02 maio 2022

Fernando Filgueiras: estratégia brasileira para inteligência artificial é ambígua, mal formulada e sem clareza de propósito

Brasil parece ficar para trás na corrida internacional pelo domínio da tecnologia de inteligência artificial, e falta de um plano bem desenvolvido pode deixar o país refém do desenvolvimento internacional nesse campo

Brasil parece ficar para trás na corrida internacional pelo domínio da tecnologia de inteligência artificial, e falta de um plano bem desenvolvido pode deixar o país refém do desenvolvimento global na área

Sessão de debates temáticos do Senado Federal sobre o uso da inteligência artificial, em 2021 (Roque de Sá/Agência Senado)

Por Daniel Buarque

Enquanto o mundo vive uma corrida internacional pelo domínio da tecnologia de inteligência artificial (IA), e países de diferentes partes do mundo desenvolvem políticas para desenvolver e regulamentar novas tecnologias nessa área, o Brasil parece ficar para trás. Até agora, a estratégia do país é ambígua, mal formulada e não tem clareza de propósito, avalia o pesquisador Fernando Filgueiras em entrevista à Interesse Nacional.

Filgueiras acaba de publicar na revisa acadêmica Global Perspectives o artigo Artificial Intelligence Policy Regimes: Comparing Politics and Policy to National Strategies for Artificial Intelligence. O estudo compara políticas e estratégias nacionais para lidar com a questão da inteligência artificial adotadas por seis países: Estados Unidos, Brasil, Arábia Saudita, China, Cingapura e Rússia.

Apesar de ser uma tecnologia fundamental para o mundo, com potencial de aumentar a competitividade de um país, mas também de criar impactos drásticos na sociedade, o trabalho argumenta que a política de inteligência artificial ainda está em estágio inicial no mundo. E é preciso entender como ela se desenvolve em diferentes regimes políticos para compreender o lado do desenvolvimento da tecnologia e o de instrumentos regulatórios que se concentram nos impactos dela na sociedade, na economia e na política.

Professor associado da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG), Filgueiras é doutor em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e estuda políticas públicas, comportamento político, instituições e organizações públicas.

Na entrevista abaixo, Filgueiras fala sobre a importância da IA no mundo e as diferentes estratégias adotadas por países para lidar com ela. Ele avalia ainda a situação do Brasil, e indica que o país precisa estabelecer objetivos claros, envovler atores de diferentes áreas, instrumentalizar uma política para o setor, monitorar essas políticas e criar mecanismos regulatórios adequeados.

Leia abaixo a entrevista completa.

Daniel Buarque – Seu artigo analisou estratégias de seis países para lidar com questões de política em relação a inteligência artificial. O que descobriu nessa pesquisa?

Fernando Filgueiras – Hoje temos uma espécie de corrida internacional pelo domínio da tecnologia de inteligência artificial. É fato que a IA amplia a competitividade de um país, proporciona otimização em diferentes campos organizacionais, especialmente na indústria, em mercados e em governos. IA é uma tecnologia de propósito geral porque ela tem impactos os mais variados na sociedade, que visam à otimização e ampliação da competitividade econômica. Dessa forma, diversos países estão formulando estratégias nacionais para IA e criar uma abordagem para políticas públicas nesse campo. 

‘A IA amplia a competitividade de um país, proporciona otimização em diferentes campos organizacionais, especialmente na indústria, em mercados e em governos’

Tenho estudado a questão das estratégias nacionais para inteligência artificial, assim como o desenho e as ferramentas de políticas que essas estratégias têm enunciado. O que concluímos é que existem diferentes abordagens para políticas de IA, as quais vão mobilizar ferramentas e criar abordagens distintas para os problemas emergentes. Existem muitos pontos comuns que a academia e organizações internacionais como OCDE e ONU têm levantado. Esses pontos comuns de políticas de inteligência artificial são: primeiro, o incentivo para pesquisa e desenvolvimento de IA aplicada a diferentes campos de negócios e também em governos; segundo, a definição de princípios éticos e perspectivas regulatórias que passem pelo problema da governança de dados, parâmetros regulatórios, transparência e accountability algorítmica; o terceiro ponto é criar uma abordagem para a governança de tecnologias emergentes; quarto, criar uma abordagem para as transformações do trabalho, do emprego e construção de capacidades para lidar com as mudanças que já emergem com a IA. Estes são pontos comuns que emergem nas diferentes estratégias nacionais, mas para os quais os países constroem respostas diferentes.

