27 abril 2023

Joaquim Levy: Quatro caminhos para o financiamento do combate à mudança climática

Levar as emissões líquidas de carbono da economia mundial a zero em menos de 30 anos é um desafio que irá exigir grandes recursos financeiros. Para economista, a questão climática passa por pensar sobre a expansão da oferta de energia limpa, a desativação das atuais usinas de carvão, as ações de adaptação aos efeitos do aquecimento global e a proteção das florestas

Levar as emissões líquidas de carbono da economia mundial a zero em menos de 30 anos é um desafio que irá exigir grandes recursos financeiros. Para economista, a questão climática passa por pensar sobre a expansão da oferta de energia limpa, a desativação das atuais usinas de carvão, as ações de adaptação aos efeitos do aquecimento global e a proteção das florestas

Painéis solares e turbinas eólicas estão entre as formas usadas para expandir a oferta de energia limpa (Foto: CC)

Por Joaquim Levy*

Enfrentar o desafio climático global irá exigir grandes recursos financeiros, pois é preciso levar as emissões líquidas de carbono da economia mundial a zero em menos de 30 anos.

É verdade que já houve outras transições energéticas, como quando o carvão foi substituído no transporte marítimo e terrestre entre 1930 e 1960.  Mas, a transição de hoje é mais ampla e complexa. Afinal, o carvão continua proeminente na geração elétrica até hoje. Além disso, inúmeras questões tecnológicas ainda inibem decisões de investimento, e os mecanismos de financiamento dos países em desenvolvimento estão sob grande pressão. 

É urgente, portanto, entender os principais aspectos do desafio climático, como eles afetam os países em desenvolvimento, e como a arquitetura financeira internacional pode ser ajustada para responder a esses desafios. Essa análise é oportuna especialmente quando a turbulência nos mercados financeiros não parece passageira e as instituições multilaterais de financiamento estão procurando novos rumos.  Como discutido a seguir, essas questões podem ser divididas em quatro eixos, cada um com características e necessidades de financiamento próprios.

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‘A substituição da energia fóssil para se chegar a emissões zero de CO² até 2050 exigirá uma ampliação acelerada das fontes de energia renovável e uma mobilização de capital correspondente’

A substituição da energia fóssil para se chegar a emissões zero de CO² até 2050 exigirá uma ampliação acelerada das fontes de energia renovável e uma mobilização de capital correspondente.  O volume de investimentos em energia em um cenário de zero carbono talvez não venha a ser tão maior do que em um cenário de energia fóssil, ao se olhar os próximos 30 anos como um todo. É o que sugere a Rede para tornar o sistema financeiro mais verde (NGFS), composta pelos principais bancos centrais do mundo.

Mas a demanda por capital deve ser bem maior no curto prazo, já que as energias solar e eólica exigem grande inversão de capital inicial, compensada a seguir por gastos operacionais menores do que aqueles de usinas dependentes de combustíveis fósseis. Além dos parques geradores, há que se financiar uma infraestrutura que lide com a intermitência da geração renovável. 

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Esse é um dos exemplos em que a incerteza tecnológica inibe investimentos, pois as opções de estocagem de eletricidade mais discutidas ainda são caras, enquanto a ampliação do uso das térmicas a gás para modular a oferta de eletricidade é controversa e arriscada.

O gás natural pode se tornar rapidamente obsoleto, a não ser que se encontrem tecnologias baratas para o sequestro de CO2 em grande escala, o que ainda é incerto.  A ampliação da energia nuclear de forma segura e barata também parece distante. Como alerta a Agência Internacional de Energia (IEA), perto da metade da transição energética depende de tecnologias que ainda não estão disponíveis no mercado. 

‘Os países ricos têm criado grandes subsídios para tentar superar os impasses financeiros e tecnológicos da transição energética’

Os países ricos têm criado grandes subsídios para tentar superar os impasses financeiros e tecnológicos da transição energética.  O Plano Verde, lançado pela União Europeia antes da pandemia de Covid 19 e reiterado desde então, dá inúmeros incentivos para a energia eólica no mar e o hidrogênio na indústria e talvez nos transportes. Mais recentemente, os Estados Unidos passaram a Lei para Baixar a Inflação (IRA), que estimula a transição energética, inclusive a energia eólica e solar, a produção de hidrogênio, e a captura de carbono. Há indicações de que a iniciativa já atraiu mais de US$ 200 bilhões em intenções de investimento, o que tem gerado preocupação na Europa, de ela deslocar capital privado demais para a América. Ambas as regiões têm ainda agido para garantir o lítio e outros minerais ligados a essa transição, especialmente para a mobilidade.

