Notice: Function _load_textdomain_just_in_time was called incorrectly. Translation loading for the wordpress-seo domain was triggered too early. This is usually an indicator for some code in the plugin or theme running too early. Translations should be loaded at the init action or later. Please see Debugging in WordPress for more information. (This message was added in version 6.7.0.) in /home/storage/c/6b/bd/interessenaciona1/public_html/wp-includes/functions.php on line 6114
Interesse Nacional
15 fevereiro 2023

Mariana Kalil: O que diz a ciência sobre a política externa do governo Bolsonaro?

Existe um consenso na academia de que a retórica da política externa brasileira entre 2019 e 2022 foi de extrema-direita, ultraconservadora e populista. Segundo professora de relações internacionais, estudos mostram que essa diplomacia foi marcada por uma retórica cujos elementos anti-globalistas e soberanistas religiosos diziam abertamente sacrificar interesses em prol de valores

Existe um consenso na academia de que a retórica da política externa brasileira entre 2019 e 2022 foi de extrema-direita, ultraconservadora e populista. Segundo professora de relações internacionais, estudos mostram que essa diplomacia foi marcada por uma retórica cujos elementos anti-globalistas e soberanistas religiosos diziam abertamente sacrificar interesses em prol de valores

Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo durante a cerimônia de posse do ministro das Relações Exteriores, em 2019 (Foto: Isac Nóbrega/PR)

Por Mariana Kalil*

O tempo da ciência tende a ser diferente do tempo das análises de opinião. No entanto, já há alguns artigos científicos que discutem a política externa do governo Bolsonaro. Estamos falando sobre o início de um debate, então, claro, há alguns consensos, mas também há discordância. O que, afinal, diz a ciência sobre a política externa do governo Bolsonaro?

Entre Casarões e Farias (2021), Guimarães e Silva (2021) e Lopes, Carvalho e Santos (2022), existe um consenso de que a retórica da política externa brasileira durante o governo Bolsonaro foi de extrema-direita, ultraconservadora e populista. Uma retórica cujos elementos anti-globalistas e soberanistas religiosos diziam abertamente sacrificar interesses em prol de valores. O anti-globalismo atualizou o anti-comunismo para o século XXI. O caráter soberanista religioso oferecia propostas que substituiriam a ordem liberal do pós-1945.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/daniel-buarque-fim-do-governo-bolsonaro-vira-a-diplomacia-de-cabeca-para-cima/

Os autores também concordam que o então presidente Jair Bolsonaro, membros de seu gabinete e de sua família repetiam o comportamento do então presidente dos Estados Unidos Donald Trump em assuntos como migrações, direitos das mulheres e as relações com a Venezuela.

Não à toa, o Brasil de Bolsonaro retirou-se do Pacto Global para Migrações das Nações Unidas, expulsou a representação do governo Maduro de Brasília, além de patrocinar a Declaração de Genebra sobre a Promoção da Saúde da Mulher e o Fortalecimento da Família, conhecido como o Consenso de Genebra, ao lado de Egito, Hungria, Indonésia, Uganda e Estados Unidos, comprometendo-se, entre outros, com a prevenção do acesso ao aborto, argumentando que não haveria um direito internacional ao aborto que se poderia sobrepor às jurisdições nacionais.

A ciência concorda, ainda, que um alinhamento automático aos Estados Unidos de Trump, além da ruptura em relação ao discurso histórico da política externa que fora favorável a instituições e normas instituídas pela ordem liberal do pós-1945 ensejaram, por exemplo, mudanças no padrão de votação brasileiro em órgãos das Nações Unidas. No caso da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos de Genebra, o Brasil passou a votar majoritariamente a partir de uma ‘aliança cega’ com os Estados Unidos, rompendo também com sua postura histórica a respeito da questão Palestina.

‘O Brasil passou a ser um dos mais vociferantes questionadores da ordem liberal internacional que o país inclusive ajudara a criar e que, para uma potência emergente, funciona como forma de ampliar seu poder de barganha’

Para Casarões e Farias (2021), a partir de 2019, o Brasil passou a ser um dos mais vociferantes questionadores da ordem liberal internacional que o país inclusive ajudara a criar e que, para uma potência emergente, funciona como forma de ampliar seu poder de barganha. Também para Guimarães e Silva (2021), o Brasil de Bolsonaro adotou postura consistente no sentido de romper com as próprias tradições, sobretudo quando se relacionava com países cujos perfis ideológicos alinhavam-se aos de Brasília. Quando a contraparte carregava perfil ideológico distinto ao de Brasília, haveria tentativas de adoção de certas nuances, ainda que frequentemente frustradas pelo próprio gabinete de Bolsonaro e pelos próprios apoiadores do ex-presidente.

