17 dezembro 2025

O mundo em chamas – Antissemitismo, islamofobia e a crise da civilização

Desde o início do conflito entre Israel e Hamas em outubro de 2023, grupos de monitoramento de crimes de ódio têm registrado elevações dramáticas nos índices de ataques, discurso de ódio e hostilidade contra judeus e muçulmanos em países do Ocidente e além

Foto: Governo da Austrália

Na última semana, o mundo testemunhou um episódio que deveria ter sido impensável no século XXI: um ataque terrorista motivado por ódio religioso durante uma celebração de Hanukkah na praia de Bondi, em Sydney, resultou na morte de mais de uma dezena de pessoas e deixou dezenas de feridos. 

O tiroteio em massa foi rapidamente caracterizado pelas autoridades como um ato antissemita dirigido à comunidade judaica presente no evento, um ataque que transformou alegria em horror e despertou temores profundos sobre o crescimento global do ódio contra minorias religiosas. 

‘Este não foi um caso isolado, mas o ápice de uma tendência de aumento simultâneo de antissemitismo e islamofobia em diferentes regiões do mundo’

Este não foi um caso isolado, mas o ápice de uma tendência que organismos internacionais e observadores de direitos humanos já vinham denunciando: o aumento simultâneo de antissemitismo e islamofobia em diferentes regiões do mundo, um fenômeno alimentado tanto por crises geopolíticas quanto por dinâmicas internas de polarização social e política. 

Desde o início do conflito entre Israel e Hamas em outubro de 2023, grupos de monitoramento de crimes de ódio têm registrado elevações dramáticas nos índices de ataques, discurso de ódio e hostilidade contra judeus e muçulmanos em países do Ocidente e além. Nos Estados Unidos, Europa e Austrália, incidentes antissemíticos dispararam, incluindo pichações racistas, ataques físicos, intimidações e ameaças claras à segurança de comunidades inteiras. 

Ao mesmo tempo, a islamofobia, o preconceito e hostilidade diretos contra muçulmanos, também se intensificou, muitas vezes misturada com lógicas securitárias e narrativas de “ameaça cultural”. Pesquisas revelam que, mesmo em países democrática e pluralistas, atitudes negativas contra muçulmanos permanecem entre as mais altas quando comparadas a outras minorias religiosas e étnicas, e têm se acentuado em contextos de crise. 

‘Esse duplo avanço do ódio é sintomático de um fracasso coletivo: transformamos identidades religiosas e étnicas em vasos de projeção de ansiedades e frustrações contemporâneas’

Esse duplo avanço do ódio, anti-judaico e anti-islâmico, compartilhado por diferentes grupos sociais e políticos é sintomático de um fracasso coletivo: falhamos em cultivar sociedades realmente plurais e resilientes. Em vez disso, transformamos identidades religiosas e étnicas em vasos de projeção de ansiedades e frustrações contemporâneas. Mais ainda, ao misturar debates legítimos sobre política internacional, inclusive as críticas a atos de governos, com hostilidade dirigida a pessoas pela sua fé ou origem, normalizamos a violência retórica que pode eclodir em violência física. 

O ataque em Bondi Beach, uma cerimônia de luzes transformada em carnificina, é um lembrete brutal de que o antissemitismo não é um resquício do passado nem a islamofobia um fenômeno periférico, mas realidades presentes, que se alimentam de polarização, desinformação e discursos públicos irresponsáveis. 

Governos e instituições têm responsabilidades urgentes. É preciso aplicar e reforçar mecanismos legais que classifiquem e punam crimes de ódio com rigor; investir em educação pública que promova compreensão intercultural; e estabelecer políticas que distingam claramente entre crítica política legítima e discurso de ódio que incita violência contra judeus, muçulmanos ou qualquer outra comunidade. Organismos internacionais também devem reanimar compromissos com direitos humanos que, nos últimos anos, foram tensionados por realismos geopolíticos e interesses estratégicos.

‘O crescimento global do antissemitismo e da islamofobia passou a ocupar o centro do debate público, atravessando democracias consolidadas, instituições educacionais, ambientes culturais e, sobretudo, as redes sociais’

O crescimento global do antissemitismo e da islamofobia deixou de ser um fenômeno periférico ou restrito a grupos extremistas organizados. Ele passou a ocupar o centro do debate público, atravessando democracias consolidadas, instituições educacionais, ambientes culturais e, sobretudo, as redes sociais. Casos recentes noticiados pela imprensa internacional, incluindo episódios de violência associados a eventos religiosos ou manifestações políticas, funcionam menos como exceções e mais como sintomas de uma transformação mais profunda: a normalização do ódio como linguagem política legítima.

O que distingue o momento atual de outros períodos históricos de intolerância não é apenas a intensidade do preconceito, mas a infraestrutura que o sustenta. 

