27 junho 2024

‘O conto da aia’ e lei contra aborto – A distopia é um alerta, não uma sentença

PL contra aborto gerou análises com referências a livro de Margaret Atwood, mas a comparação implica aceitar a derrota e abdicar da luta, ignorando que a obra serve para nos alertar do que pode vir. Mesmo que o inimigo vença, sempre haverá resistência, pois a liberdade é uma luta constante

Ato em São Paulo contra o Projeto de Lei (PL) 1.904/24, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio (Foto Paulo Pinto/Agencia Brasil)

Desde que o debate sobre a PL 1.904 caiu na boca do povo, referências ao livro O Conto da Aia pipocam nas redes sociais. Publicado em 1985, a obra de Margaret Atwood inspirou a série televisiva The Handmaid’s Tale, disponível em vários serviços pagos de streaming.  A obra teve uma sequência publicada em 2019, Os Testamentos – daqui a pouco a gente fala dela. 

O Conto da Aia é um romance distópico em que os Estados Unidos se fragmentaram após uma guerra civil. A partir daí surge uma ditadura fundamentalista cristã chamada Gilead, na qual mulheres não possuem nenhum direito de cidadania e não podem sequer ler, independente de sua etnia ou classe social. 

‘No livro, todo desviante da norma que os governantes criaram a partir de uma interpretação freestyle da Bíblia são executados em público ou condenados a trabalhos forçados’

Todo desviante da norma que os governantes criaram a partir de uma interpretação freestyle da Bíblia, como feministas, divorciadas, mães solo, cientistas, LGBTQIA+ e  adeptos de outras convicções religiosas, são executados em público ou condenados a trabalhos forçados. As mulheres férteis, contudo, podem escapar da morte se “aceitarem” ser aias das famílias ricas. 

Aias são escravas sexuais com a missão de gerar um bebê para a família que as recebeu. A justificativa bíblica era a história de Agar, escrava do patriarca Abraão. Este não tinha filhos porque sua esposa Sara era infértil. Então eles combinaram que Agar deveria ser estuprada por Abraão para gerar um herdeiro para eles. 

Temos aqui não só uma história de mulheres obrigadas pelo Estado a parir os filhos gerados em estupros rituais, mas toda uma sociedade controlada por valores patriarcais em que o gênero é ponto central de disputa e controle dos corpos dissidentes. É maior que a gravidez compulsória. 

‘Na série, vemos que o papel da diplomacia é proteger os interesses dos Estados antes dos  direitos humanos’

Na série, vemos que o papel da diplomacia é proteger os interesses dos Estados antes dos  direitos humanos. Ela também nos mostra que se o patriarcado fundamentalista cristão vencer, nem as mulheres que apoiaram esse projeto estarão a salvo. Nem elas, nem suas filhas, biológicas ou roubadas das aias violentadas. Na trama de Os Testamentos, as meninas de todas as classes devem se casar logo após a  primeira menstruação. O casamento infantil se torna uma polĩtica de Estado.

Trata-se de algo que está em curso na política estadunidense e tem sido exportado para a América Latina desde os anos 1980: a entrada do fundamentalismo cristão no Estado para moldar a sociedade ao seu modo. Há muita pesquisa sobre isso, mas eu vou recomendar apenas dois livros: Nas ruínas do neoliberalismo – Ascensão antidemocrática no Ocidente (Wendy Brown) e Gênero, Neoconservadorismo e Democracia – Disputas e retrocessos na América Latina (Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria Das Dores Campos Machado). 

Mais “Nolite te bastardes carborundum”, por favor

Como eu ia dizendo, as redes sociais e as manifestações de rua estão cheias de referências a O Conto da Aia. Não gosto nem um pouco disso. Declarar que vivemos em Gilead é aceitar a derrota e abdicar da luta, ignorando que a distopia serve para nos alertar do que pode vir, mas não é uma sentença irrevogável. Serve também para dizer que mesmo que o inimigo vença, sempre haverá resistência, antes, durante e depois. Porque como já vaticinou Angela Davis, a liberdade é uma luta constante

‘O problema não é a citação da obra, mas como ela tem sido citada. Porque, se a questão da resistência não estava suficientemente clara no romance de 1985, a série e o segundo livro deixam isso bem explícito’

O problema não é a citação da obra, mas como ela tem sido citada. Porque, se a questão da resistência não estava suficientemente clara no romance de 1985, a série e o segundo livro deixam isso bem explícito. Temos no princípio da trama a personagem principal, June Osborne, se deparando com uma frase entalhada no chão do armário de seu quarto: “Nolite te bastardes carborumdorum”. Uma suposta tradução para o latim de “don’t let the bastards grind you down” (não deixe os bastardos te oprimirem). 

Mesmo com o aborto sendo punido com a morte, as aias tentam interromper provocar a interrupção da gestação ou cometer suicídio para não dar à luz. Mas também tem muita revolta.

Aia dando murro na cara de guarda armado para roubar carro e sair atropelando quantos homens for possível antes de ser executada. Aia-bomba explodindo centro onde estão reunidos líderes políticos. Redes clandestinas articuladas dentro e fora de Gilead para ajudar mulheres e crianças a escapar para o exílio. Aias se convertendo em seres para a morte ao preferir o risco de ser atropelada por um trem a voltar a servir. Vinganças brutais (bem gráficas) contra estupradores e cúmplices deles, porque não tem que ter sororidade para pilantra. Pouco rom pom pom, muito man down.

‘Essa resistência que se organiza de forma coletiva e fora dos canais institucionais ainda é muito mal vista na sociedade brasileira’

Mas as comparações e referências que vemos nos memes, charges e manifestações parecem uma marcha fúnebre. E eu vou dizer pra vocês por que. Essa resistência que se organiza de forma coletiva e fora dos canais institucionais ainda é muito mal vista na sociedade brasileira. A esquerda, o campo progressista e boa parte dos movimentos feministas não estão preparados para lidar com essa verdade inconveniente: não tem como vencer um jogo no qual as regras foram criadas pelo inimigo, porque, para começo de conversa, não estamos lutando em condições iguais. 

Não é possível ignorar a brutal desproporção de forças quando estamos lidando com um aparato que inclui Estado, igrejas e os valores patriarcais que estão entranhados na sociedade brasileira. Porque o próximo passo é nos oferecerem uma PL mais” branda”, mas que ainda vai ampliar a punição de quem aborta. 

Vão propor castração química, pena de morte, aumento da pena para estupradores e um sem número de medidas punitivistas que não passam nem perto do cerne da questão: nenhuma criança, mulher cis ou pessoa trans com capacidade de gestar deve ser obrigada a levar a termo uma gestação. Principalmente quando essa gestação é produto de um estupro. 

Não aceitemos menos que a retirada total de qualquer plano que pretenda alterar a legislação sobre aborto no sentido da penalização. A única PL possível é a que for estabelecer aborto seguro, legal e gratuito. Que a gente saiba se inspirar na fúria das aias e praticar a ação direta até que eles recuem. Nolite te bastardes carborumborum! Bendita seja a luta feminista.  

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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