04 setembro 2025

O interesse nacional nas mensagens ao Congresso entre 1933 e 1937: ameaça das ideologias e centralização a favor do Estado

Entre 1933 e 1937, as mensagens de Getúlio Vargas ao Congresso revelaram a centralização do poder em nome do “interesse nacional”, a omissão sobre resistências como 1932, a adoção de reformas sociais e eleitorais, e o avanço do autoritarismo diante da ameaça de ideologias radicais e da instabilidade internacional

O introdutor ao volume das mensagens presidenciais relativas aos quatro anos dos governos provisório e constitucional de Getúlio Vargas, entre 1933 e 1937, prof. José Augusto Guerra, surpreende-se desde o primeiro parágrafo de sua competente apresentação ao conteúdo desses importantes documentos da política nacional: “espera-se uma exposição tanto quanto possível minuciosa dos acontecimentos ocorridos em um passado próximo e depara-se com uma análise histórica de um passado remoto. Nisto difere das Mensagens que a antecederam, desde a de Deodoro da Fonseca” (Documentos Parlamentares 126, 1978, p. 9). Getúlio proferiu longo discurso na Assembleia Constituinte, dando conta “das razões que levaram à deposição do Presidente Washington Luís”, em 1930:

A nova distribuição das rendas, resultante da descentralização [efetuada pela Constituição de 1891, permitindo aos estados não só criarem impostos de exportação, mas também contratarem impostos externos sem o aval da União], foi péssima, refletindo-se desastradamente na vida dos Estados, para deixar uns na opulência [como São Paulo, por exemplo] e outros na miséria. Proveio daí, em parte, o estabelecimento das oligarquias locais [crítica à política do “café com leite”], tornadas endêmicas e voltadas para o centro, como no tempo da monarquia, e dele pedindo ordens e mendigando favores. Criou-se, mercê desse estado de coisas, uma espécie de casta governamental, instalada no poder, com o privilégio de aproveitar e distribuir os seus proventos. (Idem, p. 10)

Encontram-se já ali as fontes da forte centralização do poder da União que Getúlio promoveria em 1937, e que perdurou no Estado Novo e foi novamente retomada sob o regime militar de 1964-1985. Em contrapartida, Vargas sequer referiu-se ao movimento constitucionalista de 1932, com origem em São Paulo e que se opunha, justamente, às suas tendências autoritárias e centralizadoras. O Introdutor explica porque: 

Nessa deliberada omissão aos fatos de que todo participaram, Vargas revela uma das características de seu temperamento: o silêncio. Não era de soprar brasas, preferia contemplar a fumaça do seu próprio charuto. Nesse longo discurso de 15 de novembro de 1933, nenhum comentário sobre a guerra civil de 1932. Silêncio total sobre os fatos e emite elogios aos atos do Governo Provisório. (Idem, ibidem)

Mas o resto da mensagem contém evidências de atos que já correspondiam ao chamado interesse nacional: reforma eleitoral com a instituição do voto secreto, a representação proporcional, o voto feminino, a entrega à Justiça a apuração do pleito, e a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a legislação social, ou seja, reformas que correspondiam a aspirações nacionais que estiveram embutidas nas várias revoltas tenentistas da década precedente. A segunda mensagem não corresponde ao ano de 1934, todo ele ocupado pela Constituinte, na qual brilhou Oswaldo Aranha como ministro da Fazenda. Ele poderia ter sido escolhido como presidente nesse primeiro período, mas Vargas, maquiavelicamente, despachou-o para a embaixada em Washington, onde ficou até o golpe do Estado Novo, demitindo-se imediatamente após, para tornar-se ministro das relações exteriores em março de 1938, inclusive como forma de opor-se aos “fascistas” do governo.