China e Índia também têm sido protagonistas na expansão da energia renovável.  A China tem respondido por perto de 40% do crescimento da capacidade instalada global de energia renovável, com mais de 1000GW de parques solares e eólicos instalados.  Em menor escala, a Índia já alcançou 100GW nessas energias renováveis, além de ter planos ambiciosos para produzir hidrogênio e construir fábricas de anodos.  Mas o desafio do clima vai além dessas ações quando se consideram os diversos aspectos do mundo em desenvolvimento.

Grande parte do desafio climático no mundo em desenvolvimento abrange quatro questões e suas necessidades de financiamento:

  • a expansão da oferta de energia limpa;
  • a desativação das atuais usinas de carvão;
  • ações de adaptação aos efeitos do aquecimento global; e
  • a proteção das florestas. 

Garantir energia nova limpa no mundo em desenvolvimento parece ser simples, mas envolve problemas estruturais. 

A parte simples deriva da energia renovável ser geralmente mais barata que a fóssil, mesmo em casos como a Indonésia. Nesse país rico em carvão nem toda ilha tem solo bastante para parques solares, sendo a transmissão da energia entre ilhas complexa, o que também limita a energia eólica.  Mas, mesmo nesse caso, os problemas para o financiamento da energia nova limpa são semelhantes aos do financiamento de qualquer projeto em um país em desenvolvimento: endereçar os riscos comercial e cambial. Como garantir que o investimento seja adequadamente remunerado pelo consumidor em países de renda modesta, sujeitos a choques macroeconômicos e distorções regulatórias, ainda mais quando há quem diga que o vento ou o sol são “de graça”?  

A segunda questão é talvez a mais urgente. O uso do carvão mineral emite 15 bilhões de toneladas de gás carbônico (15GtCO²) por ano, e dele vem a maior parte da eletricidade na Ásia. Assim, substituir o a geração elétrica a carvão por energia renovável reduziria em 5GtCO² as emissões da China, em 1.2GtCO² as da Índia, e em 0,3GtCO² da Indonésia e Vietnã combinadas, além de 0,2GtCO² na África do Sul.

Esses montantes equivalem a 15% das emissões totais de combustíveis fósseis no mundo e, mesmo sem contar a China, tirar 1.5GtCO² da atmosfera anualmente faria grande diferença para o aquecimento global.  Mas esses países são produtores de carvão, e o custo da transição não é só o de financiar os parques e as redes para substituir o carvão, mas também compensar a atual cadeia de produção, lidando com múltiplos e importantes impactos sociais. Assim, não se sabe quanto essa transição poderá custar. Mas, se custar US$60/tCO² evitado, de onde virão os US$90 bilhões necessários para financiá-la?

A questão da adaptação é a mais dramática, pois as regiões intertropicais vão sofrer grandemente com a mudança climáticas. Essas são as regiões mais carentes do planeta, incluindo áreas populosas da África, países como Bangladesh, e várias ilhas que podem ser engolidas pelo oceano.  A maior intensidade e frequência de certos eventos meteorológicos já é percebida, assim como seu impacto nas pessoas mais pobres. O esforço de adaptação envolve grandes obras, que geralmente devem ser públicas, porque é difícil cobrar diretamente por seus benefícios. Até onde os mercados aceitarão esses riscos soberanos e o que as instituições multilaterais podem fazer para proteger essas populações e respectivas economias? 

Finalmente, há a questão mais próxima do Brasil, que é a da preservação da floresta e o reflorestamento como técnicas eficientes para evitar a emissão e promover a captura de CO² nos próximos 15-25 anos.

O desmatamento corresponde a 1GtCO² de emissões anuais no Brasil, e centenas de milhões de CO² nas florestas na África e Indonésia. Eliminar o desmatamento pode, portanto, evitar 1.5Gt/ano de CO² na atmosfera, com impactos sociais e econômicos geralmente positivos. 

A contribuição brasileira para o tratado de Paris previa a criação de 12Mha de florestas, o que capturaria 60-200MtCO²/ano. O custo de proteger a floresta nativa e estimular novas florestas deve ser menor que US$60/tCO², o que ainda assim faria seu financiamento chegar a dezenas de bilhões de dólares para chegar na escala necessária.

