07 junho 2023

Turquia, uma potência mediadora entre a Rússia e a Ucrânia?

Guerra oferece uma alavanca para Ancara, que pode ampliar sua influência no Mar Negro e lembrar ao Ocidente que continua sendo um aliado útil neste conflito como potência regional mediadora, já que é o único país membro da Otan a dialogar com os dois envolvidos no conflito

Guerra oferece uma alavanca para Ancara, que pode ampliar sua influência no Mar Negro e lembrar ao Ocidente que continua sendo um aliado útil neste conflito como potência regional mediadora, já que é o único país membro da Otan a dialogar com os dois envolvidos no conflito

Por Nicolas Monceau e Bayram Balci

Nos últimos anos, a política externa conduzida pela Turquia – na Síria, na Líbia, em Nagorno-Karabakh ou no Mediterrâneo Oriental – tem sido muitas vezes percebida por seus parceiros ocidentais tradicionais (Estados Unidos e UE) como excessivamente intervencionista, até mesmo agressiva. Houve muitas tensões entre Ancara, de um lado, Washington e os europeus do outro.

Desde fevereiro de 2022, o conflito na Ucrânia embaralhou as cartas. Posicionando-se como uma mediadora entre Kiev e Moscou, Ancara tornou-se novamente um ator-chave no cenário internacional.

Como a crise econômica ou os terremotos de 6 de fevereiro, o ativismo diplomático turco certamente pesou nas eleições presidenciais e legislativas, realizadas em maio e poderiam até ter levado ao fim da era Recep Tayyip Erdogan e seu partido AKP, que começou em 2002.

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Ancara-Moscou: 20 anos de reaproximação

Enquanto durante a Guerra Fria a Turquia e a URSS foram adversários ideológicos, Ancara desenvolveu com a Rússia, ao longo dos últimos 20 anos, uma “parceria estratégica” baseada numa relação ambivalente: cooperação política, econômica e militar reforçada por um lado; rivalidades regionais de outro (na Síria, Líbia e Nagorno-Karabakh, os dois países apoiaram, e ainda apóiam, campos opostos).

O volume de comércio não para de crescer há 20 anos, e a Turquia é hoje altamente dependente de Moscou para suas necessidades energéticas (a Rússia é seu principal fornecedor de gás) e a empresa russa Rosatom está em processo de construção de uma usina nuclear. O turismo de russos, estimado em vários milhões de visitantes por ano, também representa uma fonte essencial de divisas para a Turquia.

No contexto da deterioração das relações entre a Rússia e os países europeus, estas trocas deverão sem dúvida ser reforçadas no futuro, facilitadas pela ausência de vistos para viajar entre os dois países e pela manutenção de ligações aéreas diretas entre a Turquia e a Rússia apesar das sanções europeias.

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Além disso, muitos empresários russos estão usando a Turquia para comprar produtos europeus contornando as sanções ocidentais, levando alguns a ver a Turquia como o “cavalo de Tróia” das sanções contra a Rússia.

Por fim, a aproximação estratégica entre os dois países resultou na implementação de cooperação militar, como evidenciado pela compra por Ancara em 2017 de sistemas de defesa aérea S-400 de Moscou, o que gerou protestos dos aliados da Turquia na Otan e a adoção de sanções por Estados Unidos: em julho de 2019, o governo Trump excluiu a participação da Turquia no programa de construção do caça americano F-35. Em dezembro de 2020, os Estados Unidos proibiram quaisquer novas licenças de exportação de armas da agência do governo turco responsável pela compra de armas. Em última análise, essas sanções dos EUA podem levar a Turquia a se aproximar de outros parceiros além de seus aliados ocidentais.

Ancara-Kiev: uma intensa parceria militar

Paralelamente a esta crescente proximidade com a Rússia, a Turquia desenvolveu desde o fim da URSS importantes relações económicas com a Ucrânia, sendo os dois países banhados pelo Mar Negro.

Ancara importa cereais e oleaginosas da Ucrânia, cujos turistas afluem às costas turcas ao longo do ano (2 milhões em 2021, na terceira posição depois da Rússia e da Alemanha). O turismo da Rússia e da Ucrânia, que representou um quarto do total em 2021, parou repentinamente a partir de fevereiro de 2022, apesar dos esforços das autoridades turcas para reanimá-lo. Além disso, a Turquia tornou-se um país de acolhimento para muitos refugiados ucranianos que fugiram da guerra, mas também para muitos russos que fogem da repressão no seu país, da mobilização ou dos efeitos das sanções ocidentais.

Acima de tudo, desde o enfraquecimento de seus laços com seus parceiros ocidentais, Ancara voltou-se para Kiev para desenvolver uma cooperação reforçada na indústria de defesa e exportar sua produção de drones. Em maio de 2016, um primeiro acordo oficial de armas foi assinado para o fornecimento de drones Bayraktar turcos para a Ucrânia.

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Em agosto de 2020, um acordo bilateral previu o aumento da cooperação entre as indústrias de defesa turca e ucraniana, com o estabelecimento de projetos conjuntos na produção de navios de guerra, drones e troca de know-how e equipamentos. Em 2021 marinheiros militares ucranianos foram treinados pela Turquia. Foi assinado um acordo para a produção conjunta de drones em novembro de 2021 e a abertura de uma fábrica que produzirá o drone turco TB2 Bayraktar SİHA na Ucrânia está prevista para o final de 2023.

