O homem que não calculava: O caso de Nicolás Maduro
Inspirados pelo best-seller de Malba Tahan, que narra as aventuras de Beremiz Samir e sua perspicaz aplicação da matemática para resolver diversos problemas, artigo mostra como um erro de cálculo pode revelar falta de integridade eleitoral na Venezuela
Em 17 de outubro de 2023 o Governo de Nicolás Maduro assinou um acordo com a oposição venezuelana. O chanceler assessor do Brasil, Celso Amorim, articulou e foi avalista daquilo que se convencionou chamar de Acordo de Barbados. Dado o histórico de sucessivas violações eleitorais cometidas pelos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, o referido documento soava como uma espécie de abertura política do Regime. Nestes termos, o acordo estabeleceu vários parâmetros importantes para a realização das eleições presidenciais de 2024 na Venezuela. Apoiado também pela chancelaria norte-americana, o acordo visava, entre outras coisas, legitimar o governo venezuelano perante a comunidade internacional.
Dentre as decisões comungadas pelas partes, destacamos o seguinte:
- as eleições presidenciais seriam realizadas no segundo semestre de 2024;
- observadores internacionais seriam convidados para monitorar o processo eleitoral, garantindo maior transparência e legitimidade ao pleito;
- todos os candidatos elegíveis teriam a oportunidade de se registrar e participar das eleições, garantindo um processo inclusivo e democrático;
- todas as partes envolvidas na disputa estariam obrigadas a respeitar as normas eleitorais e garantir um ambiente de paz e respeito na resolução de eventuais conflitos;
- ocorreriam a implementação de reformas no sistema eleitoral para assegurar maior transparência e confiança no processo, incluindo melhorias nos mecanismos de votação e contagem de votos;
- seria garantido à imprensa livre acesso para operar, sem censura ou intimidação, permitindo uma cobertura justa e balanceada das campanhas e do processo eleitoral.
Não demorou muito para que os parâmetros que visavam garantir uma eleição mais justa e transparente, com a participação ativa de todas as partes interessadas e a supervisão de observadores internacionais, caíssem por terra por obra do próprio regime que habita o Palácio de Miraflores desde 1998.
A líder da oposição Maria Corina Machado foi impedida de se candidatar ressuscitando manobras de degola eleitoral de opositores. Diversos outros líderes tiveram seus direitos políticos cassados por órgãos controlados pelo Executivo.
Os calculistas de Maduro não contavam com a astúcia do povo venezuelano. Edmundo González Urrutia, ex-diplomata aposentado, foi nomeado às pressas em março de 2024 pela coligação de oposição da Venezuela, após inabilitação de Corina Machado e outros possíveis substitutos.
O respaldo dos eleitores a essas mudanças não entrou no cálculo de Maduro e seus asseclas. O avanço da campanha eleitoral e as pesquisas independentes apontavam para um desfecho sombrio para o regime. O Acordo de Barbados entrou em rota de colisão com as pretensões de reeleição de Maduro, daí para frente quase todos os termos do acordo firmado entre governo e oposição foram sistematicamente desrespeitados.
O impedimento da entrada de diversos observadores estrangeiros, a fala do presidente do CNE dando vitória a Maduro sem publicizar as atas de votação e permitir que a oposição participasse da apuração, a fala do procurador chefe do Ministério Público acusando a oposição de obstruir a eleição e a fala dos chefes militares enfileirados, obviamente para comprometê-los, rezando um rosário de devoção a Maduro, são cenas conhecidas do povo venezuelano e se materializam em algumas evidências científicas.
Por exemplo, ao considerar o Índice de Percepção da Corrupção, calculado pela Transparência Internacional, a Venezuela aparece como um caso contumaz de desmantelamento institucional. A figura abaixo mostra a variação desse indicador entre 2012 e 2022.
Coletamos outros indicadores, agora mais diretamente relacionados à integridade eleitoral. Como pode ser observado, a Venezuela aparece como um caso aberrante de limitada integridade eleitoral dado o nível de renda per capita (figura abaixo).
