10 julho 2025

Israel, Rússia e outros conflitos – Existe guerra justa?

Em um cenário global marcado por guerras que se multiplicam desde 1946, cresce o debate sobre o que torna um conflito legítimo. A doutrina da “guerra justa” — que exige autoridade legítima, causa justa, intenção reta, proporcionalidade e uso como último recurso — se choca com a realpolitik, que privilegia segurança e poder. Assim, líderes justificam guerras enquanto civis pagam o preço.

Destruição deixada por ataques de Israel à Faixa de Gaza (Foto: UNRWA)

O conflito é um fenômeno milenar que marca, desde os primórdios, a vida social do homem. Divergências entre indivíduos evoluem para discordâncias entre grupos e, posteriormente, para o confronto entre comunidades politicamente organizadas: as guerras. 

As vias de fato ou o tilintar dos sabres acontecem quando o canal do diálogo se mostra, pelo menos para uma das partes, como esgotado. A persuasão cede espaço para a força. E o poder se expressa pelo esgarçamento da pedra, do ferro e das entranhas. Quase sempre com efeitos colaterais que transcendem o choque militar, aniquilando ou mutilando civis, sem preconceito de gênero, raça ou idade.

‘O número de conflitos no mundo tem aumentado desde o final da Segunda Guerra Mundial’

O número de conflitos no mundo tem aumentado desde o final da Segunda Guerra Mundial. Quer seja sob a égide da Guerra Fria, sob o manto do unipolarismo Norte-Americano ou, ainda, sob os auspícios do multicentrismo das últimas décadas, a escalada na quantidade de confrontos armados não cessa. 

Em particular, passamos de 17 conflitos armados em 1946 para 61 em 2024, conforme estimativas do Uppsala Conflict Data Program – UCDP (ver Gráfico 1). 

GRÁFICO 1

Obviamente os tipos de combate possuem feições muito distintas. O UCDP propõe uma tipologia com quatro categorias, conforme critérios de participação dos atores e localização dos confrontos. 

Em primeiro lugar, os conflitos extra sistêmicos ocorrem entre um Estado e um grupo não estatal localizado fora de seu território nacional. Nesse tipo de conflito, o governo combate para manter ou estabelecer controle sobre um território que não integra o sistema estatal reconhecido. 

Em segundo lugar, os conflitos interestatais envolvem dois Estados soberanos, ambos reconhecidos segundo o sistema de membros de Gleditsch e Ward (1), sendo caracterizados por confrontos diretos entre forças armadas regulares de Estados distintos. 

Em terceiro lugar, os conflitos intraestatais ocorrem dentro das fronteiras de um único Estado e envolvem, de um lado, o governo nacional (lado A) e, de outro, um ou mais grupos rebeldes (lado B), sem a intervenção direta de tropas de governos estrangeiros. 

Por fim, os conflitos intraestatais internacionalizados apresentam as mesmas características básicas dos conflitos intraestatais, mas distinguem-se pela presença de governos estrangeiros que intervêm militarmente com tropas em apoio a um dos lados do conflito (2). 

‘Houve um aumento paulatino e significativo dos confrontos intra-estatais (a partir de 1960) e um incremento brusco e expressivo das lutas intraestatais internacionalizadas (a partir de 1970)’

O Gráfico 2 revela que, se logo após a Segunda Guerra Mundial os quatro tipos de conflitos se encontravam em um patamar relativamente baixo e próximo, há um aumento paulatino e significativo dos confrontos intra-estatais (a partir de 1960) e um incremento brusco e expressivo das lutas intraestatais internacionalizadas (a partir de 1970) e que se intensificou nos últimos 15 anos (3). 

GRÁFICO 2

A base de dados (UCDP) também permite identificar a intensidade dos conflitos e cataloga informações sobre os envolvidos em cada querela. 

A partir de tal base, o que se pode observar ao se focar nas duas conflagrações que marcam o cenário internacional hoje? 

Filtrando-se apenas os registros em que o governo de Israel aparece como uma das partes, observa-se, no Gráfico 3, que a maior quantidade de casos de conflito armado tem como rival insurgentes palestinos. Em segundo lugar aparece a Palestine Liberation Organization (PLO), criada em 1964 com o objetivo de representar o povo palestino e lutar por sua autodeterminação, tendo papel central em diversos conflitos no Oriente Médio ao longo do século XX; e o Rejectionist Front, uma coalizão de facções palestinas que se opuseram aos acordos de paz mediados pela PLO nos anos 1970, surgindo como uma reação à política de negociação com Israel, defendendo a luta armada como única via legítima. O Hezbollah, movimento político e grupo paramilitar xiita libanês fundado em 1982 com apoio do Irã, originalmente voltado à resistência contra a ocupação israelense no sul do Líbano, completou o ranking em terceiro lugar.  

