O ataque trumpista às liberdades de pensamento e expressão
Com o retorno do republicano Donald Trump à Casa Branca, sua aversão ao pluralismo, seu desprezo a direitos fundamentais e suas pressões sobre reitores começaram a invadir as universidades americanas, em cujo âmbito a liberdade de opinião e o livre debate sempre estiveram na essência de sua legitimidade e de seu papel na formação das novas gerações

Por José Eduardo Campos Faria*
Ainda que seja impotente e sempre perdedora quando colide frontalmente com o poder, a verdade possui uma força que lhe é própria: seja o que possa afirmar e alardear quem detém esse poder, ele sempre será incapaz de descobrir um substituto viável para ela, dizia Hannah Arendt na década de 1950 em um ensaio sobre a verdade e a política escrito. A história revela que a manipulação de informações factuais, a persuasão e a violência podem até destruir a verdade. No entanto, jamais conseguirão substituí-la, concluía.
Quase duas décadas depois, quando o presidente republicano Richard Nixon se envolveu em uma política agressiva e aventureira contra seus adversários democratas e tentou ocultar abusos que o levariam a renunciar ao cargo, Arendt voltaria ao tema. Em seu ensaio sobre a mentira na política, escrito a partir do vazamento de documentos do Pentágono que mostravam como o governo Nixon se preocupava mais com medidas eleiçoeiras do que com o interesse público e o bem comum, ela lembrou a Primeira Emenda da Constituição americana de 1787. Esse é o dispositivo que garante a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião pacífica e proíbe o estabelecimento de uma religião oficial ou a limitação do exercício de outras religiões.
Quando são efetivas, essas liberdades norteiam as dimensões públicas da vida social. Elas asseguram direitos básicos a todos os cidadãos, abrindo desse modo caminho para que cada pessoa possa usufruir sua cidadania ao máximo. Ao avaliar se a Primeira Emenda da Constituição americana seria suficiente para proteger o direito às informações não manipuladas dos fatos, Arendt afirmou que, sem ela, a liberdade de opinião não passaria de uma “farsa cruel” ou indiciosa.
Com o retorno do republicano Donald Trump à Casa Branca, sua aversão ao pluralismo, seu desprezo a direitos fundamentais e suas pressões sobre reitores começaram a invadir as universidades americanas, em cujo âmbito a liberdade de opinião e o livre debate sempre estiveram na essência de sua legitimidade e de seu papel na formação das novas gerações. Ou seja, o que Hannah Arendt chamou de “farsa cruel” está de volta novamente.
Uma prova disso foi um ofício enviado por um procurador trumpista ao reitor da Georgetown Law School. Criada há 236 anos por padres jesuítas, ela se destaca pela ênfase, em seus cursos, à diversidade, à equidade e à inclusão. Em seu ofício, o procurador disse que esses princípios são inaceitáveis pelo governo Trump e fez duas ameaças. Em primeiro lugar, se a instituição não abandonasse esses princípios, seus formandos seriam proibidos de trabalhar na administração federal. Em segundo lugar, os funcionários públicos federais que nela se graduaram também seriam demitidos, o que já começou a ocorrer.
Dias depois, a ofensiva trumpista contra a liberdade acadêmica e as mentiras invocadas para justificá-la, por um lado, e para tentar a discricionaridade do Executivo em detrimento das prerrogativas dos demais poderes, por outro, aumentaram. Parte do financiamento às pesquisas científicas no campo da medicina foi simplesmente cortada. Verbas de subsídio no valor de 420 milhões de dólares para a Columbia University deixaram de ser transferidas até que ela reformulasse seus programas com base nos valores trumpistas, o que acabou acontecendo, comprometendo assim a imagem da instituição. A University of Pennsylvania e a Johns Hopkins University foram afrontadas. Professores americanos com descendência libanesa e árabe que foram participar de seminários acadêmicos em outros países foram detidos ao retornar e deportados – uma decisão tomada sem qualquer base constitucional. Magistrados de diferentes instâncias judiciais que acolheram recursos judiciais contra as ilegalidades do governo Trump foram por ele classificados como “corruptos”, “ativistas” e “marxistas radicais”. E escritórios de advocacia contratados por adversários ou por simples intelectuais críticos do trumpismo foram ameaçados pelo governo, o que os levou a perder grandes clientes corporativos.