Plataformas digitais não apenas amplificam discursos antissemitas e islamofóbicos; elas recompensam esse tipo de conteúdo. Algoritmos baseados em engajamento tendem a privilegiar mensagens que provocam indignação, medo e raiva, emoções que discursos de ódio mobilizam com enorme eficiência.

‘A política cede lugar à lógica da culpa coletiva, um terreno fértil para o preconceito’

Nesse ambiente, fronteiras fundamentais são deliberadamente apagadas. Críticas legítimas a governos, políticas externas ou decisões militares passam a ser formuladas em termos identitários, essencialistas e desumanizantes. Judeus são responsabilizados coletivamente por ações do Estado de Israel; muçulmanos são tratados como extensões homogêneas de grupos extremistas violentos. A política cede lugar à lógica da culpa coletiva, um terreno fértil para o preconceito.

As redes sociais também alteraram a velocidade do ódio. O que antes exigia mediação institucional, jornais, partidos, lideranças religiosas ou políticas, hoje circula em tempo real, sem filtros, sem contextualização e, muitas vezes, sem responsabilização. Teorias conspiratórias antigas ganham roupagem contemporânea, embaladas em memes, vídeos curtos e slogans emocionalmente eficazes. Antissemitismo clássico reaparece sob a forma de “antissionismo absoluto”; islamofobia se reconfigura como discurso securitário permanente.

Mais grave ainda é o processo de banalização. Quando expressões de ódio passam a ser repetidas, curtidas, compartilhadas e defendidas em espaços públicos digitais, elas deixam de soar extremas. Tornam-se “opinião”. Tornam-se “lado”. Esse deslocamento do inaceitável para o aceitável é talvez o maior risco civilizacional do nosso tempo.

‘O mundo digital não é um espaço separado da realidade: ele organiza percepções, legitima ações e molda comportamentos’

O impacto não é apenas simbólico. Estudos e dados de monitoramento de crimes de ódio mostram correlação clara entre picos de hostilidade online e aumento de agressões físicas, vandalismo, ameaças e violência direta contra comunidades judaicas e muçulmanas. O mundo digital não é um espaço separado da realidade: ele organiza percepções, legitima ações e molda comportamentos.

Nesse contexto, a responsabilidade não pode ser terceirizada exclusivamente a “usuários extremistas”. Plataformas têm papel central na criação desse ecossistema tóxico. A moderação frouxa, a aplicação desigual de regras e a dificuldade deliberada em definir discurso de ódio quando ele se apresenta sob camadas de ironia ou linguagem política contribuem para a perpetuação do problema. A lógica do lucro entra em choque direto com a proteção de direitos fundamentais.

Governos democráticos também enfrentam um dilema real: como regular o ambiente digital sem comprometer a liberdade de expressão? A resposta não está em censura ampla, mas em critérios claros, transparência algorítmica, responsabilização proporcional e políticas públicas que reconheçam que o espaço digital é hoje um espaço político central.

‘É preciso recuperar algo que parece ter se perdido: a capacidade de distinguir crítica política de ódio identitário; discordância legítima de desumanização; engajamento cívico de mobilização violenta’

Mas nenhuma resposta institucional será suficiente sem uma dimensão cultural e educacional. É preciso recuperar algo que parece ter se perdido: a capacidade de distinguir crítica política de ódio identitário; discordância legítima de desumanização; engajamento cívico de mobilização violenta. Isso exige educação midiática, alfabetização digital e liderança política disposta a estabelecer limites morais claros, inclusive quando isso custa capital político.

O crescimento simultâneo do antissemitismo e da islamofobia não é uma coincidência. Ambos se alimentam da mesma lógica: a redução do outro a uma ameaça essencial, incompatível com a sociedade. Combatê-los exige reconhecer que o problema não está apenas nos extremos, mas na tolerância crescente ao intolerável, especialmente quando ele se apresenta em linguagem “politizada”, viral e emocionalmente eficaz.

‘Se o século XXI será marcado pela reconstrução de sociedades plurais ou pela consolidação de identidades em guerra permanente, passa, em grande medida, pelo que estamos dispostos a aceitar, e a rejeitar, no espaço digital’

Se o século XXI será marcado pela reconstrução de sociedades plurais ou pela consolidação de identidades em guerra permanente, passa, em grande medida, pelo que estamos dispostos a aceitar, e a rejeitar, no espaço digital. O ódio em rede não é inevitável. Mas combatê-lo exige coragem política, responsabilidade institucional e um compromisso coletivo com os limites da convivência democrática.

Finalmente, a resposta civilizacional ao ódio deve ser firme: celebrar a diversidade, condenar a violência e reafirmar que nenhuma fé ou identidade pode ser alvo de hostilidade por quem quer que seja. A tragédia de Bondi Beach não deve ser apenas mais uma manchete chocante: ela deve ser um catalisador para ações concretas, legislativas, educativas e culturais, que impeçam o retorno ao espírito destrutivo do sectarismo e do preconceito.

Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Violência 🞌

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