Franceses votam pelo Estado de bem-estar e por uma Europa de paz
Eleição parlamentar confirmou a tese de que a parcela progressista da sociedade é maior do que aparece nas pesquisas de opinião e na cobertura da mídia, mas só vai às urnas quando é preciso posicionar-se contra o retrocesso político
Pela primeira vez em quase 30 anos, uma frente de partidos de esquerda conquistou a maioria dos 577 assentos da Assembleia Nacional da França, após disputa de voto distrital em dois turnos. Em 7 de julho, a Nova Frente Popular (NFP) elegeu 182 deputados, dos quais 76 da França Insubmissa (LFI), 64 do Partido Socialista (PS), 33 dos Ecologistas e 9 do Partido Comunista (PCF). Espera ainda aliança com mais 13 parlamentares, de “outras esquerdas”.
O centro, representado pela coligação Juntos, do presidente Emmanuel Macron, elegeu 168 deputados, e o partido Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen, com aliados republicanos de direita, somou 143.
Consolidam-se, assim, três blocos políticos fortes e diferenciados, seguidos pela bancada de 46 Republicanos, a direita que não apoiou Le Pen. Outros 25 eleitos pertencem a partidos pequenos ou se declaram independentes.
A maioria absoluta de 289 cadeiras não foi alcançada por qualquer dos blocos isoladamente e, para a aprovação de leis, será necessário formar coalizões por tema.
Nas grandes cidades, como Paris, Lyon e Marseille, a Nova Frente Popular venceu por larga maioria. Os 18 distritos de Paris elegeram o Juntos ou a NFI, liderada por Jean-Luc Mélenchon. A esquerda foi mais forte nas regiões costeiras da Bretanha e da Baixa Normandia, de tradição católica, além dos Altos Pirineus e dos Alpes.
O voto na extrema direita concentrou-se em três zonas: a fachada mediterrânea, onde convivem, em tensão, os colonos retornados da Argélia e os novos imigrantes do Magrebe e da África subsaariana; a depressão central, área de agricultores brancos, isolados pela falta de serviços públicos, como transporte e hospitais, origem do movimento dos “gilets jaunes” contra o preço dos combustíveis; e o Norte, em que a decadência industrial do carvão, aço e têxteis converteu a classe operária outrora sindicalizada em desempregados pobres e ressentidos. A própria Marine Le Pen vem desta região, tendo sido reeleita por Pas-de Calais, porto de espera de migrantes para a travessia da Mancha rumo ao Reino Unido.
A principal novidade da eleição foi a retirada recíproca de candidaturas entre a frente de esquerda e parcelas do centro, a fim de possibilitar a vitória dos candidatos democráticos com maior viabilidade eleitoral. Mais de 200 concorrentes, a maioria da França Insubmissa, renunciaram em favor de nomes moderados. A estratégia vitoriosa demonstrou grandeza, maturidade e união pela democracia e a justiça social, conforme mensagem do Presidente Lula sobre o pleito francês.
Foi a maior taxa de comparecimento (67% ou 28,8 milhões) desde as legislativas de 1997, que deram maioria absoluta ao socialista Lionel Jospin, para governar em coabitação com o então presidente gaulista Jacques Chirac.
Confirmou-se, assim, a tese de que a parcela progressista da sociedade é maior do que aparece nas pesquisas de opinião e na cobertura da mídia, mas só vai às urnas quando é preciso posicionar-se contra o retrocesso político. Os jovens, a população das periferias e as mulheres se mobilizaram e encheram as ruas, em apelo à “barragem” da extrema-direita.
A esquerda
A aliança dos partidos de esquerda e verdes consolidou-se em torno de um programa de recuperação do poder de compra e de prerrogativas sociais, inspirada no Front Populaire do socialista Léon Blum, movimento que, em 1936, resistiu à ascensão do nazifascismo e passou à história como marco da conquista de direitos fundamentais.
O programa de governo da Nova Frente Popular inclui, entre outros pontos:
- controle temporário do preço de bens de primeira necessidade;
- aumento do salário mínimo;
- restauração da idade de aposentadoria anterior à reforma previdenciária imposta por decreto presidencial;
- reversão das restrições ao seguro-desemprego;
- benefícios aos idosos pobres, que vivem em casas de repouso;
- reconhecimento do Estado da Palestina (medida que depende de acordo com o Eliseu, uma vez que a política externa é prerrogativa presidencial)
Apesar de críticas da ortodoxia econômica e de agências de risco internacionais, o programa da NFP foi legitimado pela economista e prêmio Nobel francesa, Esther Duflo, em artigo publicado no Financial Times, pouco antes do segundo turno, em que defendeu a retomada da produção, a redistribuição de renda e a transição ambiental como agendas prioritárias para a França.
O centro
No campo do autointitulado “extremo centrismo”, Emmanuel Macron logrou converter em recuo honroso a débâcle anunciada pelas eleições europeias, graças ao acordo de apoios mútuos com a frente de esquerda. Ministro da Economia do último presidente socialista, François Hollande (que ressurge como deputado do PS em sua região natal), elegeu-se presidente em 2017. Uma vez no poder, iniciou giro à centro-direita, para terminar o segundo mandato com a alcunha de “presidente dos ricos”.
A extrema-direita
Depois de renegar a herança do pai e mudar o nome do partido, Marine Le Pen busca tornar a Reunião Nacional mais palatável aos setores empresariais, tendo apresentado Jordan Bardella, de 28 anos, como candidato a substituto do macronismo decadente.
