Labirintos da Segurança Pública
O Brasil prende muito, gasta muito e continua inseguro. Por quê?

O paradoxo brasileiro
O Brasil vive um paradoxo no campo da segurança pública: é um dos países que mais investem recursos no setor, possui uma das maiores populações carcerárias do mundo – dados de 2025 indicam que já nos encontramos com mais de 900 mil detentos (1) – e, no entanto, a sensação de insegurança e o poder das organizações criminosas parecem apenas aumentar.
Esse paradoxo não decorre de falta de esforço, mas de um descompasso estrutural. Instrumentos jurídicos concebidos para lidar com crimes convencionais são aplicados a sistemas criminais adaptativos, enquanto o discurso político insiste em soluções simplistas que não se sustentam na prática.
‘A experiência internacional mostra que não estamos sozinhos’
A experiência internacional mostra que não estamos sozinhos. Em diferentes países, com diferentes níveis de investimento, encarceramento e aparato policial, os resultados também permanecem frustrantes. Temos um desafio de segurança pública que não é apenas nacional, mas civilizatório.
Por que o direito penal não basta
O sistema de Justiça criminal exige um fato típico e uma apuração incontroversa para que a engrenagem punitiva se mova. Esse modelo é eficaz para delitos isolados, como um homicídio ou um furto, mas revela suas limitações diante do crime organizado.
Quando a prova se consolida, o dano já ocorreu; quando o processo termina, a organização criminosa já se adaptou. O resultado é a impunidade seletiva e a corrosiva sensação de ineficácia.
Do mesmo modo, o encarceramento sem um planejamento adequado de médio-longo prazo escancarou o problema das soluções penais imediatistas. Afinal, foi nos presídios que organizações como o PCC ganharam corpo e se expandiram.
‘Esperar que o sistema penal resolva externalidades urbanas, mercados ilícitos globais ou disputas territoriais e pelo poder é condenar-se a uma prevenção tardia e a processos intermináveis’
Esperar que o sistema penal resolva externalidades urbanas, mercados ilícitos globais ou disputas territoriais e pelo poder é condenar-se a uma prevenção tardia e a processos intermináveis. Segurança pública não é apenas técnica jurídica, é um campo imprevisível, caracterizado pela emergência de padrões difíceis de identificar.
Um exemplo vem do Peru. A erradicação da coca reduziu a área plantada, mas os produtores responderam aumentando a produtividade das lavouras. A oferta não apenas se manteve, como em certos períodos cresceu. O sistema se adapta, e muitas vezes com rapidez surpreendente.
O crime organizado aprende rápido
Essa adaptabilidade é a essência do crime organizado. Ele opera como um sistema com quatro dimensões interligadas: motivação simbólica, estratégia econômica, ambiente social facilitador e capacidade de inovação. Enfrentá-lo apenas pelo viés penal é como tentar conter água com as mãos.
Ademais, a transnacionalidade ampliou ainda mais esse desafio. Organizações maiores absorvem grupos locais, incorporando rotas e ativos logísticos, criando cadeias ilícitas redundantes. A repressão desloca o problema no mapa, mas raramente o reduz.
O México oferece um exemplo emblemático. Após a prisão de Miguel Ángel Félix Gallardo e de outros líderes do Cartel de Guadalajara no fim dos anos 1980, não houve desarticulação. O cartel fragmentou-se em facções como Sinaloa, Tijuana e Juárez. Nesse processo, Joaquín Archivaldo Guzmán Loera, o El Chapo, assumiu o controle do Cartel de Sinaloa, consolidando seu poder desde os anos 1990 até sua prisão definitiva em 2016. O resultado foi uma guerra prolongada entre facções, com níveis extremos de violência e expansão internacional do narcotráfico.
‘Quando olhamos para o Brasil, a estratégia de se enviar líderes de organizações criminosas para presídios em outros estados, para desarticular sua cadeia de comando, revelou-se igualmente ineficaz’
Do mesmo modo, quando olhamos para o Brasil, a estratégia de se enviar líderes de organizações criminosas para presídios em outros estados, para desarticular sua cadeia de comando, revelou-se igualmente ineficaz. Na verdade, em um marcante exemplo de adaptabilidade, organizações criminosas utilizaram os novos contatos para ampliar o seu número de adeptos para além das fronteiras dos seus estados de origem.