GRÁFICO 3 (4)

Relativamente à Rússia (5), nota-se, consoante o Gráfico 4, que a maior parte dos conflitos situa-se na categoria intra-estatal, com os históricos movimentos separatistas dos países Bálticos (LNPA, LTS(p)A e APF), então sob a tutela soviética e, mais recentemente, com a mobilização secessionista da Chechênia, do Daguestão e, também, dos esforços independentistas levados a cabo, por um lado, pelas Forces of the Caucasus Emirate – um movimento jihadista que busca estabelecer um Estado islâmico teocrático na região do Cáucaso Norte, separado da Federação Russa – e, por outro lado do Estado Islâmico (IS) (6), que se tornou um dos principais inimigos jihadistas da Rússia a partir de 2015, quando Moscou iniciou sua intervenção militar na Síria em apoio ao regime de Bashar al-Assad. Tudo isso refletindo, ainda, a reorganização político-territorial pós-queda da URSS. Mas constata-se igualmente conflagrações de tipo inter-estatal, com a Ucrânia despontando como um inimigo de monta e costumeiro. 

GRÁFICO 4 (7)

Tanto no caso de Israel, quanto no da Rússia,  o padrão de confrontos reforça a lógica realista de segurança preventiva, dissuasão e manutenção do status quo territorial. Ao rejeitarem concessões assimétricas e confiarem mais na força do que na negociação, tanto Estados quanto grupos insurgentes operam sob o imperativo da autopreservação. 

‘Enquanto a estrutura do sistema internacional não se alterar de forma significativa, a guerra continuará a ser, como postulou Clausewitz, a continuação da política por outros meios’

Nesse cenário, o futuro aponta para a perenidade — e não a superação — dos conflitos armados, sobretudo em regiões onde a rivalidade histórica, a fragmentação estatal e a intervenção externa coincidem. Enquanto a estrutura do sistema internacional não se alterar de forma significativa, a guerra continuará a ser, como postulou Clausewitz, a continuação da política por outros meios.

Do ponto de vista realista, a tendência de crescimento dos conflitos armados, especialmente os de natureza intra-estatal e internacionalizada, revela uma persistente dinâmica de insegurança no sistema internacional. Em um mundo marcado pela ausência de autoridade supranacional coercitiva e pela busca contínua de vantagem relativa, a guerra permanece não apenas possível, mas provável. 

A amplificação do número de conflitos desde 1946, aliada à multiplicação de atores não estatais com capacidade de disrupção, evidencia a fragilidade das instituições internacionais e a limitação de normas como o jus ad bellum para conter o recurso à força.

O fato é que a gênese da guerra ancora-se, desde sempre, em um argumento teleológico imutável: a busca pela justiça. Dos primórdios, com Santo Agostinho [De Civitate Dei (século IV)], passando por Tomás de Aquino [Summa Theologiae (século XIII)], Francisco de Vitória [Relectiones Theologicae (século XVI)], Hugo de Grotius [De Jure Belli ac Pacis (século XVII)] e, mais proximamente, com Michael Walzer [Just and Unjust Wars: A Moral Argument with Historical Illustrations (século XX)], a tônica é que a guerra só deve ser deflagrada lastreada em princípios legítimos tornando-a, portanto, justa. Ora, quem a desencadeia sempre alega que ela é justa. 

Com o fito de auferir tal qualidade, alguns parâmetros vêm, tradicionalmente, sendo consagrados. São eles: 

  • (i) autoridade legítima – é necessário que a guerra seja declarada por um governo soberano reconhecido, capaz de representar juridicamente uma coletividade política; 
  • (ii) causa justa – comumente entendida como a defesa contra uma agressão injusta, a proteção de inocentes ou a restauração de uma ordem violada;
  • (iii) intenção reta –  a guerra deve ser travada com o propósito de promover a paz, a justiça ou a reparação de um mal; 
  • (iv) perspectiva razoável de sucesso – a decisão de guerrear deve avaliar se os objetivos justos da guerra são efetivamente alcançáveis, pois iniciar um conflito fadado ao fracasso pode representar uma irresponsabilidade moral; 
  • (v) proporcionalidade – a guerra deve ser uma resposta medida, não excessiva, em relação à agressão sofrida; 
  • (vi) último recurso – a guerra só é moralmente aceitável quando todas as alternativas pacíficas e diplomáticas foram seriamente consideradas e esgotadas.

