03 agosto 2022

Melilla e Texas: o fracasso das políticas de imigração no mundo

Mortes de migrantes na tentativa de cruzar fronteiras mostram que a política de fechar os olhos às graves violações de direitos humanos cometidas nas fronteiras têm sido comuns nas últimas décadas sem que sejam propostas medidas para resolvê-las além do reforço da cooperação policial.

Mortes de migrantes na tentativa de cruzar fronteiras mostram que a política de fechar os olhos às graves violações de direitos humanos cometidas para bloquear migração têm sido comuns nas últimas décadas sem que sejam propostas medidas para resolvê-las além do reforço da cooperação policial

Migrantes são detidos na fronteira dos EUA com o México (Mani Albrecht/Domínio público)

Por Luca Gervasoni Vila*

A incapacidade da União Europeia e dos Estados Unidos de acolher em seus territórios pessoas que são forçadas a fugir de seus países e buscar refúgio e asilo dentro de suas fronteiras viu dois eventos trágicos recentemente. Os acontecimentos no Texas, nos EUA, e na fronteira entre Nador e Melilla, no Marrocos, são uma violenta lembrança do fracasso das políticas migratórias baseadas na segurança e da necessidade de repensá-las.

Em 24 de junho, a ação coordenada da polícia marroquina e das forças policiais espanholas resultou na morte de 37 pessoas e centenas de feridos quando um grupo de migrantes, principalmente do Sudão e do Sudão do Sul, tentou entrar na cidade de Melilla. Há vídeos e fotografias que mostram corpos caídos no chão em poças de sangue, forças de segurança marroquinas espancando migrantes, a Guarda Civil espanhola jogando gás contra aqueles que tentaram escalar a cerca da entrada de Melilla e imagens de como os feridos em situação agonizante tiveram ajuda negada.

Esses eventos representam uma trágica escalada na perseguição que sofrem em Nador, Tetouan, Tânger, El Aaiún ou Dakhla. Os acordos assinados entre a União Europeia e Marrocos para encorajar as forças marroquinas a impedir o fluxo de migrantes para a Europa fizeram com que, há mais de um ano e meio, os emigrantes de Nador não tivessem acesso a medicamentos ou cuidados de saúde, os seus acampamentos foram queimados e suas propriedades saqueadas, seus poucos alimentos destruídos e até mesmo a pouca água potável que tinham foi confiscada.

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Mortos em um caminhão sem água ou ventilação

Os eventos no Texas são geograficamente distantes e tragicamente próximos na explicação. Apenas três dias após os eventos em Melilla, as autoridades da cidade de San Antonio, na fronteira entre o México e o Texas (EUA), relataram a descoberta de um caminhão contendo 50 corpos em seu interior. Um mínimo de 22 mexicanos, 7 guatemaltecos e 2 hondurenhos que tentavam entrar nos Estados Unidos morreram de fome dentro de um trailer sem ar condicionado e sem acesso a água, em um dia com temperaturas de 40 graus.

Nas últimas três décadas, os Estados Unidos adotaram um conjunto de políticas chamado “prevenção por meio da dissuasão”, destinadas a tornar a migração irregular tão punitiva e perigosa que as pessoas parem de tentar. Ao mesmo tempo, fechou as vias legais para migrar, enquanto corta o acesso ao asilo.

Investigação dos responsáveis

Os trágicos acontecimentos provocaram declarações de condenação das Nações Unidas e de várias organizações de direitos humanos, incluindo a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, apelando a uma investigação independente sobre as responsabilidades da Espanha e dos Estados Unidos nestas mortes e exigindo que os os estados envolvidos tratem todos os migrantes com dignidade e priorizem a salvaguarda dos direitos humanos.

O fato de a população ucraniana ter sido acolhida em ambos os países, enquanto a população centro-americana e africana sofre esse tratamento, foi descrita como racismo institucional.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/opiniao-publica-preconceito-racial-e-a-receptividade-de-estrangeiros-no-brasil/

Enquanto o presidente de Espanha, Pedro Sánchez, e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, acusaram sobretudo as “máfias do tráfico de seres humanos” de serem responsáveis ​​por estes acontecimentos, a verdade é que a política de fechar os olhos às graves violações de direitos humanos cometidas nas fronteiras têm sido comuns nas últimas décadas sem que sejam propostas medidas para resolvê-las além do reforço da cooperação policial.

A vontade de virar a página rapidamente foi tão grande que Sánchez chegou a descrever o que aconteceu na fronteira de Melilla como um “assunto bem resolvido” gerando uma avalanche de críticas sobre sua falta de empatia com as vítimas da tragédia. Mais tarde, ele reconheceu que, quando disse essas palavras, ainda não tinha visto as imagens do evento.

Número de migrantes continua a crescer

Essas mortes são consequências previsíveis das políticas de externalização das fronteiras e da política de dissuasão que ambos os países estão a aplicar. Mas a verdade é que, apesar da dureza com que estas medidas dissuasivas são aplicadas e da gravíssima falta de empatia que acarretam para com algumas das pessoas mais desfavorecidas do planeta, elas são inúteis na contenção dos fluxos migratórios. O número de migrantes que entram nas fronteiras dos EUA e da Europa continua a crescer, alimentado por guerras, as consequências dramáticas das mudanças climáticas e a incapacidade de alimentar suas famílias.

Esta semana triste é um novo lembrete trágico da importância de repensar as políticas de dissuasão, colocando os direitos humanos no centro das ações e promovendo rotas seguras.


* Luca Gervasoni Vila é professor de conflitos, paz e segurança na UOC – Universitat Oberta de Catalunya


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em espanhol.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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