17 novembro 2025

Em longo prazo, caos impulsionado pelas big techs somente às beneficia e aos autoritários

O entusiasmo com os protestos da geração Z ao redor do mundo, em tese, motivados por demonstrações de corrupção e piora nos níveis de vida, não é propriamente novidade em tempos de redes sociais. À época da Primavera Árabe, uma obsessão entre os tecnoentusiastas era a ditadura do Bahrein. O discurso falava de como o […]

Protestos de Junho de 2013 em Brasília (DF). – Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

O entusiasmo com os protestos da geração Z ao redor do mundo, em tese, motivados por demonstrações de corrupção e piora nos níveis de vida, não é propriamente novidade em tempos de redes sociais.

À época da Primavera Árabe, uma obsessão entre os tecnoentusiastas era a ditadura do Bahrein. O discurso falava de como o Google Earth propiciou à maioria xiita do país ver os excessos da família al-Khalifa no poder, gerando manifestações contra os abusos da minoria sunita. Seria uma demonstração de como as redes sociais tornariam as autocracias inviáveis no mundo atual diante da difusão da informação, em um triunfalismo exaltado especialmente nos Estados Unidos. 

Em 2025, Hamad bin Isa al-Khalifa é rei do Bahrein, mantendo a dinastia de sua família no poder desde o final do século XVIII. No Egito, que depôs Hosni Mubarak à época, Al-Sisi se consolidou no comando do país desde 2014, tomando muitas medidas mais autoritárias que as do antigo governante. Iêmen e Líbia se afundaram em um caos após os movimentos, enquanto a Síria recém terminou a guerra civil de 14 anos com um ex-integrante do ramo local da Al Qaeda no poder.  

‘Nas democracias representativas, as redes trouxeram desafios inéditos de governança’

Já nas democracias representativas, as mesmas redes trouxeram desafios inéditos de governança. A França enfrenta hoje sua maior crise da V República, com partidos populistas na Assembleia Nacional bloqueando propostas de orçamento visando a queda de Macron e a convocação de novas eleições. O cargo de primeiro-ministro francês hoje é potencialmente o mais instável da Europa.

Alemanha e Portugal foram países que conseguiram manter alguma estabilidade com seu bipartidarismo de décadas até os anos 2020. Em ambos os casos, havia a preocupação com a criação de um “cordão sanitário” para barrar a extrema-direita em duas nações com passados autoritários preocupantes. A barreira funcionou até os últimos anos, quando o TikTok impulsionou todos os tipos de radicalismo nos dois países, com fortes repercussões eleitorais e políticas, principalmente na imigração. 

‘Nos Estados Unidos, o caos impulsionado pelas redes ao longo da última década vem arrasando cada vez mais fundamentos impensáveis da democracia norte-americana’

Nos Estados Unidos, o caos impulsionado pelas redes ao longo da última década vem arrasando cada vez mais fundamentos impensáveis da democracia norte-americana. De uma insurreição no Capitólio ao uso do cargo de presidente para promover ganhos pessoais através de criptomoedas, o cenário é mais distópico do que Hollywood ousou imaginar. Neste meio do caminho, vitoriosos, sem dúvida, foram justamente os comandantes das big techs, alcançando atualmente uma influência incomparável nos interesses do país.

Ironicamente, o chamado Wikileaks, prometido nas redes na década passada como um vazamento que abalaria os “poderosos globais”, trouxe de revelação mais impactante na política do país um uso equivocado de e-mails por Hillary Clinton. Na campanha de 2016, Trump citava a informação como uma clara violação dos interesses do Estado pela então candidata. Hoje, o tema seria tratado como trivial diante das recorrentes sobreposições de interesses individuais do republicano aos da república norte-americana. 

‘Seguindo as manifestações de junho de 2013 no Brasil, houve uma série de resultados também um tanto quanto irônicos’

Seguindo as manifestações de junho de 2013 no Brasil, houve uma série de resultados também um tanto quanto irônicos. Nas ruas, se cantava: “até o Papa renunciou, Feliciano, sua hora já chegou”. O pastor Marco Feliciano não apenas seguiu no cargo de deputado federal, como se reelegeu três vezes desde então para a função. “Ô Brasil, vamo acordar, um professor vale mais que o Neymar” é um cântico que foi seguido pela venda de Neymar ao PSG por 222 milhões de euros, até hoje a maior transferência da história futebol.

O grito “não vai ter Copa… Vai ter luta” foi acompanhado de um mundial, como Lula descreveu alguns anos antes, para argentino nenhum colocar defeito, não fosse a final. Já na grande luta do Brasil na época, o UFC, o fim de 2013 contou com o lutador Anderson Silva quebrando sua perna contra Chris Weidman, em uma fratura que rompeu a forte ascensão que o MMA experimentava no país. Curiosamente, na tarifa zero do transporte, uma demanda inicial do Movimento Passe Livre logo ofuscada por incontáveis temas, houve avanço nos últimos anos no país, como em nenhuma outra parte do mundo. Hoje, o Brasil é o líder mundial no número de cidades com transporte público gratuito, sem alarde e pouco TikTok. 

