Mariana Kalil: O que diz a ciência sobre a política externa do governo Bolsonaro?
Existe um consenso na academia de que a retórica da política externa brasileira entre 2019 e 2022 foi de extrema-direita, ultraconservadora e populista. Segundo professora de relações internacionais, estudos mostram que essa diplomacia foi marcada por uma retórica cujos elementos anti-globalistas e soberanistas religiosos diziam abertamente sacrificar interesses em prol de valores
Existe um consenso na academia de que a retórica da política externa brasileira entre 2019 e 2022 foi de extrema-direita, ultraconservadora e populista. Segundo professora de relações internacionais, estudos mostram que essa diplomacia foi marcada por uma retórica cujos elementos anti-globalistas e soberanistas religiosos diziam abertamente sacrificar interesses em prol de valores
Por Mariana Kalil*
O tempo da ciência tende a ser diferente do tempo das análises de opinião. No entanto, já há alguns artigos científicos que discutem a política externa do governo Bolsonaro. Estamos falando sobre o início de um debate, então, claro, há alguns consensos, mas também há discordância. O que, afinal, diz a ciência sobre a política externa do governo Bolsonaro?
Entre Casarões e Farias (2021), Guimarães e Silva (2021) e Lopes, Carvalho e Santos (2022), existe um consenso de que a retórica da política externa brasileira durante o governo Bolsonaro foi de extrema-direita, ultraconservadora e populista. Uma retórica cujos elementos anti-globalistas e soberanistas religiosos diziam abertamente sacrificar interesses em prol de valores. O anti-globalismo atualizou o anti-comunismo para o século XXI. O caráter soberanista religioso oferecia propostas que substituiriam a ordem liberal do pós-1945.
Os autores também concordam que o então presidente Jair Bolsonaro, membros de seu gabinete e de sua família repetiam o comportamento do então presidente dos Estados Unidos Donald Trump em assuntos como migrações, direitos das mulheres e as relações com a Venezuela.
Não à toa, o Brasil de Bolsonaro retirou-se do Pacto Global para Migrações das Nações Unidas, expulsou a representação do governo Maduro de Brasília, além de patrocinar a Declaração de Genebra sobre a Promoção da Saúde da Mulher e o Fortalecimento da Família, conhecido como o Consenso de Genebra, ao lado de Egito, Hungria, Indonésia, Uganda e Estados Unidos, comprometendo-se, entre outros, com a prevenção do acesso ao aborto, argumentando que não haveria um direito internacional ao aborto que se poderia sobrepor às jurisdições nacionais.
A ciência concorda, ainda, que um alinhamento automático aos Estados Unidos de Trump, além da ruptura em relação ao discurso histórico da política externa que fora favorável a instituições e normas instituídas pela ordem liberal do pós-1945 ensejaram, por exemplo, mudanças no padrão de votação brasileiro em órgãos das Nações Unidas. No caso da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos de Genebra, o Brasil passou a votar majoritariamente a partir de uma ‘aliança cega’ com os Estados Unidos, rompendo também com sua postura histórica a respeito da questão Palestina.
Para Casarões e Farias (2021), a partir de 2019, o Brasil passou a ser um dos mais vociferantes questionadores da ordem liberal internacional que o país inclusive ajudara a criar e que, para uma potência emergente, funciona como forma de ampliar seu poder de barganha. Também para Guimarães e Silva (2021), o Brasil de Bolsonaro adotou postura consistente no sentido de romper com as próprias tradições, sobretudo quando se relacionava com países cujos perfis ideológicos alinhavam-se aos de Brasília. Quando a contraparte carregava perfil ideológico distinto ao de Brasília, haveria tentativas de adoção de certas nuances, ainda que frequentemente frustradas pelo próprio gabinete de Bolsonaro e pelos próprios apoiadores do ex-presidente.
