O duplo padrão da indignação – Por que jornalistas não podem ir a Israel?
A forma como o debate sobre Israel e Palestina é conduzido evidencia desafios que vão além do próprio conflito. A seletividade na indignação internacional e as reações desproporcionais a tentativas de abordagem mais nuançada apontam para uma tendência preocupante de silenciamento e polarização que dificulta a busca por soluções e compromete a integridade do debate público e a credibilidade da imprensa

A forma como o conflito israelense-palestino é tratado no debate público revela um padrão de seletividade na crítica internacional. Esse fenômeno se manifesta tanto na cobertura midiática quanto na recepção dada a diferentes narrativas sobre o tema.
Recentemente, um grupo de jornalistas brasileiros participou de uma viagem organizada pelo Instituto Brasil-Israel (IBI) com o propósito de aprofundar sua compreensão sobre o conflito. A iniciativa, que visava permitir o contato direto com múltiplas perspectivas, foi alvo de críticas intensas, muitas vezes não pelo seu conteúdo, mas pelo simples fato de incluir Israel no itinerário.
‘Há um espaço cada vez mais restrito para abordagens que fujam de uma narrativa já previamente estabelecida’
Esse episódio exemplifica um fenômeno mais amplo: a existência de um espaço cada vez mais restrito para abordagens que fujam de uma narrativa já previamente estabelecida.
A seletividade com que determinados conflitos são abordados também pode ser observada na forma como outros países são tratados em coberturas internacionais. Correspondentes estrangeiros frequentemente viajam à Rússia, mesmo em meio à guerra na Ucrânia e a denúncias de fraude eleitoral, sem que isso suscite acusações de alinhamento com o Kremlin.
A Ucrânia, por sua vez, recebe um tratamento que em grande parte se restringe à sua narrativa oficial, com pouca problematização de possíveis violações de direitos humanos cometidas por suas próprias forças.
Situações semelhantes ocorrem no Qatar, onde grandes eventos esportivos foram cobertos sem questionamentos substanciais sobre a condição dos trabalhadores migrantes, e no Irã, cujas políticas repressivas raramente geram indignação comparável à reservada a Israel.
Esse duplo padrão não significa que Israel deva estar isento de críticas. Como qualquer outro Estado, suas políticas e ações militares devem ser analisadas à luz do direito internacional e das normas humanitárias.
‘O problema reside na assimetria em considerar certos Estados como ilegítimos, enquanto outros continuam a ser tratados como atores legítimos no sistema internacional’
O problema reside na assimetria com que essas análises são conduzidas e na disposição seletiva em considerar certos Estados como ilegítimos, enquanto outros, independentemente de seu histórico de violações, continuam a ser tratados como atores legítimos no sistema internacional.
Uma das acusações mais contundentes contra Israel é a de que suas ações em Gaza configuram um genocídio. Essa alegação ganhou um novo patamar com a abertura de um processo contra o Estado israelense na Corte Internacional de Justiça (CIJ), sob iniciativa da África do Sul, com base na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio da ONU. O processo, ainda em curso, busca determinar se há elementos suficientes para classificar a ofensiva israelense como genocida.
‘O que está em disputa na acusação de genocídio em Gaza não é apenas a escala da destruição, mas a existência de um propósito deliberado de aniquilação da população palestina’
O conceito de genocídio, conforme estabelecido pela Convenção de 1948, pressupõe a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. O que está em disputa na CIJ não é apenas a escala da destruição em Gaza, mas a existência de um propósito deliberado de aniquilação da população palestina enquanto grupo.
Enquanto o governo israelense argumenta que sua campanha militar tem como alvo o Hamas e ocorre dentro do contexto de um conflito armado, os denunciantes apontam que o nível de devastação, o número de vítimas civis e certas declarações de lideranças políticas israelenses indicariam um padrão genocida.
Independentemente do julgamento da CIJ, a forma como essa acusação tem sido aplicada internacionalmente levanta questionamentos sobre a coerência dos critérios utilizados para definir genocídio.
A guerra na Ucrânia, por exemplo, tem sido marcada por denúncias de ataques sistemáticos contra civis, deportações forçadas de crianças e destruição de infraestrutura essencial, mas a Rússia ainda não foi formalmente acusada de genocídio nos mesmos termos.
Situação semelhante pode ser observada no Irã, onde minorias como curdos e bahá’ís sofrem repressão sistemática, e na Síria, onde o regime de Bashar al-Assad conduziu ataques com armas químicas e destruição em massa contra sua própria população.
‘A categorização de um conflito como genocídio muitas vezes está atrelada a dinâmicas geopolíticas e à mobilização de atores internacionais, mais do que a critérios estritamente jurídicos’
Esses casos indicam que a categorização de um conflito como genocídio muitas vezes está atrelada a dinâmicas geopolíticas e à mobilização de atores internacionais, mais do que a critérios estritamente jurídicos.
A acusação de genocídio contra Israel e a forte reação contra jornalistas que tentam abordar a complexidade do conflito evidenciam um fenômeno preocupante: a crescente dificuldade de se explorar nuances dentro da cobertura midiática.
O enquadramento do conflito de forma binária — em que um lado é visto exclusivamente como opressor e o outro apenas como vítima — restringe a capacidade da imprensa de oferecer um relato mais amplo da realidade.
O efeito colateral dessa polarização é a desumanização das vítimas. Quando a imprensa reporta sobre as mortes de civis palestinos, a cobertura é frequentemente acompanhada de análises sobre a responsabilidade israelense no conflito. No entanto, quando se trata do sofrimento das famílias israelenses afetadas por ataques do Hamas, a narrativa costuma ser tratada com ceticismo ou até mesmo como uma tentativa de desviar a atenção dos crimes de guerra cometidos por Israel.
‘Essa discrepância cria um ambiente em que não há espaço para reconhecer que o sofrimento humano não se restringe a um único lado e que o conflito’
Essa discrepância cria um ambiente em que não há espaço para reconhecer que o sofrimento humano não se restringe a um único lado e que o conflito, que é marcado por dinâmicas complexas que não podem ser reduzidas a uma narrativa simplificada.
A forma como o debate sobre Israel e Palestina é conduzido evidencia desafios que vão além do próprio conflito. A seletividade na indignação internacional e as reações desproporcionais a tentativas de abordagem mais nuançada apontam para uma tendência preocupante de silenciamento e polarização. Isso não apenas dificulta a busca por soluções justas e equilibradas, mas também compromete a integridade do debate público e a credibilidade da imprensa.
A cobertura jornalística deve ser guiada pelo compromisso com a informação factual e a diversidade de perspectivas, permitindo que diferentes narrativas sejam analisadas de forma crítica. O reconhecimento da complexidade do conflito e a disposição para debater com honestidade intelectual são passos essenciais para uma compreensão mais aprofundada da questão, sem que um dos lados seja automaticamente descartado como ilegítimo ou suspeito.
Se a intenção é promover uma discussão séria sobre direitos humanos e conflitos internacionais, é fundamental que o mesmo rigor analítico aplicado a Israel seja estendido a outros cenários globais.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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