12 julho 2023

Luiza Canellas e Alexandre Igari: Comércio internacional e meio ambiente – da conferência à síndrome de Estocolmo

Ao longo de sua existência, o sistema GATT/OMC experimentou uma gradual transição de um posicionamento puramente liberalizante em direção a um arcabouço institucional mais permeável às questões socioambientais. Isso gerou esperança de articulação com as relações comerciais internacionais em direção aos objetivos de justiça social e conservação ambiental

Ao longo de sua existência, o sistema GATT/OMC experimentou uma gradual transição de um posicionamento puramente liberalizante em direção a um arcabouço institucional mais permeável às questões socioambientais. Isso gerou esperança de articulação com as relações comerciais internacionais em direção aos objetivos de justiça social e conservação ambiental

Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada no ano de 1972 em Estocolmo, na Suécia (Foto: CC)

Por Luiza Canellas e Alexandre Igari*

A Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano de 1972, que ficou conhecida simplesmente como Conferência de Estocolmo, cidade que a sediou, reuniu 113 países em torno da discussão dos limites ambientais do planeta frente à crescente extração de recursos e à declinante capacidade de absorção dos resíduos produzidos pela sociedade industrial de consumo em massa. A discussão fundamentava-se nos resultados preocupantes apresentados no relatório Os Limites para o Crescimento (The Limits to Growth), publicado como livro naquele mesmo ano de 1972.  

A Conferência de Estocolmo ficou marcada pelo lançamento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) que passaria a ser, formalmente, a principal instância do sistema internacional para lidar com as crises ambientais globais. Apesar da relevância dos temas sob sua alçada, o PNUMA nunca contou com instrumentos de solução de disputas e controvérsias capazes de viabilizar a necessária coordenação internacional frente à magnitude e à complexidade dos desafios socioambientais. Mais remota ainda é a concretização da latente demanda por uma Organização Mundial do Meio Ambiente no âmbito da Nações Unidas.

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Além disso, a Conferência cristalizou o paradigma de que a melhoria das condições de vida nos países mais pobres demandaria, necessariamente, uma degradação ambiental semelhante à que foi provocada pelos países mais ricos durante sua trajetória histórica de crescimento econômico. Este paradigma, que coloca a redução da pobreza e a conservação ambiental em lados opostos e mutuamente excludentes, refletiu-se na contundente oposição dos países pobres e em desenvolvimento, inclusive o Brasil, às propostas de conservação ambiental discutidas em Estocolmo.

‘A globalização do comércio internacional é entendida como um processo que potencializa a eficiência econômica da produção industrial, mas que pode ser bastante deletério quanto às desigualdades sociais e à degradação ambiental’

Por outro lado, a expansão do livre comércio internacional após a Segunda Guerra Mundial potencializou o alcance e a escala da produção industrial e do consumo em massa, catalisando assim os processos de crescimento econômico, de exploração dos recursos naturais globais, de geração de poluentes e de concentração de riqueza nos países industrializados. A globalização do comércio internacional é entendida, por boa parte da comunidade acadêmica, como um processo que potencializa a eficiência econômica da produção industrial, mas que pode ser bastante deletério quanto às desigualdades sociais e à degradação ambiental.

Em 1947, a comunidade internacional instituiu o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), sob as premissas da teoria ricardiana de comércio internacional, que, simplificadamente, assume que o livre comércio entre os países que optam pela especialização na produção de bens em que detêm maior eficiência relativa resulta em crescimento econômico ótimo globalmente. Apesar de não contar com uma estrutura organizacional concreta, o GATT/1947 atuou como uma instituição (no sentido de norma social) de facto, sendo o principal instrumento de regulação do comércio global e de resolução de litígios comerciais, através de seu inovador mecanismo de solução de controvérsias. Em 1995, o GATT deu origem à Organização Mundial do Comércio (OMC), que ampliou sua centralidade na mediação, deliberação e resolução de controvérsias no comércio internacional.

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Paradoxalmente aos efeitos socioambientais adversos atribuídos ao comércio internacional, as controvérsias ambientais passaram a ser cada vez mais recorrentes no âmbito do GATT, e posteriormente da OMC, que desenvolveram e aprimoraram instituições (normas e regras) para sua resolução.

‘Mesmo partindo de uma perspectiva utilitarista clássica dos recursos naturais, a construção do sistema multilateral de comércio abordou a temática ambiental’

Mesmo partindo de uma perspectiva utilitarista clássica dos recursos naturais, a construção do sistema multilateral de comércio abordou a temática ambiental com o artigo XX do GATT (ainda vigente sob a OMC) que dispõe sobre as exceções gerais – hipóteses em que se admite a flexibilização da aplicação de certos princípios fundamentais do livre comércio. Essas exceções levantam a possibilidade de que os membros tomem medidas “necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais” e “relativas à conservação dos recursos naturais esgotáveis”.