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Financiamento

A arquitetura financeira para responder às questões acima, assim como o papel dos bancos multilaterais de desenvolvimentos (MDBs) nessas respostas, deve estar adaptada ao tipo e tamanho de cada um dos desafios descritos.  Essa arquitetura está hoje limitada pelas restrições orçamentárias dos principais acionistas dos MDBs, o que é apenas contornado pela entrada de outros emprestadores oficiais ou quase oficiais nessa seara, como a China.

Uma das poucas novidades recentes no financiamento internacional foi a ampliação dos direitos de saque do FMI (SDR) durante a pandemia, que colocou US$650 bilhões no sistema de Bretton Woods. Esses recursos compõem as reservas dos bancos centrais do sistema, que podem aplicá-los em instrumentos de baixo risco. 

Assim, eles podem ser usados pelos bancos centrais do G7 (ou G20) que os receberam para, por exemplo, ampliar suas compras de títulos do Banco Mundial (WB), pois esses títulos contam para as reservas internacionais daqueles bancos e terão ainda menor risco se forem emitidos em SDR. A implementação desse financiamento não é simples, mas pode representar US$50 bilhões ao ano em recursos públicos que além disso poderão ancorar um maior acesso do WB ao mercado sem a necessidade de um grande aumento de capital do Banco, permitindo a instituição emprestar até US$ 1 trilhão na próxima década.

Com relação à energia nova, a simples oferta de garantias lastreadas no capital dos MDBs terá alcance limitado, porque esse capital é pequeno em comparação ao risco comercial dos investimentos ao redor do mundo, especialmente em um período em que os prêmios de risco aumentaram. 

Será, portanto, indispensável convencer os países em desenvolvimento a melhorar seu ambiente de negócios, apoiando-os técnica e financeiramente.  Essa já é uma estratégia adotada por MDBs, mas tem que ser azeitada, com alinhamento de incentivos e evitando-se a ilusão de que o sistema de Bretton Woods poderá dar grandes garantias ao setor privado.

O financiamento da desativação das usinas a carvão e os programas sociais associados envolvem grandes somas de dinheiro, devendo contar com recursos públicos internacionais. Há um projeto pioneiro com a África do Sul, apoiado pelo Banco Mundial e países do G7 que é promissor, mas enfrenta os problemas decorrentes da crise no setor elétrico que o país está vivendo. Alguns dos países do G7 ampliaram essa abordagem criando a Parceria por uma Transição Justa —que vem negociando planos com a Indonésia, Vietnã e Índia. A parceria procura alavancar recursos privados (como os para financiar a energia nova) e canalizar recursos públicos para a readequação da força de trabalho e estímulo a novas atividades. Não se sabe quais os recursos orçamentários do G7 estão realmente disponíveis, mas a proposta dos EUA de alavancá-los com a compra de créditos de carbono pelo setor privado não foi bem recebida na COP 27. Essa é uma área, portanto, que por seu porte pode se beneficiar de empréstimos lastreados na conversão de SDRs pelos bancos centrais do G7+.

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É no financiamento das ações de adaptação que os MDBs podem provavelmente ter maior impacto usando seu capital e instrumentos tradicionais. Essas ações em geral envolvem projetos de construção civil, dependente de transferências do setor público. Prazos longos são indispensáveis para levar esses investimentos avante, enquanto a capacidade técnica dos MDBs pode ser crucial na seleção e supervisão dos projetos. Os MDBs também podem ajudar no financiamento da adaptação de processos de produção e comercialização de bens e serviços à mudança climática, especialmente no setor rural, que será cada vez mais vulnerável a essa mudança. Esses projetos em geral dão poucos dividendos de curto prazo, e será importante que seu financiamento não seja escanteado por outras demandas em tempos de crise financeira ou diversidade de pautas entre os sócios majoritários dos MDBs.

O financiamento global da proteção da floresta e do reflorestamento ainda é incipiente. Na Amazônia, ele tem sido objeto de tentativas de financiamento público por governos das economias avançadas, notadamente através do Fundo Amazônia e da iniciativa LEAF voltada a projetos abrangentes (ditos jurisdicionais). Esses recursos podem ser pouco para atender a Amazônia, onde a competição econômica com a floresta em pé é grande, apesar da baixa produtividade de muitas áreas desmatadas. Há, portanto, uma expectativa de virem recursos com a expansão do mercado mundial de créditos de carbono. O componente voluntário desse mercado depende da demanda por crédito vinda de empresas multinacionais.  O mercado regulado com participantes privados (artigo 6.4) continuará a ser discutido na COP 28, estando seu contorno ainda indefinido, assim como a contabilidade face à contribuição de cada país ao Acordo de Paris.