Exemplo desta tentativa de uma política externa com nuances seriam as relações com a China entre novembro de 2019 e março de 2020. Em novembro de 2019, Bolsonaro teria pedido desculpas privadas a Xi Jinping pela sinofobia de seu governo e de seus apoiadores e por suas declarações em visita à China que reduziram as relações entre os dois países a questões comerciais e que declararam que a China seria um país capitalista. Mesmo com a posição soberanista chinesa que apoiou o Brasil perante pressões internacionais em torno do desmatamento da Amazônia, com a oficialização da pandemia de Covid-19 no Brasil, em março de 2020, os ataques sinofóbicos dos apoiadores de Bolsonaro e, inclusive, de membros de seu gabinete teriam voltado a azedar as relações bilaterais.

‘Todos os referidos autores concordam ter havido ruptura retórica importante da política externa brasileira durante o governo Bolsonaro’

Se todos os referidos autores concordam ter havido ruptura retórica importante da política externa brasileira durante o governo Bolsonaro, afirmando que essa ruptura levou a mudanças, por exemplo, em padrões de votações no âmbito multilateral, Lopes, Carvalho e Santos (2022) afirmam que a tendência de continuidade foi maior do que a tendência de ruptura.

Eles argumentam que, no caso da saída do Brasil da Unasul, o governo Temer já havia iniciado o processo. Afirmam também que, embora Bolsonaro tenha prometido tirar o Brasil das Nações Unidas, o país foi, em seu mandato, candidato eleito, por exemplo, para ocupar assento não-permanente no Conselho de Segurança da organização. Em relação à Venezuela, embora o Brasil tenha rompido com o governo de Nicolás Maduro, o país não apoiou intervenções militares no vizinho, nem adotou sanções e embargos. Assim, os autores afirmam que a política externa de Bolsonaro teria sido muito latido para pouca mordida. 

‘O governo Bolsonaro foi produto de ruptura institucional e representou, como afirmam os autores que falam sobre sua política externa, uma tentativa de reposicionar a identidade nacional brasileira’

Lopes, Carvalho e Santos (2022) apontam que a política externa é uma política pública e, em temas nos quais houve maior resistência doméstica ou internacional, o governo Bolsonaro não foi capaz de implementar inteiramente sua agenda. Nesse sentido, é importante notar que mudanças como a posição em relação à Venezuela e à Unasul foram iniciadas durante o governo Temer. Àquela altura, a partir de 2016, o Brasil havia passado por uma ruptura institucional que, como afirma Ab’Sáber (2018), foi engatilhada por um processo de insurgência do fascismo comum, o ultraconservadorismo escravocrata brasileiro.

O governo Bolsonaro foi produto desta ruptura institucional e representou, como afirmam os autores que falam sobre sua política externa, uma tentativa de reposicionar a identidade nacional brasileira. O resultado das eleições de 2022 posa, portanto, grande desafio para os tomadores de decisão, pois parcela quantitativamente importante do eleitorado demonstrou-se tolerante ou apoiadora desse projeto de extrema-direita, ultraconservador e populista que Gonçalves e Caldeira Neto (2020) denominam neo-integralismo.


*Mariana Kalil é colunista da Interesse Nacional. Professora de geopolítica e relações internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG) do Ministério da Defesa, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa (PPGSID) da ESG, senior fellow do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) e co-coordenadora do Grupo de Pesquisa Segurança e Defesa nas Américas (SeDe Américas). Foi vice-chair/program chair do Global South Caucus da International Studies Association (ISA), representante da América Latina e Diretora de Comunicações do mesmo órgão.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/mariana-kalil-democracia-e-o-novo-governo-lula-o-desafio-do-controle-civil/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências:

DAWISSON BELÉM LOPES, THALES CARVALHO, & VINICIUS SANTOS. Did the Far Right Breed a New Variety of Foreign Policy? The Case of Bolsonaro’s “More-Bark-Than-Bite” Brazil. Global Studies Quarterly (2022) 2, 1–14

FELICIANO DE SÁ GUIMARÃES & IRMA DUTRA DE OLIVEIRA E SILVA. Far-right populism and foreign policy identity: Jair Bolsonaro’s ultra-conservatism and the new politics of alignment. International Affairs 97: 2 (2021) 345–363

GUILHERME STOLLE PAIXÃO e CASARÕES & DÉBORAH BARROS LEAL FARIAS. Brazilian foreign policy under Jair Bolsonaro: far-right populism and the rejection of the liberal international order, Cambridge Review of International Affairs, 2021

LEANDRO PEREIRA GONÇALVES & ODILON CALDEIRA NETO. O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: FGV, 2020.

TALES AB’SÁBER. Michel Temer e o fascismo comum. EdLab Press Editora Eirele, 2018.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/a-diplomacia-de-cabeca-para-baixo-como-a-chegada-de-bolsonaro-ao-poder-transformou-a-percepcao-do-mundo-sobre-o-brasil/

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter