Está difícil virar a página
As diretrizes de ética e de estratégia dos militares do Exército, iniciativa oportuna e importante, mostram as dificuldades de se avançar no processo de transformação da Força

No início de novembro, o chefe de Estado Maior do Exército divulgou novas diretrizes de ética e de estratégia dos militares do Exército para 2024 a 2027. Segundo algumas dessas diretrizes, “o processo de transformação do Exército brasileiro deve se ajustar aos desafios contemporâneos”. Os temas ética profissional e liderança militar são prioritários, pois se apresentam como essenciais para a efetividade e a resiliência da instituição.
“No quesito identificação, o integrante do Exército, uniformizado ou não, deve comportar-se de acordo com os valores do soldado brasileiro, plenamente integrado à sociedade e pronto a cumprir sua missão constitucional. No aspecto da coesão, é fundamental que o militar contribua para o fortalecimento do espírito de corpo e do sentimento de pertencimento a uma instituição baseada na hierarquia e na disciplina, sendo um agente da ética em todas as oportunidades, particularmente, no ambiente virtual.”
‘É crucial reafirmar que a ética profissional e a liderança militar refletem os valores coletivos do Exército brasileiro, construídos ao longo dos anos pelas experiências e exemplos dos antepassados’
“A preservação do espírito de corpo das armas, quadros e serviços e das diversas especialidades e organizações militares deve contribuir para a coesão da força como um todo. É crucial reafirmar que a ética profissional e a liderança militar refletem os valores coletivos do Exército brasileiro, construídos ao longo dos anos pelas experiências e exemplos dos antepassados.”
“A internalização da ética profissional orienta o pensamento crítico dos integrantes da Força e proporciona embasamento para a tomada de decisões no dia a dia. A ambição, em sua forma desmedida, dirigida por um comportamento egoísta e vaidoso, por um forte desejo de poder e riqueza, pode conduzir a atitudes antiéticas, prejudiciais ao profissional militar, à Instituição e às outras pessoas”.
‘A análise das diretrizes não pode deixar de levar em conta o contexto dos acontecimentos político-militares dos últimos anos e o relatório da Polícia Federal, agora nas mãos do PGR, que, se comprovado, levarão militares de alta patente para julgamento’
A análise das diretrizes não pode deixar de levar em conta o contexto dos acontecimentos político-militares dos últimos anos e o relatório da Polícia Federal, agora nas mãos do PGR, que, se comprovado, levarão militares de alta patente para julgamento, com todas as garantias de direito de defesa aos acusados. Sua elaboração também deve ter levado em conta as circunstâncias atuais.
As diretrizes de ética e de estratégia dos militares do Exército, iniciativa oportuna e importante, mostram as dificuldades de se avançar no processo de transformação da Força. Várias são as contradições do documento: limitar das diretrizes ao período 2024-2027 (quando deveriam ser permanentes); mencionar a missão constitucional (talvez pensando no poder moderador, como interpretado o artigo 142); enfatizar a preservação do espirito de corpo (talvez implicitamente se referindo à defesa dos atos praticados por seus membros) e ao referir aos valores coletivos construídos ao logo dos anos pelas experiências e exemplo dos antepassados (feitos memoráveis, mas também 135 anos de intervenções na vida politica nacional).
Por outro lado, condenam corretamente a ambição desmedida, dirigida por um comportamento egoísta e por um forte desejo de poder que pode conduzir a atitudes antiéticas e prejudiciais ao profissionalismo e à instituição (Exército, sem se referir às instituições nacionais).
No fim de novembro, o ministro da Defesa solicitou, e o presidente Lula concordou, em marcar encontro com os comandantes das três forças. O pedido de encontro com o presidente, em si, é grave. Os pedidos dos comandantes deveriam ser transmitidos pelo ministro da Defesa diretamente ao chefe de governo. Segundo se informou, as solicitações dos comandantes são corporativas visando a aliviar a parte dos militares com o corte de gastos, com a modificação do período de transição e a modificação da idade mínima de 55 anos para passar para a reserva remunerada. Não se sabe se na conversa houve alguma referência a situação dos militares envolvidos no eventual julgamento.
‘O que se verifica é que continua a prevalecer o esprit de corps, isto é, senso de propósito coletivo, uma confiança mútua que transcende interesses individuais e mantém a instituição unida.’
O que se verifica é que continua a prevalecer o esprit de corps, isto é, senso de propósito coletivo, uma confiança mútua que transcende interesses individuais e mantém a instituição unida. A Marinha, sintomaticamente, foi a única, até aqui, a divulgar comunicado e vídeo contestando indiretamente a proposta de redução de vantagens. Na visão de muitos militares, o colapso do espírito de corpo faz crescer as desconfianças internas e o fim da instituição seria apenas uma questão de tempo. Talvez tenha sido esse o motivo do pedido de encontro com o presidente. Resta saber como será a reação da instituição e do alto comando ao resultado do julgamento.
Se no final do julgamento houver condenação, será a primeira vez que ações antidemocráticas por parte de integrantes das Forças Armadas seriam punidas, mostrando a força da preservação da democracia pela sociedade civil sobre interesses setoriais militares. Findo o julgamento, seria o momento para que o relacionamento entre civis e militares virasse a página de 135 anos de intervenções de militares na política brasileira. Seria a oportunidade de a Instituição – FFAA – voltasse seus cuidados e atenções apenas para suas atividades estritamente profissionais em defesa da soberania e da independência do Brasil, afastando definitivamente o passado de atuação como um poder moderador e auto-declarado árbitro de questões políticas e institucionais.
Nesse sentido, as diretrizes não deveriam ter data marcada e deveriam incorporar, entre seus princípios éticos e de liderança, o compromisso estrito com o profissionalismo das FFAA, sem qualificações que deixem entreabertas possibilidades de intervenções na sociedade por qualquer tipo de motivação.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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