O problema é que as interpretações de tais parâmetros se mostram, com frequência,  dissonantes. E que não há instituição competente para efetuar um julgamento isento, democrático e definitivo – embora o Conselho de Segurança da ONU pretenda, por vezes, encarnar a indumentária de um Leviatã supranacional, mas que, no mais das vezes, reflete tão somente a resultante da vontade das principais hegemonias.

A raison d’État converte-se, assim, no único e genuíno motor interpretativo gerando, incontinenti, múltiplas compreensões e ações que envolvem guerras putativas ou ataques preventivos, estados de exceção ou decretos de emergência, atos secretos ou operações ilegais para assegurar a defesa nacional ou, ainda, afastamento de normas jurídicas em nome da ordem pública. 

A Realpolitik se impõe, deste modo, através de um sem número de violações de normas morais ou legais em nome da segurança ou sobrevivência. In fine, é isso que, hoje, move Benjamin Netanyahu e Vladimir Putin. Ambos argumentam, cada um à sua maneira, que cumprem com o abecedário da guerra justa. E isso malgrado os extensos efeitos colaterais que matam, à vista ou a prazo, populações civis.  Existe guerra justa?


Notas

(1) Cf. Gleditsch and Ward list of independent states: https://www.andybeger.com/states/reference/gwstates.html (Acesso em 17/06/2025).

(2) Cf.: https://ucdp.uu.se/downloads/ucdpprio/ucdp-prio-acd-251.pdf (Acesso em 16/06/2025).

(3) Nota Bene: seguindo as melhores práticas científicas, este artigo deixou dados originais e scripts computacionais disponíveis em um repositório aberto <https://osf.io/e8auq/>.

(4)  A identificação dos grupos armados no eixo Y não representa necessariamente uma díade exclusiva. Em diversos registros, o Side B pode incluir múltiplos grupos atuando conjuntamente no mesmo conflito (ex: “Fatah, Hamas, PIJ”), o que implica que os números apresentados podem se referir a coalizões ou agrupamentos de facções. Para mensurar especificamente quais são os grupos que mais se repetem seria necessário desagregar as informações da coluna e contar individualmente os casos. Todavia, por simplicidade, optamos por reproduzir o formato original de tabulação da informação, tal qual disponibilizado pelo Peace Research Institute Oslo – PRIO. Para mais informações, ver: <https://www.prio.org/data>.

(5) Entenda-se Rússia ou URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), em função do momento em que ocorre o conflito. 

(6) Siglas encontradas no Gráfico 4: IS – Islamic State; UPA – Ukrayins’ka Povstans’ka Armiya (Exército Insurreto Ucraniano); BDPS – Battalion for Dagestani Peace and Sharia; LSR – Russia Liberty Soldiers ; RDK – Russkiy Dobrovolcheskiy Korpus; LNPA – Latvijas Nacionālo Partizānu Apvienība; LTS(p)A – Lietuvos Tėvynės Sąjungos (partizanų) Armija; APF – Armeen Peastaabi Föderatsioon.

(7) A identificação dos grupos armados no eixo Y não representa necessariamente uma díade exclusiva. Em diversos registros, o Side B pode incluir múltiplos grupos atuando conjuntamente no mesmo conflito (ex: “LSR, RDK, Wagner”), o que implica que os números apresentados podem se referir a coalizões ou agrupamentos de facções. Para mensurar especificamente quais são os grupos que mais se repetem seria necessário desagregar as informações da coluna e contar individualmente os casos. Todavia, por simplicidade, optamos por reproduzir o formato original de tabulação da informação, tal qual disponibilizado pelo Peace Research Institute Oslo – PRIO. Para mais informações, ver: <https://www.prio.org/data>.



Marcelo de Almeida Medeiros é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP/UFPE) e Pesquisador PQ-1C do CNPq. Dalson Britto Figueiredo é professor associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP/UFPE) e Pesquisador PQ-C do CNPq.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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