O que concluímos é que os países, embora formulem estratégias que reconheçam esses pontos, formulam abordagens distintas, as quais são definidas pelo regime político e pelo modo de governança. Por exemplo, países de regime autoritário que associam um modo de governança mais hierárquico e menos aberto a parcerias com a sociedade formulam uma abordagem para a IA mais voltada para o controle social. Por exemplo, a estratégia chinesa expressa claramente em seus objetivos uma perspectiva de controle e reforma moral da sociedade, criando mecanismos de vigilância sem precedentes. A estratégia russa emula algumas características da própria governança da internet, dando ao governo total controle do fluxo de dados, prioridade para a indústria militar russa. Já países autoritários como Cingapura, que têm um modo de governança menos hierárquico, criam parcerias com mercados e sociedade para o desenvolvimento de IA, embora não haja tantos controles regulatórios sobre a tecnologia. Já países democráticos como os Estados Unidos abordam estratégias de IA em forte parceria com indústria e mercados, incentivos estatais para pesquisa e desenvolvimento robustos e políticas para a transição do trabalho.

Daniel Buarque – Como o Brasil aparece nesse cenário em comparação com outros países?

Fernando Filgueiras – O Brasil tem uma posição curiosa. O governo brasileiro abriu uma consulta pública a partir de um benchmark internacional realizado a partir de outras estratégias nacionais mundo afora. Nesse sentido, em primeiro lugar, não iniciamos com o mais básico, que seria a construção de um estado da arte ou de um diagnóstico sobre a IA no Brasil. Ou seja, percebermos o que temos, formular objetivos claros para uma política de IA (termos noção de onde queremos chegar) e pensarmos um portfólio de ferramentas para lidar com esse assunto. A estratégia brasileira é curiosa porque ela emula os objetivos de outras estratégias, mas não deixa claro como o governo pretende alcançar esses objetivos e quando. Por exemplo, o governo sequer se deu ao trabalho de sistematizar as várias contribuições que vieram da sociedade civil e da indústria e publicou um decreto confirmando um benchmark generalista, sem claramente dizer quais são os objetivos e o que o governo vai fazer para alcançar esses objetivos.

‘A estratégia brasileira emula os objetivos de outras estratégias, mas não deixa claro como o governo pretende alcançar esses objetivos e quando’

Embora a estratégia não seja um documento claro e que diga quais são os propósitos do governo, alguma coisa tem sido feita. O Brasil tem criado iniciativas interessantes junto com universidades para estimular a pesquisa no campo. A criação de centros de excelência para pesquisa em inteligência artificial é uma iniciativa importante, com criação de fundos públicos que apoiem o desenvolvimento de pesquisa em campos considerados estratégicos, como inteligência artificial em mercados, saúde e indústria. Fundos públicos do sistema S também têm proporcionado capacitação de mão-de-obra e transições do trabalho, por meio de iniciativas do SENAI, SESI e SESC, que usam fundos públicos para realizar ações públicas. Também temos editais da FINEP que financiam pesquisa e desenvolvimento no campo. Embora já existam iniciativas, elas estão dispersas e fragmentadas, carecem de um trabalho de coordenação e de construção da governança que possibilitem aprofundar as parcerias com o mercado, a sociedade e uma abordagem mais sistemática para os diferentes desafios que emergem com a inteligência artificial.

Deixe-me ser mais específico. O governo, por exemplo, não tem uma perspectiva clara sobre governança de dados. Isso é muito importante porque não teremos desenvolvimento de IA sem que pesquisadores e desenvolvedores possam ter acesso a dados os mais variados e em volume para que possam impactar e otimizar diferentes atividades. O governo, naturalmente, é um dos maiores coletores de dados, sobre diversas temáticas, mas não tem uma perspectiva clara sobre como dados devem ser tratados, compartilhados e utilizados. Atualmente o governo usa a LGPD para acabar com o compartilhamento de dados, justificando que a LGPD é impeditiva e proibitiva. A LGPD não é. O que a LGPD quer é que organizações, públicas e privadas, definam protocolos e deem transparência sobre como, onde, quando e com quem dados estão sendo compartilhados.

