Felipe Tirado: Haja ‘caso isolado’, parece até um fenômeno sistêmico
Atos de violência contra populações periféricas, negras e minorias são presentes no cotidiano das favelas e são tratados como se não estivessem relacionados. Para pesquisador, enquanto não compreendermos como a produção e a reprodução de injustiças ocorre no nosso país, cada vez mais ‘fatos isolados’ continuarão ocorrendo
Atos de violência contra populações periféricas, negras e minorias são presentes no cotidiano das favelas e são tratados como se não estivessem relacionados. Para pesquisador, enquanto não compreendermos como a produção e a reprodução de injustiças ocorre no nosso país, cada vez mais ‘fatos isolados’ continuarão ocorrendo
Por Felipe Tirado*
Nos últimos anos, acompanhamos uma explosão de “casos isolados” ocorrendo no Brasil. Recentemente, por exemplo, desde a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, diversas ações antidemocráticas, que levaram aos fatos ocorridos em 8 de janeiro em Brasília, foram rotuladas como “casos isolados”. Como vimos na capital federal, não havia nada de isolado, mas diversas manifestações de sanha golpista por parcelas da sociedade acostumadas com a impunidade.
De forma mais ampla, nas últimas décadas, a mídia noticiou uma série de “casos isolados” contra populações periféricas, negras e minorias. Atos de violência contra essas populações estão presentes no cotidiano de favelas dos mais diversos estados brasileiros, independente de quem os governa. A ocorrência é tão (absurdamente) comum que, somente nos últimos anos, por exemplo, um número relevante desses foi presenciado nas lojas da rede Carrefour, em variadas localidades.
Alguns dos mais recentes desses “casos isolados” (e de maior grau de violência) contra populações negras e periféricas ocorreram no litoral paulista, em Guarujá. Inclusive, de forma um tanto quanto excepcional, não fora nem considerado uma chacina, pelo atual governador do Estado; se tornando, assim, ainda mais “isolado”. Como reportado aqui, a violência observada em Guarujá não tinha nada de isolada, mas pôde ser vista de forma atipicamente opressiva em ao menos três estados brasileiros.
Além dos casos citados, mais comumente reportados, também é relevante (de forma específica para este pesquisador) mencionar os “casos isolados” de seletividade punitiva no sistema de justiça e os “casos isolados” de corrupção nas Forças Armadas — prática corriqueira (e corriqueiramente censurada) durante a mais recente ditadura militar. Podemos observar resquícios dessa prática na caserna, nada isolada, nas operações recentes da Polícia Federal. A expectativa de impunidade, descrita na introdução, também pode ser vista nesses casos.
São tantos casos isolados que, ao refletir um pouco sobre a tendência, parece até ser um fenômeno sistêmico, uma questão institucional ou estrutural (a depender da conceituação dos termos).
Na realidade, é fato que são tantos “casos isolados” que resta evidente, especialmente para quem se interessa pelos temas, que não são (de forma alguma) fenômenos tão excepcionais como tendem a ser retratados — pelos envolvidos ou por aqueles que têm interesse em tratá-los como tal.
Essa lógica é tão evidente que, quando se torna impossível restringir uma série de fatos de natureza similar a tal pecha, alguma medida é tomada. Ainda que os efeitos dessas medidas sejam difíceis de mensurar.
Tratemos aqui apenas da ação estatal de forma meramente ilustrativa. Quando uma série de “casos isolados” se torna uma tendência, o Executivo e o Legislativo normalmente respondem com propostas de criação de leis; como, por exemplo, no caso dos crescentes ataques a ministros do STF. A cúpula do Judiciário, por sua vez, define um conjunto de fatos de natureza similar como um “estado de coisas inconstitucional”, como o fez com o sistema prisional, em 2015.
Ainda não é tão claro como essas ações—dos três Poderes e para muito além do Estado—contribuem para a melhora da situação real, entretanto. Apesar de muitas vezes haver até boa vontade, os resultados (como bem sabemos) não são tão claros ou simples de mensurar; para não entrar em debates envolvendo correlação e causalidade. E os “casos isolados”, apesar de tudo, continuam ocorrendo, alguns com frequência cada vez maior — a atual situação do sistema prisional ilustra bem essa afirmação.
Talvez, encarar a realidade e pensar nesses fatos como não sendo tão isolados assim, mas parte de questões estruturais mais profundas seja um obstáculo necessário a se transpor. Uma série de políticos e estudiosos (e aqueles na intersecção) já propuseram diversas formas de pensar “as raízes” dessas questões, oferecendo propostas mais amplas para entender e lidar com essas injustiças.
Infelizmente, após décadas de debate, parece que lidar com a raiz de diversos desses problemas ainda não é do interesse de uma minoria da população. Uma minoria que pensa deter poder ou status exatamente em razão das questões estruturais que geram os casos discutidos aqui; por mais que essa concepção não encontre a menor (ou nenhum) reflexo na realidade.
Uma breve digressão. Ao que parece, ao contrário do que pensam esses poucos, lidar com tais injustiças sistêmicas seria benéfico até para a mais isolada das elites nacionais. Certamente, em um país menos desigual, tantas viagens para Miami ou casas em condomínios fechados, com segurança particular, não seriam tão necessárias.
Retornemos ao ponto. A partir dessa falsa ideologia, é evidente que vislumbrar as raízes que possibilitariam encontrar soluções reais para injustiças rotineiras se torna uma tarefa complexa. Se alguns daqueles que detêm o capital financeiro, político, e até os meios de comunicação (muitas vezes correlacionados) pensam que seu poder está atrelado às raízes estruturais dos fenômenos que geram tantas injustiças, qual será seu interesse em lidar com tais origens?
Nesse caso, para esses poucos, vale a pena continuar tratando fenômenos evidentemente sistêmicos como “casos isolados”. Para tanto, é natural que discursos, partidos e até mesmo políticos sejam cooptados por aqueles que têm interesse na forma como compreendem a manutenção do status quo, das mais variadas perspectivas. Mais do que isso, para eles, se torna necessário reproduzir essa lógica — por diversos meios — até que mesmo aqueles que são vítimas dessas violações as compreendam como “excessos”, “pontos fora da curva” ou “ações de uma minoria de corruptos” ou até “infiltrados”.
Decorre daí uma das complexidades centrais de lidar tanto com os sintomas quanto com as causas: as variadas camadas que velam o quão relacionados a questões estruturais fundamentais à compreensão do país têm relação com o incontável número de casos isolados reportados (sem nem começar a falar dos que não temos acesso, por ainda serem invisibilizados).
Enquanto não compreendermos, inclusive como um projeto de nação, como a produção e a reprodução de injustiças ocorre no nosso país—e como, para alguns, é interessante velar o acesso a esses fenômenos e suas origens, também de forma reproduzida—, cada vez mais “fatos isolados” continuarão ocorrendo.
*Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional, doutorando em direito e política e professor substituto de jurisprudência no King’s College London.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute
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