18 dezembro 2023

Por que tem se tornado cada vez mais fundamental saber dar nome às coisas?

Em um mundo cada vez mais conectado, interesses se tornam cada vez mais difíceis de serem acessados por todos, e o lucro está cada vez mais ligado à informação e a como nomeamos as coisas. Para pesquisador, é preciso refletir sobre a importância de nomear as coisas e sobre quem está autorizado a nomeá-las

Em um mundo cada vez mais conectado, interesses se tornam cada vez mais difíceis de serem acessados por todos, e o lucro está cada vez mais ligado à informação e a como nomeamos as coisas. Para pesquisador, é preciso refletir sobre a importância de nomear as coisas e sobre quem está autorizado a nomeá-las

Redes sociais se tornaram ambiente de divulgação de notícias falsas e de propagação de desinformação sobre conceitos e nomes (Foto: Wilson Dias/Agência Brasil)

Por Felipe Tirado*

Desde que nascemos, começamos a aprender a dar nome às coisas, a etapa inicial do processo de sociabilização. Posteriormente, em termos gerais, aprendemos sobre normas e expectativas sociais, então, sobre mitos e cerimonias, e assim por diante.

O processo que tem início em casa continua em outros ambientes: nas escolas, na rua, em parques, em clubes, nas redes sociais, entre outros espaços. Em todos esses ambientes, somos ensinados a aprender nomes (conceitos, normas) que, com o tempo, passamos a utilizar.

A partir desse processo inicial, seguimos aprendendo e, posteriormente, utilizando esses nomes, termos, normas e valores que internalizamos. Esse processo ocorre ao longo de nossas vidas, na continuação de nossa educação, em nossas ocupações — formais, informais, legais, ilegais —, em nossas relações interpessoais, nas famílias que formamos, quando mudamos de bairro, cidade, estado ou país, para citar alguns exemplos apenas.

‘Ao longo da vida, nomes têm papel fundamental, com variações ainda maiores de importância dependendo de uma série de fatores’

Ao longo da vida, nomes — termos, conceitos, classes, tipos penais — têm papel fundamental, com variações ainda maiores de importância dependendo de uma série de fatores; como, por exemplo, nossas experiências, formação e ocupação.

Visando esclarecer, apresento duas breves ilustrações da variação citada. Há presos que não possuem ensino fundamental completo e que conhecem muito mais sobre o crime atribuído a eles do que bacharéis em direito que não atuam especificamente com direito penal. Por outro lado, como observamos durante a pandemia de Covid-19, existem associações profissionais da área da saúde que não seguem preceitos fundamentais em relação à imunização, que têm origem em conceitos atribuídos por outras ciências. Essencialmente, são dois exemplos de (re)conhecer (ou não) nomes — de forma intencional ou não.

‘Em um mundo cada vez mais conectado e com mais informação disponível, nomear as coisas se torna cada vez mais fundamental’

Em um mundo cada vez mais conectado e com mais informação disponível (de qualidade amplamente variável), nomear as coisas se torna cada vez mais fundamental. O acesso a toda essa informação torna necessário — novamente, de forma apropriada ao seu contexto — saber avaliar a origem e a qualidade da informação apresentada.

Novamente, recorro a exemplos. Nas redes, é comum vermos pessoas discutindo sobre conceitos como liberdade de expressão, física quântica, jejum intermitente, investimento e até nazismo. Idealmente, caso alguém optasse por discutir sobre, trabalhar com ou, até mesmo, ensinar esses temas, seria importante ter algum conhecimento prévio sobre, pelo menos, do que se tratam.

‘Debater sobre e, pior, pretender ensinar algo sem qualquer conhecimento pode levar a uma série de consequências terríveis’

Debater sobre e, pior, pretender ensinar algo sem qualquer conhecimento pode levar a uma série de consequências terríveis, como observamos diariamente. Seguindo a sequência dos exemplos apresentados acima, tal prática poderia: levar alguém a falar impropérios sobre os limites da liberdade de expressão em um determinado país, gerando consequências jurídicas indesejadas; fazer pessoas relacionarem aspectos complexos da física com a incapacidade de alcançar objetivos pessoais; gerar, respectivamente, graves problemas de saúde e a falência de pessoas; e, por fim, incentivar um debate completamente descontextualizado sobre um dos regimes mais cruéis e homicidas da história da humanidade.

