03 junho 2022

Entender ideologia é importante para desvendar a invasão da Ucrânia pela Rússia

Compreender e prever o comportamento da política externa exige entender a ideologia e os interesses igualmente. A ideologia é importante porque ela destaca a consideração dos atores políticos sobre o que é certo ou errado e como eles se veem. Também indica com quem eles se associam, bem como sua interpretação do mundo

Compreender e prever o comportamento da política externa exige entender a ideologia e os interesses igualmente. A ideologia é importante porque ela destaca a consideração dos atores políticos sobre o que é certo ou errado e como eles se veem. Também indica com quem eles se associam, bem como sua interpretação do mundo

Soldado da Guarda Nacional Ucraniana (Foto: Guarda Nacional Ucraniana)

Por Richard Meissner*

Ao explicar a guerra na Ucrânia, a ideologia importa tanto quanto os interesses. Isso significa que precisamos levar em consideração a ideologia em nossa análise, se quisermos obter uma compreensão mais profunda do conflito violento entre Estados. Se nos concentrarmos puramente nos interesses materiais de um estado agressivo, teremos uma imagem invertida da guerra. Vemos ela simplesmente como uma continuação da política – a diplomacia falhou, portanto, o uso da força é a única opção.

Mas entender e prever o comportamento da política externa exige entender a ideologia e os interesses –igualmente. A ideologia é importante por várias razões. Ela destaca a consideração dos atores políticos sobre o que é certo ou errado e como eles se vêem. Também nos diz com quem eles se associam, bem como sua interpretação do mundo.

A invasão da Ucrânia pela Rússia foi um rude despertar para o mundo liberal, aumentando o medo de que a hegemonia ideológica do liberalismo possa ter acabado. Isso, depois de 30 anos desde o “Fim da História?” como, proposto pelo cientista político Francis Fukuyama.

Estamos vendo uma antítese, o início da história, ao longo de linhas ideológicas opostas?

Semanas antes da invasão russa, democracias liberais como a UE, a Ucrânia e os EUA se opuseram à Rússia, Belarus e regiões separatistas de Donetsk e Luhansk. O que não está claro é a ideologia do lado que se opõe ao agrupamento democrático liberal, além de dizer que eles são iliberais ou autocráticos.

Ideologias opostas também eram evidentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Quênia expressou grande preocupação com o reconhecimento da Rússia de Donetsk e Luhansk como Estados independentes e defendeu a busca da paz por meio de canais diplomáticos. Isso o colocou no campo da democracia liberal.

Mas a África do Sul, juntamente com Angola, Namíbia e Moçambique, abstiveram-se de uma votação da Assembleia Geral da ONU contra a invasão da Rússia. Isso foi interpretado como um endosso tácito das ações da Rússia. Ideologicamente, a Rússia apoiou movimentos de libertação como o Congresso Nacional Africano da África do Sul, o MPLA de Angola, o Swapo da Namíbia e a Frelimo de Moçambique.

A busca da paz liberal se opôs ao apoio tácito do despotismo.

‘Ideologias e interesses são importantes para entender e prever o comportamento da política externa’

Minha pesquisa sobre conflito e cooperação por recursos hídricos e minha experiência como professor de política internacional ensinando análise de política externa mostra que ideologias e interesses são importantes para entender e prever o comportamento da política externa.

As ideias contidas na ideologia informam a prática da política externa. Comportamento que pode –para o bem ou para o mal– influenciar a vida dos indivíduos.

Por que a ideologia importa

As ideologias estão relacionadas a nossas identidades, moralidades, como percebemos uma causa e provocamos mudanças, e a interpretação de eventos e procedimentos. Por meio de ideologias, os atores políticos consideram o que é certo ou errado, como se veem e com quem se associam. Isso vai junto com sua interpretação do mundo.

A ideologia reside em nossas experiências cognitivas e políticas vividas.