Drones turcos foram usados ​​pela Ucrânia contra separatistas pró-russos em Donbass pela primeira vez em outubro de 2021. Desde o início da agressão russa em 2022, eles foram empregados várias vezes contra colunas de blindados russas na Ucrânia e também teriam desempenhado um papel no ataque ao cruzador russo Moskva em abril de 2022, despertando a irritação de Vladimir Putin.

Durante uma visita do presidente Erdogan a Kiev no início de fevereiro de 2022, os dois países assinaram um acordo de livre comércio que promove o aprofundamento da cooperação militar e tecnológica bilateral por meio da multiplicação de projetos conjuntos de defesa, incluindo em particular transferências de tecnologia. Durante o primeiro trimestre de 2022, as exportações de armas turcas para a Ucrânia foram multiplicadas por 30. A Turquia também se beneficia, para o desenvolvimento de seus drones, do nível tecnológico da Ucrânia em termos de motorização aérea.

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Uma postura de mediação

A relação de dependência da Turquia em relação à Rússia, evidenciada pelo forte desequilíbrio nas trocas económicas e comerciais entre os dois países, aliada às suas relações económicas e militares privilegiadas com a Ucrânia, levaram Ancara a não tomar totalmente partido no conflito, e a tentar desempenhar um papel mediador.

Por um lado, a Turquia sempre expressou sua solidariedade com a Ucrânia em seu conflito com a Rússia. Ela condenou a anexação da Crimeia em 2014 e nunca reconheceu as autoproclamadas repúblicas de Donbass. Também denunciou a agressão russa contra a Ucrânia, pediu a Moscou que retirasse suas tropas e fechou o estreito do Mar Negro à passagem de navios de guerra russos. Mas, por outro lado, não aplica sanções europeias contra Moscou. É neste contexto que ofereceu os seus bons ofícios para a resolução do conflito.

Desde fevereiro de 2022, três reuniões foram organizadas entre diplomatas russos e ucranianos em território turco. Ao mesmo tempo, Recep Tayyip Erdogan é um dos poucos líderes mundiais que podem conversar com Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, ambos os quais ele encontrou pessoalmente em 2022.

A Turquia também desempenhou um papel decisivo ao assinar em julho de 2022 o acordo de grãos ucraniano-russo sob a égide da ONU, que permitiu que cerca de 25 milhões de toneladas de cereais ucranianos fossem exportados para fora do país. no Oriente Médio e na África para evitar uma crise alimentar global. Em março de 2023, a Turquia e a ONU anunciaram a extensão do acordo internacional sobre a exportação de grãos ucranianos.

Alguns observadores interpretaram essa postura como uma oportunidade para a Turquia revitalizar sua política externa, que enfrentou múltiplos erros e fracassos nos últimos anos na região.

Quais as consequências para as relações com os aliados da Turquia?

Por conta dos fatores mencionados acima, as relações entre Ancara e o Ocidente se aqueceram recentemente, com os ocidentais apreciando o interesse da postura intermediária entre Moscou e Kiev adotada pela Turquia e, claro, sua posição estratégica, que a torna a guardiã dos estreitos do Mar Negro. Aos olhos dos parceiros ocidentais, a Turquia está recuperando um valor estratégico que parecia ter perdido.

Além disso, diante da ameaça cada vez mais significativa representada pela Rússia, a Finlândia e a Suécia, tradicionalmente neutras, decidiram aderir à Otan. A Turquia, membro da aliança, é essencial no processo de adesão dos dois novos países candidatos devido à unanimidade exigida dos países membros da organização.

Enquanto a Finlândia foi admitida em março de 2023, a Suécia está vendo sua adesão bloqueada pela Turquia (assim como a Hungria). As autoridades turcas acusam a Suécia de abrigar militantes curdos que consideram terroristas e pedem sua extradição. Vários incidentes diplomáticos também deterioraram as relações entre os dois países, apesar dos numerosos contatos no mais alto nível e de um memorando de entendimento levantando o bloqueio de Ancara à candidatura de Estocolmo (e Helsinque) assinado em junho de 2022.

E depois das eleições?

O conflito russo-ucraniano oferece assim à Turquia uma alavanca que pode usar tanto em relação à Rússia para enfraquecer sua influência no Mar Negro por meio de uma cooperação reforçada com a Ucrânia quanto em relação aos seus parceiros ocidentais, a fim de lembrá-los de que continua sendo um aliado útil neste conflito como potência regional mediadora, já que é o único país membro da Otan a dialogar com os dois beligerantes.

A incógnita continua sendo a evolução da política externa turca após as eleições de maio de 2023. Se a oposição vencesse, seria possível uma mudança no discurso das autoridades turcas. A “mesa dos seis”, que reúne seis partidos da oposição em torno do seu candidato único, Kemal Kiliçdaroglu, havia prometido o regresso à diplomacia institucionalizada e a normalização das relações com a Otan. Na prática, por outro lado, parece provável uma certa continuidade das orientações da política externa de Ancara em várias questões (questão cipriota, relações com a Rússia), devido à posição geopolítica da Turquia e aos seus laços de dependência com os seus vizinhos.


*Nicolas Monceau é mestre de conferências em ciência política na Université de Bordeaux

Bayram Balci é pesquisador no CERI-Sciences Po e ex-diretor do Institut français d’études anatoliennes-Georges Dumézil de Istanbul, da Sciences Po


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em francês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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