O artigo XX acabou servindo de sustentação para medidas de proteção socioambiental de países membros, já que abre espaço para que condicionantes socioambientais não sejam consideradas barreiras não-tarifárias ao comércio.

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Em um primeiro momento de questionamentos em torno de restrições comerciais fundamentadas em razões socioambientais, o entendimento dominante no sistema multilateral de comércio era o de que essas medidas não passavam de mero protecionismo disfarçado. Deste modo, ainda na década de 1980, as primeiras disputas envolvendo tais medidas foram derrubadas por decisões dos painéis de solução de controvérsias.

No entanto, em 1991, o emblemático caso “atum-golfinho”, entre México e Estados Unidos, foi fundamental para a posterior mudança de entendimento do papel das questões ambientais no sistema multilateral de comércio. A justificativa estadunidense de restrição às importações de atum capturado sem técnicas de proteção aos golfinhos era de cunho ambiental e baseava-se em uma legislação doméstica. Apesar do pleito embasado no artigo XX do GATT, a deliberação do painel foi desfavorável à posição estadunidense. A decisão de que uma lei ambiental doméstica era incompatível com as obrigações do país junto ao GATT causou grande insatisfação pública e aumentou a pressão por mudanças nas regras de comércio.

‘A partir de 1995 a OMC deu continuidade ao projeto “gattiano” de crescente liberalização do comércio global’

A partir de 1995 a OMC deu continuidade ao projeto “gattiano” de crescente liberalização do comércio global. O mecanismo de solução de controvérsias foi revigorado com a criação de um órgão de apelação, o que permitiu uma quase judicialização do processo de resolução de controvérsias, viabilizando a mudança de entendimentos sobre questões socioambientais dentro da organização.

O preâmbulo do acordo constitutivo da OMC reconheceu entre os objetivos da organização o desenvolvimento sustentável e a proteção e preservação ambiental. Há disposições acerca de questões ambientais em todos os seus acordos e a criação do Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente finalmente as institucionalizou na estrutura formal da organização. Outras disputas envolvendo medidas ambientais restritivas ao comércio possibilitaram avanços rumo a uma jurisprudência de comércio menos hostil ao meio ambiente. Ademais, a maior atenção dada à proteção ambiental na OMC se refletiu na inserção do tema na agenda da Rodada Doha, iniciada em 2001.

‘A Convenção de Estocolmo acabou por conceber o PNUMA como uma espécie de “leão sem dentes” com perspectivas de em algum momento ganhar potência e tração internacional como uma Organização Mundial do Meio Ambiente’

Percebe-se, portanto, que, ao longo de sua existência, o sistema GATT/OMC experimentou uma gradual transição de um posicionamento puramente liberalizante em direção a um arcabouço institucional mais permeável às questões socioambientais. Assim, enquanto a Convenção de Estocolmo acabou por conceber o PNUMA como uma espécie de “leão sem dentes”, com perspectivas remotas, e nunca concretizadas, de em algum momento ganhar potência e tração internacional como uma Organização Mundial do Meio Ambiente, a OMC foi criada e teve ao longo de sua história momentos de forte protagonismo multilateral.

A partir de 1995 a OMC passa a ganhar alguma simpatia ou, ao menos, a ter sua rejeição atenuada nas agendas socioambientais e, paradoxalmente, acaba proporcionando a estas mesmas agendas alguma esperança de efetiva e concreta articulação com as relações comerciais internacionais em direção aos objetivos de justiça social e conservação ambiental. Seria isso um exemplo da Síndrome de Estocolmo, em que os reféns passam a exibir simpatia por seus captores?


*Luiza Canellas é bacharel em relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (PPgSUS EACH/USP), onde desenvolve pesquisas sobre governança ambiental no âmbito de instituições de comércio internacional.

Alexandre Igari é professor e pesquisador na Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve pesquisas nas áreas de economia ecológica e mudança institucional, atuando no Programa de Pós-graduação em Sustentabilidade e no bacharelado em Gestão Ambiental da Escola de Artes Ciências e Humanidades (EACH). Graduou-se em administração de empresas e em ciências biológicas pela USP, é mestre em gestão e restauração do meio natural pela Universidade de Alicante (Espanha) e doutor em ecologia pelo Instituto de Biociências da USP.


O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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