Dizendo tudo isso em outras palavras, o governo necessita formular uma estratégia sólida sobre como ele quer alcançar os objetivos de sua inteligência artificial. É evidente que é quase impossível concorrer com os grandes players internacionais da IA, como Estados Unidos, China, Japão, Alemanha. Porém, podemos fazer avanços definindo objetivos sólidos, os quais permitam o avanço dessa agenda, enumerando e criando as ferramentas adequadas e coerentes para o desenvolvimento de pesquisa aplicada, sai inserção no mercado brasileiro e solução de problemas que emergem. Ao invés disso, optamos por uma estratégia ambígua, mal formulada, sem clareza de propósito e que pode deixar o país refém do desenvolvimento internacional nesse campo.

Daniel Buarque – De que forma as políticas de um país em relação à estratégias para lidar com inteligência artificial podem influenciar o posicionamento dele em relação a outras nações do mundo? Ou seja, como a IA vai influenciar as relações internacionais?

Fernando Filgueiras – Em primeiro lugar, precisamos ser bem claros. Uma estratégia nacional como essa quer mudar o comportamento de vários atores. Pesquisadores, indústria nacional, mercado e o próprio governo devem estar atentos ao que vem sendo feito e ser incentivados a buscarem soluções que usem a inteligência artificial para otimizar a indústria nacional, impulsionar mercados e otimizar atividades governamentais. Isso requer infraestrutura e incentivos adequados para que esses atores impulsionem a inteligência artificial dentro de requisitos regulatórios e éticos adequados.

Nesse sentido, uma estratégia nacional demonstra o posicionamento de um país dentro da arena internacional, a qual cada vez mais tem a inteligência artificial em sua agenda. Os países formulam estratégias nacionais para a IA porque ela espelha uma espécie de vitrine, visando novos negócios, confiança na indústria nacional e capacidades de desenvolvimento.

‘Países formulam estratégias nacionais para a IA porque ela espelha uma espécie de vitrine, visando novos negócios, confiança na indústria nacional e capacidades de desenvolvimento’

A inteligência artificial já é um tópico que influencia muito a arena internacional. A ONU, por exemplo, tem criado uma perspectiva geral para a IA e incentivado que os países adotem o desenvolvimento de tecnologias emergentes de uma forma mais interdependente e sustentável. A OCDE criou uma perspectiva para a IA e observa a necessidade de mecanismos regulatórios adequados, baseados em evidências, que ao mesmo tempo incentivem o desenvolvimento de pesquisa nos diferentes campos da IA e o desenvolvimento de uma IA mais ética e acurada. O G20 formulou um grupo de especialistas que congrega academias de ciências dos diversos países membros. Os trabalhos do S20 se voltaram para a cooperação científica, desenvolvimento de ciência aberta em temas relacionados à IA, combate aos problemas de cibersegurança, vigilância global e assimetrias de poder internacional.

Veja que esse é um tema muito importante na arena internacional, para o qual ainda precisamos de muito aprendizado. O Brasil poderia contribuir solidamente. Não apenas porque é uma das maiores economias, mas porque temos uma capacidade instalada interessante e significativa, mas que não tem sido mobilizada adequadamente pelo governo, seja para criar uma estratégia nacional, seja para ter uma posição mais clara nesses fóruns internacionais.

Daniel Buarque – Que impactos sociais, econômicos e políticos a inteligência artificial pode criar, e quais os mais avançados mecanismos de regulamentação disso no mundo hoje?

Fernando Filgueiras – Primeiro os impactos econômicos. A IA otimiza a competitividade de um país. Pense na possibilidade que hoje algoritmos de IA podem não apenas entender o que o consumidor deseja comprar, em que momento e onde, mas também o que esse consumidor deve desejar dentro de um mercado global. Difícil mensurar esses impactos, mas o surgimento de grandes empreendimentos globais como a Amazon, conecta mercados e indústria de uma maneira que não temos precedentes, com uma dinâmica de crescente oligopolização de mercados que afeta diretamente indústrias e mercados nacionais. Além disso, o impacto no trabalho e nas capacidades nacionais são enormes. Países são cada vez mais guindados a prepararem transições do trabalho para evitar os impactos negativos. E isso o mercado não vai fazer.