Argumentos como esses, formulados com o objetivo de desafiar ordens judiciais e testar limites constitucionais cada vez que suas decisões são barradas pelos tribunais, mostram o que ocorre quando o poder político entra em guerra com a verdade em todas suas formas, como dizia Arendt nos ensaios acima mencionados. Contudo, mesmo que cada geração tenha o direito de forjar e afirmar sua própria história, em hipótese alguma pode-se admitir que ela tenha o direito de rearranjar fatos de acordo com sua própria perspectiva.
Uma coisa é discutir opiniões inoportunas, rejeitá-las, chegar a um compromisso acerca delas. É compreender o quanto pesquisas acadêmicas e liberdade de pensamento propiciam a conscientização de uma condição social, de um lado, e entender como o trabalho científico se converte em parte realidade como pensamento e prática, de outro lado. Outra coisa é construir narrativas com base em mentiras, sejam elas ardilosas. A marca distintiva da verdade factual consiste em que seu contrário não é o erro ou a ilusão. É, isto sim, a falsidade deliberada, a manipulação de fatos e opiniões – ou seja, a mentira, lembrava Arendt.
Que Trump sempre foi um embusteiro que construiu tanto sua fama com base no fato de que mentiras públicas são mais plausíveis do que a verdade, isso é sabido há muito tempo. Agora, o problema é saber o quanto de estragos ele fará, desafiando o Judiciário, enfraquecendo o império da lei e corroendo a democracia por meio das ameaças, intimidações e mentiras a que vem recorrendo com o objetivo de investir contra as liberdade de pensamento e de expressão que estão na essência da vida acadêmica.
A produção sem censura de conhecimento é a função precípua da Universidade enquanto locus autônomo de poder econômico e político; enquanto espaço de liberdade de criação e de pensamento independente e aberto ao diálogo. Conhecimento não é apenas sinônimo de prestígio e autoridade. É, também, instrumento de poder acadêmico e institucional, ora reproduzindo um padrão de organização econômica, ora criticando suas estruturas para tentar torná-las mais justas. Como o poder, o conhecimento está na essência das revoluções paradigmáticas da ciência. No campo social, é instrumento para mobilizações e protestos. No campo político, é instrumento para o questionamento contínuo da ordem estabelecida.
Na dinâmica da produção do conhecimento, as heterodoxias muitas vezes são mais importantes do que as ortodoxias na vida acadêmica. Elas viabilizam o avanço do conhecimento ao propiciar críticas às teorias prevalecentes, identificando suas contradições com relação aos fenômenos que pretendem compreender. Ao questionar o senso comum teórico que assegura a reprodução dos valores dominantes e ao modificar procedimentos convencionais de pesquisa, as heterodoxias também ajudam a abreviar os períodos de pobreza científica.
Contudo, elas têm seu preço. No passado, os Estados Unidos tiveram a caça às bruxas promovida pelo macartismo. Agora, no âmbito da intolerância, do obscurantismo e da imoralidade trumpistas, esse preço implica o desprezo à tentativa de exercitar uma imaginação criadora capaz de habilitar os americanos a decifrar o sentido dos acontecimentos e a pensar o futuro como história. Ao investir contra instituições acadêmicas de ponta que formam as elites intelectuais, produzem ideias, geram inovações e desenvolvem pesquisas que alargam as fronteiras da ciência, sob o pretexto de que elas constituem um locus de reprodução de conhecimentos adversos e de propagação ideológica, o trumpismo – e sua versão borrada entre nós, o bolsonarismo – não são apenas toscos e cruéis. Pecam, também, pela ausência de escrúpulos e pela sordidez moral.
*José Eduardo Campos Faria é professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde leciona, desde a década de 1980, Sociologia Jurídica (graduação) e Metodologia do Ensino Jurídico
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