Claro, as consequências para emissores e interlocutores são diferentes, mas exemplos de consequências negativas são infinitos. Resultados positivos desse tipo de interação, por outro lado, parecem ser mais raros (talvez por darem muito mais trabalho), isso quando não são artificialmente gerados para aumentar o engajamento, por exemplo.

‘Indivíduos e organizações sempre disputaram nomes — conceitos etc. — visando interesses escusos e, comumente, danosos; uma prática comum ao longo da história’

Entretanto, parece haver uma questão ainda mais temerária em relação a nomear as coisas nos dias de hoje. Indivíduos e organizações sempre disputaram nomes — conceitos etc. — visando interesses escusos e, comumente, danosos; uma prática comum ao longo da história. Entretanto, o acesso à informação e como essa informação é acessada atualmente ampliam muito o poder de quem tem controle sobre os meios e os danos causados, como ilustrado pelos exemplos individuais acima. Se os danos causados por indivíduos são evidentes, aqueles causados por quem tem o controle dos meios e maior poder político e econômico são infinitamente maiores — apesar de, em ambos os casos, haver um esforço de ocultar as práticas e suas consequências.

Um exemplo completamente hipotético parece útil para ilustrar o argumento. Imagine, teoricamente, que um bilionário, que tem suas afiliações políticas e ideológicas e muito mais interesses políticos do que uma “pessoa média” (em razão de suas atividades econômicas) adquira um meio; suponhamos, uma rede social. Considere agora que essa rede tenha alguma relevância em processos eleitorais e seja comumente chamada — por aqueles que tem interesse individual ou institucional nela — de “esfera pública digital” ou outros termos do tipo. Na realidade, trata-se apenas de uma empresa, que (como qualquer outra) tem o lucro como objetivo e, após a aquisição hipotética, tem ainda mais interesses encobertos do que poderia ter anteriormente — como a imagem pessoal e os lucros de outros empreendimentos do novo proprietário.

Nesse caso imaginário, se o novo proprietário hipotético ou alguém (pessoa ou instituição) que tivesse acesso a ele tivessem interesse de influenciar o processo de aprendizagem exposto acima ou mesmo disputar um “nome” em um espaço extremamente amplo, o mercado estaria aberto, correto?

No caso, poderia ser a disputa do nome dado àqueles que atacam muçulmanos ou judeus — islamofobia e antissemitismo — ou mesmo os nomes atribuídos àqueles que irracionalmente se veem como uma “raça superior” ou que tentam derrubar um governo — respectivamente, racistas e nazistas, e fascistas e golpistas. Até mesmo os nomes atribuídos pelo direito a crimes e graves violações de direitos humanos estariam à venda. Para citar apenas alguns de uma infinidade de “nomes”. A restrição, o acesso e o significado de todos esses nomes estariam abertos a quem estivesse disposto a pagar mais. Afinal, o investimento hipotético feito na empresa tem que dar algum retorno, certo?

‘As transações visando a disputa desses nomes se tornariam ainda mais simples se fossem implementadas formas de censurar informações e de avaliar a precisão de postagens sem ter conhecimento técnico necessário’

As transações visando a disputa desses nomes se tornariam ainda mais simples se fossem implementadas formas de censurar informações e de avaliar a precisão de postagens sem ter conhecimento técnico necessário. Pior ainda seria se qualquer um pudesse adquirir uma forma de ter “legitimidade” na rede — como um selo de verificação, por exemplo.

O exemplo é extremo, e parece ser improvável que ocorra. Além disso, não parece um bom investimento de uma perspectiva exclusivamente financeira — nesse sentido, provavelmente daria prejuízo. Quer dizer, a menos que houvesse muito interesse nas disputas em relação ao significado dos “nomes”.

Entretanto, são exatamente os exemplos extremos que, por um lado, nos ensinam o que não deveria ser feito; ou, por outro lado, que servem como uma lente de aumento sobre as práticas cotidianas. Nesse sentido, esse exercício hipotético, propõe ilustrar de forma mais marcante, a crescente necessidade de nomear as coisas da forma apropriada e não apenas aceitar os nomes que apresentam a nós como sendo adequados a elas, sem nenhum contexto ou conhecimento prévio.

Em um mundo cada vez mais conectado, com interesses que se tornam cada vez mais difíceis de serem acessados por todos e no qual o lucro está cada vez mais ligado à informação e a como nomeamos as coisas, talvez seja necessário parar e refletir um pouco sobre a importância de nomear as coisas, e sobre quem nós permitimos que as nomeiem por nós.


*Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching Assistant, tutor e doutorando em Direito no King’s College London (KCL). Mestre em Direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute

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