O oportunismo da manobra, entretanto, afastou o voto de parte dos trabalhadores desencantados, que em alguns distritos voltaram a apoiar a esquerda. Embora a liderança do RN rejeite o rótulo de extremista, defenda em geral o Estado laico e possa até ser liberal em relação alguns costumes, muitos de seus apoiadores exibem atitudes violentas e racistas, em todas suas formas: antinegro, antissemita ou islamofóbica.
A proposta de restringir direitos dos franceses com dupla cidadania revelou-se, afinal, excessiva, tendo gerado forte rejeição, principalmente nas periferias urbanas, onde a maioria dos nascidos em França tem origem na imigração.
Formação do governo
No semipresidencialismo francês, a nomeação do primeiro-ministro é atribuição do presidente da República, que não está formalmente obrigado a acatar o indicado pelo partido mais votado, embora esta seja a tradição. Em caso de crise, mas apenas uma vez por ano, o Parlamento pode ser dissolvido pelo presidente da República, com a convocação de eleições antecipadas.
Foi o que fez Macron em 9 de junho passado, depois das eleições europeias. Moções de censura ao governo, porém, podem ser a qualquer tempo aprovadas pela maioria dos deputados e também derrubar o governo. Por isso o primeiro-ministro deve contar com o suporte de uma maioria minimamente estável.
Ao não aceitar a renúncia imediata oferecida pelo premiê Gabriel Attal, Macron decidiu dobrar a aposta eleitoral e jogar a carta da instabilidade política. Referindo-se aos riscos de segurança gerados pela proximidade dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Paris, pretendeu prolongar a interinidade de seu desgastado governo até, pelo menos, 8 de setembro.
Poucos dias depois, sua primeira declaração pública surpreendeu até mesmo os correligionários: “ninguém venceu”, “todos são minoritários”, “só as forças republicanas têm maioria absoluta”, escreveu Macron, em carta aos franceses. Propôs, então, a união destas alegadas “forças republicanas” em torno de um governo “técnico” e plural, com a paradoxal exclusão de dois dos partidos mais votados isoladamente (a França Insubmissa e a Reunião Nacional).
A reação foi imediata. Mélenchon acusou o presidente da República de ignorar os resultados eleitorais e tentar restabelecer o “direito de veto real”, da monarquia, contra o sufrágio universal da República. Ao chamado das urnas por um debate verdadeiramente político, em torno de um programa de governo, Macron reagiu com a proposta de um gabinete supostamente despolitizado para ganhar tempo.
Tempo para quê? Para evitar a coabitação com o primeiro-ministro do partido da maioria, ainda que não absoluta, dos membros do Parlamento. Tempo para atrair a seu campo setores do Partido Socialista e dos Verdes em nome da governabilidade, enfraquecendo a França Insubmissa.
Neste cenário, seriam passíveis de sedução o deputado social-liberal Raphaël Glucksmann (defensor do armamento da Ucrânia como ponto essencial do programa da NFP) e Marine Tondelier, líder dos ecologistas, potencialmente capaz de atrair o eleitorado feminino, de tendência mais combativa. Até o momento, entretanto, Marine Tondelier e Olivier Faure, este na condição de primeiro-secretário do PS, prometeram fidelidade de suas legendas à Nova Frente Popular.
Esses movimentos têm como pano de fundo a eleição presidencial de 2027.
Na impossibilidade de um terceiro mandato de Macron, a centro-direita poderia apresentar o ex-PM Edouard Philippe, que criou o partido Horizontes, mas ainda se coligou ao Juntos neste pleito, ou o jovem PM demissionário, Gabriel Attal, quem também se distancia gradualmente do presidente, dentro do mesmo Renascença.
Na LFI, a escolha natural seria Jean-Luc Mélenchon, veterano candidato presidencial, que liberou seu eleitorado para votar em Macron contra Marine Le Pen no segundo turno de 2022, mas ainda assim é percebido como radical. Inicialmente acusado de antissemitismo por criticar a ação de Israel em Gaza, acabou por atrair para a França Insubmissa a simpatia dos jovens, solidários com a tragédia palestina. Mais recentemente, despontam os nomes dos deputados François Ruffin, desafeto de Mélenchon, e Mathilde Panot, ex-tesoureira de campanha e líder do partido na Assembleia.
Na Reunião Nacional, Marine Le Pen reassume a liderança de seu grupo parlamentar, insistindo em que sua vitória está próxima.
Sairá em vantagem quem melhor souber interpretar a mensagem das urnas. O eleitorado demonstrou estar disposto a correr riscos pela democracia e pela reconstrução de um Estado do bem-estar que garanta cidadania plena ao conjunto dos franceses, independente de sua origem. Deu igualmente sinais de rejeição do projeto econômico ultraliberal, simbolizado por Ursula von der Leyen na presidência da Comissão Europeia.
A frustração pelo engajamento em guerras na Ucrânia e em Gaza, embora nem sempre explicitada, também encontrou expressão no voto popular antissistema, à esquerda e à direita. A renovada aliança da França com os Estados Unidos na OTAN deverá evidenciar, cada vez mais claramente, o contraste entre o ideal de uma Europa da paz para todos e a realidade de uma Europa da segurança para poucos.
Cláudia de Borba Maciel é diplomata e embaixadora do Brasil na Guiné Bissau. Mestre em relações internacionais pela UNB, atuou nas embaixadas do Brasil em Buenos Aires, Caracas, Quito e Paris, no Consulado em Munique e na Missão junto à ONU, em Genebra.
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