A segunda mensagem, de maio de 1935, evidenciou a pouca adesão de Vargas a um regime de poder compartilhado com a representação política. O mundo já exibia os sinais claros de crise nas democracias liberais, em face da ascensão dos fascismos, do comunismo soviético, dos regimes autoritários ou já totalitários. O Brasil se recuperava da crise do início da década, mas já no final do ano foi confrontado à intentona comunista, o que colocou o problema da segurança do Estado como tema prioritário, tornado preeminente na mensagem do ano seguinte. Grupos radicais começam a se organizar para as eleições de 1938, o que projeta a primeira polarização que se consolidaria de forma permanente depois: entre direita e esquerda. No ano seguinte, 1936, já se instalava o Tribunal de Segurança Nacional, abrindo o caminho para o golpe ditatorial de novembro de 1937. 

‘O “interesse nacional”, naqueles anos, deveria estar concentrado no esforço de recuperação econômica, no contexto da depressão mundial, e de construção de uma economia mais voltada para a industrialização interna do que para a exportação de commodities, em primeiro lugar o café’

O “interesse nacional”, naqueles anos, deveria estar concentrado no esforço de recuperação econômica, no contexto da depressão mundial, e de construção de uma economia mais voltada para a industrialização interna do que para a exportação de commodities, em primeiro lugar o café. A radicalização impôs-se, vinda de fora, repercutida violentamente pelos seus adeptos no país, comunistas de um lado, integralistas do outro (que ainda tentaram um putsch em 1938). Todas as expectativas voltadas para a modernização do país tiveram de dar lugar a dezenas de leis, centenas de decretos, todos eles tratando de segurança interna e da repressão a grupos e movimentos organizados nos extremos. 

A política externa ganha maior projeção continental e a relação com os Estados Unidos adquire importância especial. A mensagem de 1935 reflete o ambiente negativo que vai das “quotas e contingenciamentos ao bloqueio direto das moedas e aos convênios de compensação” (p. 481), e se fala de compensar esse cenário com o “desenvolvimento de mercados internos em condições estáveis e compensadoras” (p. 482). A diplomacia prega a “formação de um bloco de nações americanas” como um “imperativo de ordem social e equilíbrio político”, num “órgão de defesa comum” (idem), o que obviamente não será concretizado. Mas, os antigos acordos comerciais com base na “nação mais favorecida” foram descontinuados, pois se reconheceu que essa 

… condição se tornou inoperante, em face dos óbices criados pela maioria das nações, que ora decretavam tarifas proibitivas para os nossos produtos, ora recorriam ao contingenciamento, ou faziam convênios com a cláusula de compensação, e, por fim, bloqueavam a saída de divisas internacionais para o pagamento das compras. (p. 484)

Em fevereiro de 1935, um novo tratado comercial com os Estados Unidos substituiu o precedente, de 1923, “com apreciáveis reduções sobre as antigas tarifas”, ao passo que “as concessões feitas aos [EUA] favorecem, apenas, os produtos industriais que recebemos habitualmente daquele País” (p. 486). Vargas viajou à Argentina e ali assinou um outro acordo comercial, que ainda pendia de aprovação legislativa. Os assuntos militares, contudo, ocuparam maior espaço na mensagem do que as questões diplomáticas. A imigração seria estimulada, mas se evitaria a formação de “colônias homogêneas”, sendo obrigatória “um mínimo de 30% de colonos nacionais”, como forma de corrigir e evitar “enquistamentos raciais”, com vistas a “promover a nacionalização dos elementos exóticos” (p. 536-37). O “imigrante desejável” é o agricultor e o nacionalismo se torna doutrina de Estado:

Nenhuma escola nas colônias, primária ou secundária, poderá ser regida por professores que não sejam brasileiros natos, como nenhuma criança, até 12 anos, poderá ser ensinada em outra língua, senão a portuguesa. (p. 537)

A introversão econômica já tinha sido reconhecida como inevitável, e o sistema tarifário deveria servir a uma dupla finalidade: “auxiliar a integração completa dos mercados internos” e defender, “por uma aplicação de tarifas consequentes as indústrias e o seu crescimento” (idem). No plano externo, a situação da dívida federal era a seguinte, ao final de 1935: dívida em libras de 105 milhões (gerando um serviço de 13 milhões); em dólares, de 172 milhões (serviço de 20 milhões); em francos-ouro, 229 milhões (serviço de 14 milhões) e dívida em francos-papel de 288 milhões e serviço de 180 milhões. Simultaneamente, o novo regime cerceou a capacidade dos estados de contraírem dívidas, como a Constituição de 1891 lhes havia outorgado, diminuindo proporcionalmente o seu serviço progressivamente. 

