Golpes de Estado não exigem tanques, paraquedistas ou candidatos a ditador
Em meio ao julgamento pelos crimes dos ataques de 8 de janeiro, alguns comentaristas tentaram desmerecer as condenações e defender os golpistas. Para pesquisador, reconhecer uma tentativa de golpe exige informação e honestidade
Em meio ao julgamento pelos crimes dos ataques de 8 de janeiro, alguns comentaristas tentaram desmerecer as condenações e defender os golpistas. Para pesquisador, reconhecer uma tentativa de golpe exige informação e honestidade
Por Felipe Tirado*
Nas últimas semanas, comentaristas, colunistas, políticos, admiradores, apreciadores e sommeliers da prática foram a público defender que “não houve uma tentativa de golpe no Brasil”, que os golpistas são “pobres coitados injustiçados” e até que as “penas são muito altas” pelos (diversos) crimes cometidos. Neste artigo, explicamos por que todas essas perspectivas são infundadas — por mais evidente que isso seja.
Para começar a esclarecer a questão e auxiliar nossos concidadãos, é necessário entender primeiro: o que configura um golpe de Estado?
Um golpe de Estado é definido como uma “tentativa ilegal de destituir o líder em exercício pela força”. Nesse sentido, de forma meramente didática, é importante reconhecer também a figura do autogolpe: “quando um líder, tendo chegado ao poder por meios legais, tenta permanecer no poder por meios ilegais”.
A objetivo expresso daqueles que invadiram os edifícios em Brasília no 8 de janeiro foi exatamente efetivar o disposto no primeiro conceito acima — destituir o presidente democraticamente eleito. Isso é evidente.
A infinidade de mensagens no WhatsApp e Telegram, cartazes, gritos de ordem, chamadas no Facebook e Twitter nesse sentido apresentam várias formas diferentes de clamar por um golpe, só não vê quem não quer. Quisessem os golpistas efetivar a tomada de poder eles mesmos ou fosse uma forma de conclamar as Forças Armadas (FFAA) a fazê-lo, o objetivo era o mesmo e era transparente. No caso, o resultado almejado é o que importa.
Um comentarista poderia dizer então: “ah, mas o golpe não foi efetivado, como poderia haver responsabilização por um crime que não ocorreu?” Encontramos aqui outra obviedade. Quando os golpes são efetivados, os golpistas saem ilesos de responsabilização, pois tomaram as instituições responsáveis por efetivá-la. Pelo contrário, os que tentaram impedir o golpe que são injustamente punidos. Essa constatação elementar, inclusive, leva aos tipos penais — a descrição da conduta criminosa, para os leigos — relevantes ao caso:
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Golpe de Estado
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
Entendendo como funcionam golpes de Estado, o legislador propôs o tipo como a tentativa de efetivar um golpe. Como exposto, disposição diferente dessa seria completamente ineficaz. Pregar o contrário disso parece falta de informação, desonestidade ou até uma forma de defesa do golpe tentado.
Um comentarista honesto, mas sem conhecimento do campo, poderia dizer então: “faz sentido. Poderia até ser uma tentativa de golpe, mas não havia tanques ou paraquedas, então não podemos dizer que foi uma tentativa de fato!”.
Há duas possibilidades de explicação simples nesse caso (sem rumar para teorias conspiratórias). A primeira é esclarecer ao comentarista que os golpistas buscavam conclamar as FFAA a entrar no movimento, talvez após o estabelecimento de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em Brasília depois do caos. Entretanto, não é necessário ir tão longe—por mais que pareça haver evidências nesse sentido.
Na realidade, há muitos exemplos de golpes sem “paraquedistas ou tanques de guerra” e até mesmo golpes sem derramamento de sangue — os soft coup (golpes brandos ou suaves). Um exemplo óbvio e pátrio de golpe sem paraquedista é o Golpe de 1964 — a brigada paraquedista já existia há alguns anos, mas não precisou ser empregada. Os tanques também não atiraram em ninguém, tiveram um papel mais decorativo, como vemos nos desfiles de 7 de setembro. Apesar de conflitos e mortes nos dias do golpe, no exemplo também não houve muitos episódios de grande violência — não houve combate aberto, muito menos uma guerra civil.
Para além do exemplo nacional mais recente, há vários outros exemplos de golpes brandos. Dentre os mais célebres, é possível citar o golpe de 18 de Brumário de 1799, que levou Napoleão ao poder. Na modernidade, a tradição não parou por aí e houve uma série de outros golpes do gênero ao longo dos últimos séculos, em praticamente todos os continentes, com exceção da Antártida (para confirmar, recomendo uma simples busca no Google ou Google Scholar).
E se, ainda assim, um colunista mais extremo apontar algo como: “Tá legal, tá legal, eu aceito o argumento… Mas não havia um ditador pronto para assumir. E agora?” As evidências apontam o contrário. Os participantes do 8 de janeiro claramente tinham alguém em mente. Pior, teve um ex-presidente que andou por aí perguntando se isso seria possível, parecia até ter interesse na vaga de emprego.
Ainda que nada disso tivesse ocorrido, no Golpe de 1964 também não havia um “candidato a ditador” — Ranieri Mazzilli assumiu até a “eleição” de Castelo Branco. Havia mais de um candidato ao posto, mas Castelo Branco foi o escolhido. A razão para ninguém ficar fazendo campanha aberta para ditador antes do golpe ser efetivado parece tão óbvia (especialmente nesse ponto do texto) que não é necessário avançar nesse ponto. Mais uma questão esclarecida.
Para concluir, um breve comentário sobre a questão da dosimetria da pena para auxiliar aqueles que não são da área. É claro, os interessados poderiam ter acompanhado ou lido os votos dos ministros do Supremo, o que esclareceria a questão. Parece que não o fizeram. A pena total aos primeiros réus julgados não foi referente apenas aos crimes dispostos acima, mas uma série de crimes — devidamente individualizados pelos ministros.
Não são 17 anos de pena apenas por um crime ou dois crimes, mas por diversos (incluindo deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado pela violência e grave ameaça). Poderíamos até supor que, se fosse um pai de família furtando leite para alimentar os filhos — uma figura tipo um Jean Valjean favelado — os comentaristas pediriam pelas penas máximas. Não eram. Eram apenas pessoas tentando abolir o estado democrático de direito e depredando os edifícios que abrigam as instituições fundamentais para a existência deste enquanto tentavam. Para alguns, nesses casos, vale o princípio da insignificância.
*Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional, doutorando em direito e política e professor substituto de jurisprudência no King’s College London.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute
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