O labirinto de Gaza – Entre a catástrofe humanitária e a armadilha estratégica de Israel
Reocupar Gaza pode parecer, para parte da liderança israelense, a solução mais direta para neutralizar ameaças imediatas. Mas, estrategicamente, corre o risco de se tornar um jogo de soma negativa: aprofundar a catástrofe humanitária, consolidar um ciclo de resistência e acelerar o isolamento diplomático

A guerra em Gaza, iniciada após os ataques de 7 de outubro, entrou em uma fase que combina duas dimensões inseparáveis: a pior crise humanitária já registrada no território e uma aposta estratégica israelense cujo custo pode se tornar insustentável.
Desde o início do ano, integrantes do gabinete de Benjamin Netanyahu passaram a admitir a possibilidade de um controle militar indefinido sobre o território, supostamente para impedir a reorganização do Hamas e garantir a segurança das comunidades no sul de Israel.
A ideia de “reocupar Gaza” voltou a ganhar força nas últimas semanas, com planos para retomar áreas ainda fora do controle das Forças de Defesa e manter uma presença prolongada.
‘O problema é que, até agora, não existe um plano político minimamente detalhado para o chamado “dia seguinte”’
O problema é que, até agora, não existe um plano político minimamente detalhado para o chamado “dia seguinte”: quem governaria Gaza, como seriam administrados os serviços básicos, quais recursos sustentariam a reconstrução e, sobretudo, como evitar que essa presença se converta numa ocupação sem fim.
O vácuo de respostas agrava uma situação em que o colapso humanitário já se transformou em fator geopolítico. Mais da metade da população está deslocada, a insegurança alimentar atinge níveis de fome aguda e a infraestrutura de saúde está à beira do colapso. Relatórios recentes da ONU apontam que epidemias e mortalidade infantil elevada são riscos concretos, enquanto a destruição atinge até instalações humanitárias.
‘Essa devastação pressiona governos aliados de Israel, que precisam conciliar seu apoio militar e político com a crescente rejeição doméstica e internacional ao que é visto como punição coletiva à população civil’
Essa devastação pressiona governos aliados de Israel, que precisam conciliar seu apoio militar e político com a crescente rejeição doméstica e internacional ao que é visto como punição coletiva à população civil. O fator humanitário, portanto, deixou de ser apenas um imperativo moral e passou a moldar diretamente decisões estratégicas, influenciando desde o grau de envolvimento dos EUA até o discurso de capitais europeias.
A história oferece lições claras sobre os riscos desse caminho. Experiências como a ocupação americana no Iraque e no Afeganistão, ou mesmo a permanência israelense no sul do Líbano entre 1982 e 2000, mostram que o controle militar prolongado sobre territórios hostis tende a alimentar ciclos insurgentes. Trata-se de um paradoxo conhecido: quanto mais ostensiva e duradoura é a presença, mais ela serve de catalisador para a resistência, armada ou política. No médio prazo, o custo humano, financeiro e diplomático frequentemente supera quaisquer ganhos iniciais de segurança.
‘O teto do apoio externo é mais baixo do que se supunha’
Além disso, o teto do apoio externo é mais baixo do que se supunha. O governo Trump tem sido claro ao afirmar que não apoia uma reocupação permanente nem mudanças unilaterais nas fronteiras de Gaza. Na Europa, cresce a disposição de debater alternativas, como missões da ONU para estabilização e proteção de civis, sinalizando fadiga estratégica com a lógica da “ocupação sem fim”. Ao mesmo tempo, a guerra congelou negociações de normalização entre Israel e Arábia Saudita e reduziu o apoio público a esse tipo de acordo no mundo árabe, limitando a margem de manobra de governos que antes ensaiavam aproximações discretas.
Para o Brasil, a equação exige coerência. É possível defender princípios como o acesso humanitário irrestrito e o respeito ao direito internacional, reconhecendo que uma ocupação indefinida tende a gerar instabilidade e minar as próprias justificativas israelenses de segurança.
‘O espaço de atuação diplomática brasileira está justamente na discussão da governança do “dia seguinte”’
O espaço de atuação diplomática brasileira está justamente na discussão da governança do “dia seguinte”: um arranjo que combine administração civil com participação palestina reformada, reconstrução condicionada a garantias de segurança e presença multilateral capaz de evitar tanto o vácuo institucional quanto a perpetuação da ocupação.
Reocupar Gaza pode parecer, para parte da liderança israelense, a solução mais direta para neutralizar ameaças imediatas. Mas, estrategicamente, corre o risco de se tornar um jogo de soma negativa: aprofundar a catástrofe humanitária, consolidar um ciclo de resistência e acelerar o isolamento diplomático. Sem um plano político crível, o “dia seguinte” continuará sendo adiado, e Gaza permanecerá como um labirinto onde segurança e legitimidade se perdem juntas, com efeitos duradouros para toda a região.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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