Nas conclusões da mensagem de 1936, a segurança nacional assumiu a preeminência esperada, junto com a “defesa do regime”, contra a “sedução das doutrinas exóticas” (p. 697), e se reconheceu, na política exterior, a “necessidade imperiosa de modificar… as diretrizes da nossa política econômica exterior”, pela denúncia de “todos os antigos tratados, convênios e acordos comerciais, na sua maioria baseados na cláusula da ‘nação mais favorecida’, inteiramente inoperante em face das novas condições dos negócios internacionais” (p. 709). 

A derradeira mensagem de Vargas, até sua derrocada, em outubro de 1945, foi feita em 3 de maio de 1937, e é bem mais concisa (com apenas 29 páginas, certamente um resumo da mensagem real) do que as 649 páginas da detalhadíssima mensagem do ano anterior, ou as 262 páginas da de 1935. Vargas declara que, “extintos os principais focos da rebelião de 1935”, a situação em 1937 “apresenta-se tranquila e próspera, de modo a inspirar confiança dentro como fora do país” (p. 719). Novamente, a “defesa do regime” e a situação econômica e financeira assumem maior espaço no documento, com apenas uma página e meia da “política exterior”, do lado da qual “nada temos a recear” (p. 734), seguindo-se uma declaração que sempre foi constante em todo o itinerário do país na frente externa:

Sempre fomos pacifistas e persistimos deliberadamente nesses propósitos. Nenhuma mudança se registrou nas diretrizes da nossa atuação internacional, sempre mantida no sentido de maior concórdia e estreita cooperação com os demais povos. (…)

Razões de ordem étnica e cultural, e mesmo geográficas e econômicas, impõem-nos, como aos demais países americanos, um contato permanente e amistoso, capaz de propiciar a solução harmônica de importantes problemas comuns. (p. 734-35)

De maneira geral, pode-se dizer que essas mensagens, elaboradas e apresentadas em anos de grande comoção nacional, confirmam uma característica básica da organização social e política da nação: a quase totalidade dos assuntos relevantes, tal como expressos nos documentos, são concebidos, elaborados e aplicados dentro do Estado, por meio do Estado, para o Estado, sendo a sociedade nacional relegada a um segundo plano, quase imperceptível. O “interesse nacional” é aquele que o Estado determina que seja, e o regime varguista, nos quatro anos cobertos pelas mensagens, atua basicamente no sentido de que tal conformação seja reafirmada, o que se reflete na conclusão desse último ano, seis meses antes do golpe do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937: 

Atravessando regimes políticos e fases diversas de economia, não conseguimos modificar a fisionomia adquirida inicialmente, apesar de vasta e variada legislação. Para grupos apreciáveis de população, o Estado era quase uma entidade desconhecida, apenas fazendo-se presente pela percepção de tributos mal lançados e improdutivamente aplicados. (…)

Todos os Estados modernos, exceto naqueles em que a mobilidade social é diminuta, constituíram-se como obra voluntária e acabada dos homens a que se confiou a missão de governar. (p. 737)

Pelos oito anos seguintes, desde esse 10 de novembro, sem Congresso e sem mensagens, Vargas se encarregaria de tornar o Estado bem mais presente, tendo assumido voluntariamente a missão de governar, segundo uma concepção do “interesse nacional” que ele se encarregou pessoalmente de formular e de implementar. Reinou a “paz” da ditadura. A República de 1946 tornaria essa definição e implementação bem mais complicada e agitada.

Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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