Os créditos de carbono baseados na natureza podem ser particularmente eficazes para lidar com as emissões ditas de escopo 3, isto é, aquelas decorrentes do uso de um produto pelo consumidor. Ao embutir o custo de um crédito de carbono no preço desse produto, está-se cobrando o CO² gerado por esse consumo, sem ônus excessivo ao consumidor e dando-lhe em troca também a proteção das muitas formas de vida na floresta.

O maior obstáculo ao crescimento desse mercado é a ênfase nas economias avançadas no subsídio a novas tecnologias para diminuir ou capturar as emissões dos transportes e processos industriais, excluindo-se a opção de compensar-se parte dessas emissões pelo sequestro do CO² na floresta.  A ênfase procura ser justificada pelo argumento de que novas tecnologias são a solução de longo prazo, o que seria desestimulado pela compensação, cujos resultados são, além disso, de difícil verificação. 

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O Brasil deve estar atento às restrições ao mercado voluntário de créditos de carbono baseados na natureza e sublinhar que o investimento na floresta, evita emissões enquanto as outras tecnologias não existem, e as captura já, e não daqui 15 anos. Além disso, ele traz outros benefícios, como de preservação da biodiversidade e a proteção a comunidades vulneráveis.

Também deve ser sublinhado que a compra de créditos de carbonos baseados na natureza não desobrigará as empresas de petróleo da sua eventual responsabilidade na venda de seus produtos: as emissões de petróleo ultrapassam 11GtCO²/ano, valor provavelmente dez vezes maior do que o volume alcançável por créditos de carbono baseados na natureza, mesmo incluindo biomas como os manguezais.

‘É urgente organizar a arquitetura financeira mundial para canalizar recursos para os quatro principais desafios do clima nos países em desenvolvimento’

Em resumo, é urgente organizar a arquitetura financeira mundial para canalizar recursos para os quatro principais desafios do clima nos países em desenvolvimento. Essa arquitetura será valiosa em um período em que o financiamento das ações no mundo em desenvolvimento enfrentará a concorrência de ações paralelas nas economias avançadas, em um ambiente de maior escassez de capital e juros mais altos.  

Nesse ambiente, os mercados estão mais exigentes quanto à relação risco-retorno, e a alta do preço do risco não poderá ser compensada apenas por garantias dos MDBs, mesmo que o apetite ao risco dessas instituições aumente. A capacidade financeira dos MDBs é bastante limitada e será indispensável um esforço para que os países em desenvolvimento melhorem as condições de negócio em suas jurisdições, mesmo isso não sendo fácil em situações de stress. A desativação precoce das usinas a carvão nos países emergentes terá um custo social grande e exigirá muitos recursos, que talvez fiquem além do que a atual Parceria da Transição Energética Justa possa prover com o auxílio do setor privado.

Financiamentos baseados em SDRs podem ajudar nesse processo, com pequeno risco inflacionário ou de governança. Isso facilitaria priorizar os recursos atuais dos MDBs para o financiamento da adaptação à mudança climática nos países tropicais, o que faz sentido financeiro e é um imperativo moral, com repercussões geopolíticas importantes.

Finalmente, no atual ambiente de acerbada concorrência por fundos de instituições multilaterais, um mercado (voluntário) mundial de créditos de carbono pode ser crucial para o acesso a recursos privados e o financiamento de uma expansão assertiva das florestas como um instrumento eficaz de redução de CO² na atmosfera nos próximos 15-30 anos. O Brasil pode liderar esse movimento, cabendo aos geradores desses créditos garantir a adicionalidade, integridade e permanência dos projetos florestais que lhes dão lastro, e trabalhar de maneira coordenada e rápida para a criação de um mercado global de carbono que permita monetizar a contribuição da floresta ao combate à mudança climática.


*Joaquim Levy é diretor de estratégia econômica e relações com mercados do Banco Safra. Foi ministro da Fazenda, presidiu o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e foi diretor geral e financeiro do Banco Mundial.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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