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Interesse Nacional
01 novembro 2023

A saga da Índia 7 – O hindutva e o nacionalismo hindu

Radicalização hinduísta promovida pelo Baratiya Janata Party, partido atualmente no poder na Índia, é inspirado na filosofia político-religiosa tal como foi desenvolvida há mais de cem anos. Para embaixador, governo Modi apaga o passado e apresenta Bharat, a Índia multimilenar camuflada em sonho futurista

Radicalização hinduísta promovida pelo Baratiya Janata Party, partido atualmente no poder na Índia, é inspirado na filosofia político-religiosa tal como foi desenvolvida há mais de cem anos. Para embaixador, governo Modi apaga o passado e apresenta Bharat, a Índia multimilenar camuflada em sonho futurista

O premiê indiano Narendra Modi (Foto: EBC)

Por Fausto Godoy*

Já escrevi vários textos sobre a radicalização hinduísta promovida pelo Baratiya Janata Party (BJP), o partido atualmente no poder na Índia, nesta série que venho publicando sobre a sua crescente importância no cenário internacional. Tendo em vista, porém, o acirramento do proselitismo do BJP na vida do país, e os dilemas, ameaças e consequências que este proselitismo tem provocado no convívio da população, resolvi ir mais a fundo na minha análise.

Para entendermos o que está acontecendo, vamos primeiramente definir o que seja hindutva, a filosofia político-religiosa que dá suporte ao BJP. É fundamental analisar este conceito tal como foi desenvolvido pelo seu criador, Vinayak Damodar Savarkar, em 1922. Conforme a Enciclopédia do Hinduísmo, o hindutva, na definição clássica, é a “cultura da raça hindu, em que o hinduísmo é apenas um elemento: o dharma hindu é uma religião praticada por hindus, bem como sikhs e budistas“.

O que isto significa?

Vamos mergulhar um pouco mais no que seja o conceito de dharma, que é o grande elemento diferenciador entre os credos religiosos existentes na Índia. 

Para um ocidental, tratar deste tema pode parecer “bizantinice” intelectual, mas é o ponto de inflexão que diferencia as religiões que creem na metempsicose, ou seja na reencarnação – hindus, sikhs e budistas – das monoteístas – judaísmo, cristianismo (à exceção do kardecismo) e o islã, sobretudo, o que dá origem ao cisma alardeado pelo BJP.

Aspecto igualmente importante a ser analisado é o momento histórico em que surgiu o hindutva: em 1929, concomitantemente com o fascismo, na Itália (Benito Mussolini fundava o Grupo Italiano de Combatentes, em 1919, berço do Partido Nacional Fascista), e o nazismo, na Alemanha (Adolf Hitler liderava o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, na década de 1920, berço do nazismo).

Porém, diferentemente destes dois, desde o início o hindutva teve como matriz a dicotomia religião e política. O Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS) é o seu braço paramilitar, gênese e liderança de um grande corpo de organizações hindus de extrema-direita.

Fundada em setembro de 1925 e inspirada nos movimentos e grupos fascistas europeus, o impulso inicial da organização era “fornecer treinamento de caráter e incutir disciplina para unir a comunidade e estabelecer a rashtra – nação – hindu”. Desde então o seu propósito tem sido difundir a ideologia do hindutva, fortalecer a comunidade e promover o ideal da defesa da cultura e dos valores civilizacionais do hinduísmo. 

Foi, a propósito, um ativista radical do RSS, Nathuram Godse, quem assassinou o Mahatma Gandhi, em 1948, que era contrário à partição do Raj Britânico, baseada em credos religiosos. Alicerçado na premissa da supremacia hindu, o RSS tem manifestado crescente intolerância com relação às minorias, em particular a muçulmana e, em menor grau, a cristã.

Como sabemos, a grande maioria dos indianos é hindu (segundo o censo de 2017, 74,33% da população). O islã vem em seguida, com 14,20% – mas, ainda assim, constitui a terceira maior população muçulmana do planeta -, seguido pelo cristianismo (5,84%), o sikhismo (1,86%), o budismo (0,82%), o jainismo (0,41%) e por outras religiões de menor expressão numérica. Diante deste panteão complexo, a única maneira de conduzir os destinos do país, entenderam os seus próceres, foi torná-lo numa república secular e laica, tal como prescreve, aliás, o preâmbulo da sua Constituição: “…uma república democrática, socialista, secular, que sufraga as liberdades de pensamento, de expressão, de religião, de crença, de fé, e de culto…”.

Entretanto, desde que assumiu o poder, em 2014, após vencer o seu rival, o Congresso Nacional Indiano, que havia dominado a vida politica da Índia desde sua fundação em 1885, liderado pelos líderes que fizeram não somente a independência senão também criaram os alicerces da Índia contemporânea, o Baratiya Janata Party trouxe o hindutva como sua bandeira político-ideológica.

Quais seriam os motivos?

Mais que tudo, o antagonismo histórico entre o hinduísmo e o islã. E no que diz respeito às políticas interna e externa, o que os seus membros consideram a falência do Congress Party, que ao longo dos quase 130 anos em que esteve no poder não alcançou, na sua ótica, erradicar as que consideram as principais mazelas da Índia, sobretudo a não inserção no processo de globalização consoante com a sua dimensão. E o espelho é sempre a China, “aliada” no Brics, mas antagonista na disputa pelo protagonismo na região, sobretudo no sudeste da Ásia.

É neste contexto que emerge a figura política de Narendra Damodardas Modi. E é aí que entra a questão do proselitismo hinduísta do Bharatiya Janata Party e do seu líder máximo.

Modi foi eleito primeiro-ministro nas eleições gerais que levaram o BJP ao poder em 2014. Ele havia sido ministro-chefe (equivalente a governador) do estado de Gujarat, um dos mais progressistas da Índia, de 2001 a 2014, onde realizou uma gestão bem avaliada pela população. Mas já conflituosa no front religioso.

Moderado de início, ele foi radicalizando suas convicções, passando a adotar progressivamente medidas de apoio à maioria hindu em detrimento das minorias religiosas.

Sinônimo de sucesso econômico e de antagonismo às minorias religiosas, Modi elegeu as comunidades cristã e, sobretudo, a muçulmana, como objeto de uma ação radical. Foi assim que em dezembro de 2019 seu governo aprovou a Lei de Cidadania (Amendment Act – CAA), pela qual, pela primeira vez na história da Índia independente o fator religioso tornou-se condição para a concessão de cidadania. Foi criado igualmente o Registro Nacional de Cidadãos, que identifica os “imigrantes ilegais”, despertando o temor de milhões de muçulmanos que residem no país há muitas gerações e afrontando a própria Constituição, que no seu preâmbulo define a Índia, como vimos, como uma “república secular”.

Mas Modi quer mais: modificou o traçado urbanístico e está fazendo uma verdadeira razzia na belíssima arquitetura histórica do centro administrativo de Nova Delhi: construiu uma nova sede para o Parlamento em substituição aos edifícios desenhados pelo arquiteto britânico Edwin Lutyens, herdados dos colonizadores. Foi mais além: empenhou-se para que se modificasse o próprio nome do país: de ora em diante, não mais será “Índia”, mas “Bharat”, que foi como se pôde ler nas plaquetas de identificação do país nas sessões da Reunião de Cúpula do G-20, que a Índia acaba de sediar.

Apaga-se o passado, e surge Bharat, a Índia multimilenar camuflada em sonho futurista.


*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

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