15 junho 2022

Liderando do meio? O que as estatísticas da presidência de organizações internacionais revelam sobre a capacidade de influência das potências médias

Apesar do acirramento da divisão internacional em blocos e do domínio da política global por grandes potências, análise sobre o protagonismo de países medianos, como o Brasil, revela que momentos de polarização planetária também viabilizam o exercício de liderança para potências de segunda ordem

Apesar do acirramento da divisão internacional em blocos e do domínio da política global por grandes potências, análise sobre o protagonismo de países medianos, como o Brasil, revela que momentos de polarização planetária também viabilizam o exercício de liderança para potências de segunda ordem

Conferência da Organização para Proibição de Armas Químicas, uma das OIs que foram presididas pelo Brasil durante o período analisado no estudo (Divulgação)

Por Felipe Lira Paiva e Rafael Mesquita*

Da guerra comercial entre EUA e China à guerra de fato na fronteira entre Rússia e Europa, a cena internacional dos últimos anos parece dominada pelo great power politics. Diferente da década anterior, em que países emergentes e intermediários esboçavam um papel crescente na governança global, o contexto presente sinaliza um retorno em cena das grandes potências. Nesse cenário, o espaço de protagonismo para países medianos, como o Brasil, seria presumivelmente menor. Contudo, uma inspeção detida dos dados revela que momentos de polarização planetária também viabilizam o exercício de liderança para potências de segunda ordem.

No artigo Liderando do meio? Dimensionando a liderança das potências intermediárias nas organizações internacionais (1975-2017), publicado na Carta Internacional, nós acompanhamos a assertividade de potências medianas através de um indicador específico: sua presidência de organizações internacionais (OIs).  OIs são arenas nas quais os países conseguem multiplicar sua influência diplomática. Isso as torna atrativas para potências mais fracas, também por permitirem maior previsibilidade na ordem internacional, reduzir a margem de atuação das grandes potências, criar coalizões para defesa de interesses comuns e publicização de demandas. Estar na liderança de uma OI evidencia, portanto, um maior protagonismo de um país — ou um grupo de países — no sistema internacional.       

Após o final da Guerra Fria, houve diferentes prognósticos sobre a atuação dos intermediários. Para alguns teóricos do middlepowermanship como Andrew Cooper, seria oportunidade para protagonismo, motivado por um possível vácuo de liderança das grandes potências, pelo desprestígio do hard power e pela complexificação da agenda internacional -a qual demandava a expertise e a diplomacia de nicho dos intermediários. Para outros, como Charles David, Stéphane Roussell e John Ikenberry, unipolaridade consolidaria  a  primazia dos EUA e das grandes potências em lugar dos medianos. Já sem oponentes, Washington poderia moldar a nova ordem sem muita adversidade, quer pelo enorme gap de poder, quer pelo caráter democrático e guiado por normas de sua agenda.

Diante dessa ambiguidade, nós dimensionamos o número de OIs lideradas por cada país e por cada grupo de potências entre 1975 e 2017, conforme catalogados no IO BIO Project. Para classificar a qual grupo pertence cada Estado, utilizamos um índice de poder mundial proposto por Daniel Ruvalcaba para definir se o país seria uma potência menor, intermediária ou mundial. Por se tratar de um índice anual, alguns países se moveram entre categorias — como a China, que ascende de uma potência intermediária para mundial em 2010. O detalhamento do índice pode ser encontrado no artigo original.    

Contabilizando quantas organizações-ano cada país liderou, foi possível montar um ranking dos Estados que mais colecionaram postos de liderança. Dentre as dez primeiras posições, os EUA encabeçam a lista (221 organizações-ano, de um total de 1.375), distantes em 81 organizações-ano da França (140). Combinados, EUA e França lideraram tantas organizações-ano quanto as oito potências seguintes do ranking somadas: Japão (60), Suécia (58), Egito (45), Brasil (44), Nigéria (34), Austrália e Índia (31), Senegal (30) e Reino Unido (29).