Inteligência: discurso ou prática?
Nesse cenário, tornou-se comum ouvir que é preciso “investir em inteligência”. O termo, no entanto, virou um mantra vazio. Mas de que inteligência se fala? Investigativa, estratégica ou econômica?
Essa indefinição fragiliza o esforço. Fala-se em inteligência como se fosse uma panaceia, sem definir o modelo institucional, os parâmetros de governança ou as garantias jurídicas que assegurem tanto as operações quanto a proteção dos próprios operadores.
Carreiras de Estado dedicadas à inteligência ainda recebem poucos investimentos e muitas vezes sequer têm acesso aos cargos mais altos de direção em seus próprios órgãos. Esse detalhe é revelador: transmite a ideia de que outros saberiam melhor comandar a atividade do que aqueles que a exercem profissionalmente, como meio de vida.
‘Investir em inteligência não é acumular dados nem interceptar comunicações. É transformar informação em conhecimento útil, com métodos próprios, protocolos de qualidade, auditoria e irrestrito respeito aos limites democráticos’
Investir em inteligência não é acumular dados nem interceptar comunicações. É transformar informação em conhecimento útil, com métodos próprios, protocolos de qualidade, auditoria e irrestrito respeito aos limites democráticos. E isso implica não só a produção do conhecimento em si, mas a necessidade de aprimorar o sistema institucional para que, de forma azeitada, faça com que o conhecimento apropriado atinja os tomadores de decisão que melhor possam atacar os desafios da segurança pública.
Quando quantidade não é qualidade
A distância entre discurso e prática se evidencia em exemplos extremos. El Salvador, com mais de 1.600 presos por 100 mil habitantes, tornou-se o país mais encarcerador do mundo. A queda da violência veio acompanhada de denúncias de abusos aos direitos humanos e da institucionalização da exceção.
Geograficamente não muito distante, os Estados Unidos gastam centenas de bilhões de dólares anuais em segurança e justiça criminal, mas convivem com altos índices de criminalidade. A despeito do aparato de segurança sem paralelo no mundo, os índices de criminalidade violenta são persistentemente altos para um país desenvolvido.
‘Nem o direito penal sozinho, nem a militarização, nem apenas ações sociais são suficientes’
A lição é clara: quantidade não substitui qualidade estratégica. Nem o direito penal sozinho, nem a militarização, nem apenas ações sociais são suficientes. É preciso uma abordagem multidimensional, capaz de integrar dimensões jurídicas, econômicas, institucionais e comunitárias.
O desafio coletivo
Nenhum indivíduo ou instituição, isoladamente, tem o saber necessário para enfrentar o crime organizado. É indispensável construir uma inteligência coletiva que envolva Estado, academia, setor privado e a sociedade.
O problema é que, em um ambiente polarizado, rivais tornam-se inimigos e inviabilizam pactos mínimos de cooperação. Sem superar essa barreira, qualquer estratégia será fragmentada e episódica.
‘O caminho não é procurar por uma “bala de prata”, mas reconhecer que estamos em um labirinto complexo’
Não há país que tenha resolvido a segurança pública. Mesmo onde saúde e educação se tornaram políticas públicas estáveis, o crime persiste. O caminho não é procurar por uma “bala de prata”, mas reconhecer que estamos em um labirinto complexo.
O desafio não é prender mais, mas entender melhor: quem prender, em que mercados intervir, quais comunidades fortalecer. Só assim será possível agir com precisão cirúrgica e paciência estratégica, construindo resiliência institucional e social para além do discurso inflamado.
Notas
(1)Dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais
Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e consultor legislativo da Câmara dos Deputados da área de segurança pública, doutor em Ciência Política e estágio pós-doutorado no Instituto de Altos Estudos de Genebra. Sergio Senna Pires é consultor legislativo da Câmara dos Deputados da área de segurança pública, doutor em Psicologia e pesquisador de políticas criminais e segurança pública.
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