Sobre os impactos sociais, existem vários tópicos. Tecnologias de IA, que nem são tão inteligentes assim, produzem novas formas de exclusão e injustiças sociais. Existem pontos muitos importantes como os vieses de gênero, raça e nacionalidade, produção de novas zonas de exclusão, onde serviços e políticas baseados em IA não chegam. Mencionamos a questão do trabalho, e ela é vital. Existem simulações que mostram como o desemprego crescerá com a emergência de veículos autônomos em cadeias logísticas. Veículos autônomos podem otimizar cadeias logísticas, afinal a IA embarcada nesses veículos não precisa dormir ou se alimentar, reduzindo custos e tempo de transporte. Mas a que custo social? O desemprego de milhares de caminhoneiros. São questões que precisamos pensar.

‘Tecnologias de IA, que nem são tão inteligentes assim, produzem novas formas de exclusão e injustiças sociais’

Além disso, precisamos pensar os impactos políticos. Já existe uma assimetria política internacional que emerge com o uso da IA. No campo militar, por exemplo, o desenvolvimento de armamentos letais autônomos está modificando as dinâmicas de guerra e uma nova corrida armamentista com players muito poderosos, em particular Estados Unidos, Rússia e China. Embora haja uma discussão sobre o banimento dessas tecnologias no Conselho de Segurança da ONU, muito provável que esse banimento não avance e crie uma espécie de nova guerra fria. Além disso, temos impactos políticos diretos na arena doméstica dos países. A IA possibilita o avanço de formas tecnocráticas e muitas vezes autoritárias, aplicadas por governos. O caso da Rússia é emblemático sobre isso, com a criação de instrumentos de vigilância e restrição de liberdades baseados em diferentes técnicas de IA, que passam pela presença de mecanismos de reconhecimento facial em espaços públicos, construção de redes neurais para vigiar publicações, estabelecer censura e formas de controle. O principal impacto político da IA é que ela está destruindo a ideia do mundo digital como um espaço sem fronteiras e que cidadãos poderiam ser livres nele. Essa ideia emergiu muito fortemente no final da década de 1980. Mas o que vemos hoje é censura, controle e crescente restrição de direitos. Por isso precisamos debater a constituição de direitos digitais e cidadania digital, porque o que está gradativamente morrendo é a democracia.  

Daniel Buarque – Quais são os pontos fortes e fracos da estratégia brasileira em relação à inteligência artificial?

Fernando Filgueiras – Eu penso que a estratégia brasileira é ambígua, mal formulada e que não tem clareza de propósito. O que ela tem como maior ponto forte é uma comunidade de prática e pesquisa bastante significativa, criação de centros de excelência e a presença da indústria. Mas, de alguma forma, precisamos romper a lógica mais corporativista e criarmos uma estratégia que seja capaz de usar instrumentos de políticas públicas de forma coerente e consistente com os objetivos. O ponto mais fraco é exatamente esse. Precisamos pensar instrumentos que possibilitem o avanço da ciência e do desenvolvimento, financie os atores corretos e quebre a lógica de dependência que emerge com a IA. A indústria nacional, o mercado e o governo estão se tornando reféns das grandes big techs e nem notamos. Adotamos modelos e tecnologias dessas grandes big techs para otimizar um determinado negócio nacional, mas fazemos isso de forma acrítica e pouco sustentável para os interesses nacionais.

Daniel Buarque – Que prioridades o Brasil deveria abordar na tentativa de desenvolver uma política mais importante em relação a IA?

Fernando Filgueiras – A meu ver, precisamos, primeiro, de clareza de objetivos. Segundo envolver o maior número possível de atores e construir um processo de concertação que possibilite pensarmos os incentivos para a academia, os incentivos para a indústria, criação e fortalecimento de capacidades, negociação política. Terceiro, governo deve instrumentalizar essa política de maneira adequada, em que os instrumentos sejam coerentes para alcançar os objetivos e que os portfólios de instrumentos sejam coerentes. Quarto, avaliar permanentemente e monitorar essas políticas de perto para construir aprendizados e ir aprimorando ao longo desse processo. Quinto, criar os mecanismos regulatórios adequados. Por exemplo, o Congresso está debatendo um Lei de Inteligência Artificial para o Brasil, sujeita a todo tipo de pressão corporativa das big techs, e sem sequer saber o que temos no Brasil e como a IA tem sido operada. O Brasil é um mercado riquíssimo para essas empresas, as quais cada vez têm mais influência na política nacional. Mas a questão que fica: o que queremos enquanto sociedade sobre esse tópico?

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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