A forte concentração franco-americana também desponta quando consideramos que, na maior parte do tempo, as potências mundiais não capitanearam uma organização por vez, mas acumularam diversas presidências por ano. No ápice (1995-1996), os EUA chegaram a comandar nove organizações ao mesmo tempo. Já a França emplacou cinco e seis OIs concomitantemente (2005-2012). Além desses dois países, apenas a China liderou quatro OIs num mesmo ano (2015-2016), somente após se tornar uma potência mundial de acordo com nossa segmentação. Essa distribuição é representada pelo gráfico de árvore abaixo, em que a área de cada retângulo indica o percentual de organizações-ano que cada país liderou, bem como a classificação de cada país entre os três grupos de potência.

Distribuição de OIs lideradas por cada grupo e cada país

Fonte: Paiva e Mesquita (2022). Legenda: potências mundiais em vermelho; intermediárias, verde; menores, amarelo.

Quando analisamos os resultados a partir do agrupamento de potências, na figura seguinte, observamos uma alternância entre as potências mundiais e intermediárias como grupo com mais OIs lideradas. Na primeira década da série (1975-1984), não houve grande distância entre os grupos, mas, como saldo final, os intermediários estiveram à frente de mais OIs em oito dos dez anos. A partir de 1985, nota-se um aumento paulatino dos intermediários, cujo ápice é em 1989 (13 OIs-ano), seguido por uma série de vales e picos até o ano de 1999. Nesse mesmo período, as potências mundiais aumentaram seu número de OIs-ano, atingindo 15 OIs em 1997.

A partir do novo milênio, a ascensão dos intermediários acentua-se, enquanto as potências mundiais mantêm uma estabilidade em 12 OIs-ano entre 2002-2009. A tendência dos anos recentes mostrou um crescimento das mundiais e um decrescimento dos intermediários, mas, entre 2016 e 2017, esse movimento parece inverter-se. Ao longo de toda a série, as potências menores nunca detiveram o maior destaque, alcançando a segunda posição apenas em 1984.

‘As últimas décadas da bipolaridade deram primazia aos intermediários, mas o imediato pós-Guerra Fria promoveu acelerada ascensão das potências mundiais’

Com esses dados, pode-se afirmar que as últimas décadas da bipolaridade deram primazia aos intermediários, mas o imediato pós-Guerra Fria promoveu acelerada ascensão das potências mundiais — puxadas, sobretudo, pelos EUA, Alemanha, Japão e Reino Unido. Entre 2001 e 2008, há estabilidade dentre as potências globais e ascensão das intermediárias. Em 2010, estas somam 16 OIs lideradas — valor não alcançado pelos dois outros grupos. Quando observamos a distribuição de OIs-ano da classe, vemos o período posterior à crise financeira de 2008 como o de maior crescimento, o que confirma a noção da literatura de que este foi um ponto de inflexão importante. 

Número de OIs por classificação (1975-2017)

Fonte: Paiva e Mesquita (2022). Legenda: representamos com uma linha vertical três momentos de inflexão que a literatura destaca: o final da Guerra Fria (1991), os atentados de 11 de setembro (2001) e a crise financeira de 2008.

O crescimento da liderança dos intermediários após a crise de 2008 abriga também uma dinâmica interna digna de nota: enquanto os middle powers tradicionais diminuíram o número de OIs lideradas, as potências regionais aumentaram as suas, tendo, inclusive, ultrapassado as primeiras. Para examinar essa alternância, repartimos a categoria de acordo com o que a literatura classifica de potências médias tradicionais e regionais. Assim, no primeiro grupo, consideramos Austrália, Bélgica, Canadá, Coreia do Sul, Dinamarca, Holanda, Noruega e Suécia. No segundo, consideramos o México, a Turquia e os BRICS — a China até 2010, quando se torna uma potência mundial, segundo a classificação utilizada. O resultado pode ser visto na figura abaixo e revela que ainda em 2006 via-se uma guinada maior das potências regionais, em 2010 elas ultrapassam os middle powers tradicionais e chegam, dois anos depois, à inédita marca de cinco OIs-ano — mesmo com um país já removido do grupo (China). Em contrapartida, os tradicionais desceram em número de OIs lideradas — com a subida recente correspondendo principalmente à Coreia do Sul, que liderou entre duas e três OIs nos últimos três anos