Seja pela análise da conjuntura política venezuelana, seja pelo exame de indicadores objetivos e subjetivos da realidade, estamos diante de um caso peculiar. Inspirados pelo best-seller de Malba Tahan, que narra as aventuras de Beremiz Samir e sua perspicaz aplicação da matemática para resolver diversos problemas, veremos agora como um erro de cálculo pode revelar problemas sobre a integridade eleitoral na Venezuela.
A tabela abaixo resume os resultados oficiais das eleições presidenciais de 2024, conforme divulgado pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE).
Resultados oficiais (80% de urnas apuradas)
Nome | Número de votos | % |
Nicolás Maduro | 5.150.092 | 51,2 |
Edmundo González | 4.445.978 | 44,2 |
Outros | 462.704 | 4,6 |
Total | 10.058.744 | 100 |
Considerando um total de 10.058.744 votos, o CNE informou que Maduro saiu vitorioso com 51,2%. Edmundo González, candidato da oposição, teria recebido 44,2%. A categoria “outros” totalizou 462.987 votos, representando 4,6%. A pergunta é: podemos confiar nesses resultados?
Primeiro, usando aritmética básica, vamos reproduzir o cálculo do percentual de votos de cada candidato, que é estimado pela razão entre o número de votos de cada concorrente e a votação total (10.058.744).
“Professores, essa tabela é exatamente igual à primeira. Não entendi.” De fato, são os mesmos números. A única diferença é que agora estamos usando sete casas decimais ao invés de uma.
O que observamos é um padrão extremamente incomum de valores decimais exatos. Como estamos trabalhando com uma divisão, o mais frequente é encontrar valores fracionados com diferentes algarismos. Talvez um exemplo ajude a entender melhor a natureza do problema.
Para os dados da eleição presidencial de 2022 no Brasil os decimais aparecem fracionados (como esperado). No caso da Venezuela, a precisão excessiva é um sinal de alerta sobre a autenticidade do processo gerador dos dados. Para reforçar esse ponto, selecionamos, ao acaso, quatro eleições estaduais para o cargo de governador. Vejamos os resultados.
Para todos os casos, os decimais exibem fracionamento, como esperado teoricamente. Então, por esse critério, devemos considerar que os dados venezuelanos são, para dizer o mínimo, curiosos.
Note que para a obtenção de (exatamente) 0,20000% do total de votos, são necessários 20.118 votos. Em termos de probabilidade, esse número apareceria com probabilidade aproximada de 0,000049706730, um número muito pequeno.
Além disso, nota-se que essa representação aparece também para o candidato Edmundo, o que torna tudo ainda menos provável de ocorrer. Lembre-se do “e” matemático do ensino médio: a probabilidade de um evento A “e” um evento B ocorrerem ao mesmo tempo é o produto das probabilidades de ocorrência de cada um. Sendo assim, a probabilidade de Maduro e Edmundo ter a parte fracionária idênticas ao que tiveram seria de 0,000049706730*0,000049706730=0,000000002470759036%. Fala sério: seria como ganhar na loteria.
“Professores, mas isso prova a fraude?”. Não. Não existe uma bala de prata para esse tipo de problema. O que esse teste mostra é um padrão estranho com reduzida chance de ocorrer sem interferência humana.
Evidências recentes publicadas pelo Projeto Alta Vista colocaram em xeque, para dizer o mínimo, o resultado oficial anunciado pelo CNE. A equipe de especialistas, que conta com pesquisadores brasileiros e internacionais, desenvolveu uma metodologia inédita para fazer uma contagem rápida dos votos das eleições venezuelanas. Seguindo as melhores práticas científicas, o estudo foi pré-registrado em uma plataforma aberta e todos os dados e scripts computacionais estão publicamente disponíveis.
Considerando os elementos qualitativos da conjuntura política venezuelana, os dados objetivos sobre o desempenho institucional do país nas últimas duas décadas e os recentes imbróglios com a divulgação dos resultados eleitorais por mesa, devemos concluir que a vontade soberana do povo foi dilacerada por um presidente que nem sabe perder nem sabe calcular.
Ernani Carvalho é doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo, é professor do Departamento de Ciência Política e Coordenador do Mestrado Profissional em Políticas Públicas da UFPE. É editor da revista Política Hoje.
Maria do Carmo Soares de Lima é doutora em estatística e professora do Departamento de Ciência Política da UFPE
Dalson Britto Figueiredo é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP/UFPE)
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