warwick, no Reino Unido, e doutorado em direito, com ênfase em regulação e direito econômico, pela mesma instituição.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional. 

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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