Liderança de intermediários tradicionais e regionais (1975-2017)

Fonte: Paiva e Mesquita (2022)

A arrancada dos BRICS, a partir de 2006, é representada em detalhe no gráfico abaixo e revela mais informações sobre a situação brasileira, em especial.

Liderança dos BRICS (1975-2017)

Fonte: elaborado pelos autores, com base nos dados de Paiva e Mesquita (2022).

‘O Brasil foi o sexto país do ranking global que mais liderou organizações internacionais, e o segundo se considerarmos apenas as potências intermediárias, ficando atrás somente da Suécia’

O Brasil foi o sexto país do ranking global que mais liderou organizações internacionais, e o segundo se considerarmos apenas as potências intermediárias, ficando atrás somente da Suécia. No ranking de mais OIs chefiadas em um mesmo ano, o Brasil ocupa a primeira posição com três lideranças simultâneas durante seis anos (1997-2002), seguido pela Dinamarca (três lideranças entre 1980 e 1983) e Coreia do Sul (três OIs em 2016). Nos primeiros quatro anos, o Brasil esteve à frente da UNCTAD (Rubens Ricupero), da Organização para Proibição de Armas Químicas (José Maurício Bustani), da Organização da Aviação Civil Internacional (Renato Cláudio Costa Pereira) e, entre 2002 e 2003, a OPAQ deixa de ser contabilizada, enquanto o Alto Comissariado da Nações Unidas para os Direitos Humanos é registrado sob chefia de Sérgio Vieira de Melo. As OIs lideradas pelo Brasil e seus respectivos períodos podem ser vistos no gráfico abaixo.

Lideranças do Brasil (1975-2017)

Fonte: elaborado pelos autores, com base nos dados de Paiva e Mesquita (2022)

Em resumo, dentre os achados que exploramos em mais detalhe no artigo, pode-se destacar a constatação que o período bipolar ofereceu oportunidades de protagonismo para países intermediários. Diferentes mecanismos podem explicar essa abertura. Em uma chave mais positiva, pode ser fruto de demandas por mediação construtiva, que surgiam diante da rivalidade entre os grandes blocos. Em contraste, pode ser um fenômeno residual devido ao abandono das grandes potências de arenas globais paralisadas, deixando-as abertas à liderança dos intermediários e pequenos. Ambas as dinâmicas podem estar em marcha no sistema atual e, por um ou outro caminho, é possível que potências intermediárias se vejam mais representadas no alto escalão da governança global nos próximos anos.


* Felipe Lira Paiva é mestrando e bacharel em ciência política pela UFPE, tecnólogo em comércio exterior pela Universidade Estácio e membro do Grupo de Pesquisa de Instituições, Políticas e Governo. Sua área de interesse é centrada em instituições.

Rafael Mesquita é professor de Relações Internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do Núcleo de Estudos de Política Comparada e Relações Internacionais (NEPI). Sua pesquisa envolve organizações internacionais e potências emergentes, publicada em periódicos como International Studies Quarterly e Revista Brasileira de Política Internacional.


Referências

Paiva, Felipe Lira; Mesquita, Rafael (2022). Liderando do meio? Dimensionando a liderança das potências intermediárias nas organizações internacionais (1975-2017). Carta Internacional, 17(1), e1223. https://doi.org/10.21530/ci.v17n1.2022.1223

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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