O elemento de interpretação da ideologia vem à tona quando se considera que as ideologias muitas vezes afirmam ter uma ideologia oposta para denunciar, dominar e derrotar. Essas ideologias opostas muitas vezes assumem uma forma desumanizada de um poder alienígena. No caso da Ucrânia, percebe-se o nazismo. O remédio é a desnazificação do Estado e da liderança ucraniana.

‘As ideologias estão relacionadas a nossas identidades, moralidades, como percebemos uma causa e provocamos mudanças, e a interpretação de eventos e procedimentos’

O presidente russo Vladimir Putin e seu governo tem se referido a esse fenômeno na Ucrânia desde antes e durante a invasão da Crimeia pela Rússia em 2014. Essa interpretação da Ucrânia pela Rússia e seus líderes é propaganda ideológica.

A ideia da Rússia de que russos e ucranianos são etnicamente idênticos explica a rejeição da história milenar independente da Ucrânia. Visto de Moscou, é moralmente errado separá-los em dois Estados soberanos com uma fronteira definida entre eles, uma vez que a identidade de russos e ucranianos é semelhante.

Causa e efeito influenciam na equação ideológica quando a liderança russa vê por bem reagir de forma a reunir os russos e ucranianos em um Estado, já que os poderes do Kremlin não acreditam que uma separação entre os dois povos não seja a preferência dos ucranianos.

A liderança da Ucrânia e a resistência dos cidadãos à invasão indicam uma aversão geral à conquista e ao despotismo. Também mostra uma postura ideológica fortemente inclinada para a democracia liberal. Isso se manifesta particularmente nos apelos do governo ucraniano para se juntar à UE e à Otan. Também ficou claro nos discursos virtuais do presidente Volodymyr Zelensky ao Congresso dos EUA, aos parlamentos do Canadá, UE, Japão e uma série de outras democracias liberais.

Interesses, poder e segurança

Considerar interesses, poder, segurança e economia na invasão teve seu quinhão de explicações. A visão de Putin sobre o a aproximação da Organização do Tratado do Atlântico Norte da fronteira da Rússia nos últimos 30 anos é frequentemente proclamada como a principal explicação para sua decisão de invadir. Temer uma aliança que havia sido no passado o inimigo natural da União Soviética não se coaduna com a Rússia e seu líder. Dentro dessa interpretação, vemos o poder e a segurança se manifestando nos níveis estatal e individual.

A proximidade geopolítica da Otan torna difícil para a Rússia manter seus vizinhos próximos sob sua esfera de influência ao estilo da União Soviética. A projeção do poder da Rússia está interligada com suas preocupações de segurança. Ambos estão do mesmo lado da moeda da política externa.

Com a perspectiva de a Ucrânia se tornar membro da Otan, a Rússia e seu líder acham difícil intervir e apoiar regimes impopulares entre os membros da OTAN. Belarus é um exemplo disso.

Em relação ao aspecto da economia, a Ucrânia tem sido há muito tempo o celeiro da Europa e de muitos países em desenvolvimento. A Ucrânia também abriga algumas das maiores usinas nucleares e hidrelétricas da Europa.

Antes da invasão, havia planos para reestruturar o sistema de energia ucraniano e integrá-lo em uma área de energia comum. A Alemanha e os EUA são os principais atores. Em julho de 2021, eles declararam que a conexão da Ucrânia com o mercado de energia europeu estva no topo das agendas políticas da Alemanha e da UE.

O gás natural, portanto, não é a única explicação para o poderoso controle da Rússia sobre a Europa.

Apogeu ideológico ou lamento fúnebre?

O mundo está de pé novamente no início da história após a Segunda Guerra Mundial, quando duas ideologias emergentes estavam opostas uma à outra? Sobre isso, e parafraseando a famosa citação de Vladimir Lenin:

“No final, um ou outro triunfará – um lamento fúnebre será cantado sobre a Federação Russa ou a democracia liberal.”


*Richard Meissner é professor na University of South Africa


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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