Exemplo desta tentativa de uma política externa com nuances seriam as relações com a China entre novembro de 2019 e março de 2020. Em novembro de 2019, Bolsonaro teria pedido desculpas privadas a Xi Jinping pela sinofobia de seu governo e de seus apoiadores e por suas declarações em visita à China que reduziram as relações entre os dois países a questões comerciais e que declararam que a China seria um país capitalista. Mesmo com a posição soberanista chinesa que apoiou o Brasil perante pressões internacionais em torno do desmatamento da Amazônia, com a oficialização da pandemia de Covid-19 no Brasil, em março de 2020, os ataques sinofóbicos dos apoiadores de Bolsonaro e, inclusive, de membros de seu gabinete teriam voltado a azedar as relações bilaterais.
Se todos os referidos autores concordam ter havido ruptura retórica importante da política externa brasileira durante o governo Bolsonaro, afirmando que essa ruptura levou a mudanças, por exemplo, em padrões de votações no âmbito multilateral, Lopes, Carvalho e Santos (2022) afirmam que a tendência de continuidade foi maior do que a tendência de ruptura.
Eles argumentam que, no caso da saída do Brasil da Unasul, o governo Temer já havia iniciado o processo. Afirmam também que, embora Bolsonaro tenha prometido tirar o Brasil das Nações Unidas, o país foi, em seu mandato, candidato eleito, por exemplo, para ocupar assento não-permanente no Conselho de Segurança da organização. Em relação à Venezuela, embora o Brasil tenha rompido com o governo de Nicolás Maduro, o país não apoiou intervenções militares no vizinho, nem adotou sanções e embargos. Assim, os autores afirmam que a política externa de Bolsonaro teria sido muito latido para pouca mordida.
Lopes, Carvalho e Santos (2022) apontam que a política externa é uma política pública e, em temas nos quais houve maior resistência doméstica ou internacional, o governo Bolsonaro não foi capaz de implementar inteiramente sua agenda. Nesse sentido, é importante notar que mudanças como a posição em relação à Venezuela e à Unasul foram iniciadas durante o governo Temer. Àquela altura, a partir de 2016, o Brasil havia passado por uma ruptura institucional que, como afirma Ab’Sáber (2018), foi engatilhada por um processo de insurgência do fascismo comum, o ultraconservadorismo escravocrata brasileiro.
O governo Bolsonaro foi produto desta ruptura institucional e representou, como afirmam os autores que falam sobre sua política externa, uma tentativa de reposicionar a identidade nacional brasileira. O resultado das eleições de 2022 posa, portanto, grande desafio para os tomadores de decisão, pois parcela quantitativamente importante do eleitorado demonstrou-se tolerante ou apoiadora desse projeto de extrema-direita, ultraconservador e populista que Gonçalves e Caldeira Neto (2020) denominam neo-integralismo.
*Mariana Kalil é colunista da Interesse Nacional. Professora de geopolítica e relações internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG) do Ministério da Defesa, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa (PPGSID) da ESG, senior fellow do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) e co-coordenadora do Grupo de Pesquisa Segurança e Defesa nas Américas (SeDe Américas). Foi vice-chair/program chair do Global South Caucus da International Studies Association (ISA), representante da América Latina e Diretora de Comunicações do mesmo órgão.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências:
DAWISSON BELÉM LOPES, THALES CARVALHO, & VINICIUS SANTOS. Did the Far Right Breed a New Variety of Foreign Policy? The Case of Bolsonaro’s “More-Bark-Than-Bite” Brazil. Global Studies Quarterly (2022) 2, 1–14
FELICIANO DE SÁ GUIMARÃES & IRMA DUTRA DE OLIVEIRA E SILVA. Far-right populism and foreign policy identity: Jair Bolsonaro’s ultra-conservatism and the new politics of alignment. International Affairs 97: 2 (2021) 345–363
GUILHERME STOLLE PAIXÃO e CASARÕES & DÉBORAH BARROS LEAL FARIAS. Brazilian foreign policy under Jair Bolsonaro: far-right populism and the rejection of the liberal international order, Cambridge Review of International Affairs, 2021
LEANDRO PEREIRA GONÇALVES & ODILON CALDEIRA NETO. O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: FGV, 2020.
TALES AB’SÁBER. Michel Temer e o fascismo comum. EdLab Press Editora Eirele, 2018.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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