O escritor italiano Paolo Gerbaudo acompanhou bastante as dinâmicas destas manifestações, incluindo outras da época, como o Occupy Wall Street e os Indignados na Espanha, e como as redes sociais tiveram um papel fundamental de coordenação. À época, ele comparava o Twitter com quarteis generais, onde ideias e líderes organizavam ideias, que logo seguiam para redes mais populares, como o Facebook.

‘Já está mais do que claro que tudo se trata da dinâmica das plataformas para conquistar um dos bens mais valiosos hoje, a atenção, ainda que o resultado seja caos’

Recentemente, ele escreveu sobre a TikTonização do tema. Neste caso, há um papel muito maior dos algoritmos, e lideranças mais difusas, quando estas existem. Os diagnósticos de Gerbaudo sobre organização são precisos, mas o autor segue uma visão ainda um tanto idealista de que os protestos contam com motivações anti-neoliberais após a crise de 2008 e até ambições legítimas como a crise de habitação que afeta a geração atual. Em algum grau, os temas podem estar presentes, mas já está mais do que claro que tudo se trata da dinâmica das plataformas para conquistar um dos bens mais valiosos hoje, a atenção, ainda que o resultado seja caos. Ou reforço do autoritarismo nos casos que tentaram limitar isso.

O exemplo do Nepal é exemplar. Uma indignação legítima espalhada pelas redes, bem parecida com as do Bahrein, levou o governo a uma postura autoritária sobre as plataformas, que culminou em cenas de caos que simbolizam a era das redes como poucas. Jovens motivados pelo TikTok queimando instituições são a essência do que é a política algorítmica. 

As imagens e narrativas geraram um engajamento global instantâneo. Enquanto as redes celebravam, acompanhei o jornalista nepalês Anup Kaphle, que trabalhou no Katmandu Post, jornal local que também foi incendiado. Kaphle, que hoje é o editor-chefe do Resto of World, um dos poucos veículos focados em cobrir os desastres causados pelas big techs fora dos Estados Unidos, apresentou como o Post operou remotamente para garantir informação em meio ao caos celebrado pelo mundo, especialmente por aqueles que nunca pisarão no Nepal.

‘Segundo Biden, Xi acreditava firmemente que as democracias não sobreviveriam ao caos e às turbulências do século XXI, que favoreceriam o autoritarismo’

Ao longo de seus quatro anos de mandato, Biden contou diversas vezes a história sobre uma conversa que manteve com Xi Jinping. Segundo ele, o chinês acreditava firmemente que as democracias não sobreviveriam ao caos e às turbulências do século XXI, que favoreceriam o autoritarismo. Na China, o TikTok, o maior instrumento de manipulação algorítmico já criado, não funciona nos mesmos moldes de outros países. Na Índia, onde Narenda Modi, que nunca poupou medidas vistas como autoritárias, o aplicativo é banido desde 2020.       

Neste cenário, o autor Giuliano Da Empoli faz uma comparação constante: “o destino das nossas democracias está cada vez mais sendo jogado em uma espécie de Somália digital, um estado falido tão grande quanto o planeta, sujeito à lei dos senhores da guerra digitais e suas milícias”. Um exemplo foi quando Elon Musk em meio ao caos na Bolívia em 2019 comentou que era responsável por um golpe no país e que o faria novamente se fosse preciso. Até hoje, não há nenhum indício de participação do agitador na política boliviana, mas os comentários foram suficientes para insuflar conspirações e levar atenções a Musk. 

Recentemente, a Economist publicou um artigo mostrando como cada vez mais, a economia vem modelando a atenção como um recurso, juntamente com terra, trabalho e capital. “A atenção é escassa e rival, no jargão da área; o tempo gasto com a podridão cerebral não pode ser investido em outra coisa”, avalia. Ao redor do mundo, já sobram políticos muito bem sucedidos ao usar técnicas para capturar atenção através das redes. No Brasil, o prefeito de Sorocaba, Rodrigo Manga, fenômeno nestas plataformas, lançou um curso que apelidou de Politiktok, no qual promete ensinar as técnicas para a “política viral”. Uma das promessas é a de ensinar como criar um ambiente de campanha constante nas redes. Difícil parar de assistir.

Matheus Gouvea de Andrade é jornalista focado em temas internacionais baseado na América Latina. Trabalhou no Grupo Estado e publicou em veículos como BBC, Rest of World, Climate Change News, DW Brasil, Folha de S. Paulo, Piauí e Público, escrevendo a partir de Lisboa, Medellín, Lima, Buenos Aires e São Paulo

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Democracia 🞌

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