09 setembro 2024

O que está por trás da aposta de Elon Musk no tensionamento com a Justiça brasileira

Musk transformou a rede social em um aparato político-comunicativo a favor tanto dos interesses comerciais pragmáticos de suas empresas como de seus delírios políticos pessoais

Uso de redes sociais em telefones smartphone (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Por Beto Vasques*

Após meses de reiteradas agressões e desrespeito a decisões judiciais, o excêntrico magnata sul-africano Elon Musk acordou no dia 31 de agosto com sua plataforma X indisponível para as dezenas de milhões de usuários no Brasil.

O fechamento do X é consequência de uma determinação do magistrado do Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF) Alexandre de Moraes pelo desrespeito sistemático da plataforma às suas decisões. No entanto, não se trata de um episódio pontual ou de uma resolução extemporânea de Moraes. Foi o corolário da escalada de insubordinação de Musk contra as decisões da Justiça brasileira e de seus ataques a Moraes.

Com a compra do X, em 2022, vimos como Musk transformou a rede social em um aparato político-comunicativo a favor tanto dos interesses comerciais pragmáticos de suas empresas como de seus delírios políticos pessoais. A empresa fechou seu capital e afastou anunciantes privados por desrespeitar padrões mínimos de transparência do mercado publicitário.

Ao mesmo tempo, Musk colecionou desavenças com autoridades em todo o mundo. A União Europeia (UE) investiga o bilionário por descumprimento de sua legislação e pode multar o X em 6% de sua receita global.

Na Austrália, sob a interferência direta de Musk, a plataforma se recusou a remover um vídeo que viralizou no país no qual um bispo sofre tentativa de assassinato. Isso levou o primeiro-ministro australiano Anthony Albanese a chamá-lo de “milionário arrogante que se acha acima da lei”.

No Reino Unido, o magnata incitou manifestações anti-imigração, afirmando que “uma guerra civil era inevitável”, o que lhe rendeu críticas públicas do primeiro-ministro britânico. Na última semana, foi a vez de as autoridades francesas entrarem na mira de um Musk indignado com a detenção do dono do Telegram, afirmando que a partir de agora só viajará para países cuja “liberdade de expressão seja constitucionalmente protegida”.

Nessa cruzada pautada por uma peculiar interpretação sobre “liberdade de expressão”, o sul-africano escolheu Alexandre de Moraes como inimigo número um. São meses de ataques nas redes sociais contra o ministro do STF e descumprimentos legais. Moraes, de perfil conservador, tornou-se famoso por liderar os esforços da Justiça contra as tentativas repetidas do ex-presidente Jair Bolsonaro de desacreditar o sistema de votação brasileiro durante a eleição de 2022, enquanto era presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O magistrado também concentrou as investigações contra o “gabinete do ódio”, como foram denominadas as milícias digitais que atentaram, a partir do entorno do Palácio do Planalto, contra os marcos democráticos do país, durante todo o governo Bolsonaro.

Por fim, é Moraes quem está à frente dos processos contra os que tentaram o golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, que conta com mais de mil investigados, algumas dezenas de condenados a penas de mais de 15 anos e que agora se aproxima dos mandantes da intentona golpista, cujas provas apontam Bolsonaro e seu círculo mais íntimo como principais responsáveis. Por liderar essas ações, Moraes é hoje o personagem mais odiado por toda a extrema direita nativa.

Acirramento

Nos próximos dias, o confronto deve se intensificar ainda mais por causa da convocação de manifestações na Avenida Paulista para celebrar o 7 de setembro, Dia da Independência, que durante o governo Bolsonaro foi elevado a data nacional da extrema direita “patriótica”.

Um dos principais lemas da convocatória da extrema direita é justamente o impeachment de Moraes, sob o argumento de que o mesmo estaria instalando uma “ditadura da toga”, um “regime de exceção e censura” e “contra a liberdade de expressão” no Brasil.

Nessa celebração, há três anos, Bolsonaro já havia feito ofensas públicas a Moraes, dizendo que não respeitaria mais suas decisões. Alguns dias depois, o ex-presidente voltou atrás, contando com o ex-presidente Michel Temer, responsável pela indicação de Moraes ao Supremo, como intermediário de sua missiva de escusas ao magistrado.

Musk, que viu seus negócios no Brasil crescerem durante o governo Bolsonaro, entrou na briga e tornou-se herói da extrema direita pátria, recebendo dezenas de manifestações de deputados e senadores bolsonaristas nas redes sociais, agradecendo-lhe por denunciar a “falta de liberdade de expressão” no Brasil e os “arbítrios de Moraes”.

A gota d’água foram as recentes negativas do X, sob orientação explícita de Musk, de bloquear as contas de alguns dos envolvidos nas investigações das milícias digitais e da tentativa de golpe de Estado. Por exemplo, as contas da filha do influenciador digital e sicário de reputações Oswaldo Eustáquio, prófugo da Justiça brasileira escondido na Espanha.

Ele, que já foi condenado e esteve encarcerado, aproveitou-se de seu regime de prisão domiciliar para fugir do país. Com processos abertos na Justiça brasileira, teve suas contas nas redes sociais bloqueadas. No entanto, não hesitou em usar as contas da filha de 16 anos para continuar incitando o ódio e ações contra o Estado de Direito no Brasil. Destaca-se também seu papel, junto a outros delinquentes virtuais, em expor os dados de um delegado da Polícia Federal nas redes, com único objetivo de difamar, incitar o ódio e a perseguição ao policial.

Hipocrisia seletiva

Apesar da entusiástica preocupação e defesa de Musk do que ele entende por liberdade de expressão no Brasil, França, Reino Unido e Austrália, isso contrasta fortemente com seu silêncio sepulcral quando se trata de questionar padrões democráticos na Arábia Saudita ou China, onde estão as fábricas e negócios da Tesla.

Sobre o banimento do X na China, jamais se escutou um pio de Musk a respeito. Chama a atenção também a sua obediência, tolerância e compreensão às leis na Turquia ou Índia. Sobre este último país, em recente entrevista à BBC, Musk afirmou desconhecer a exclusão de sua plataforma na Índia de um documentário da BBC onde ele fazia críticas a Narendra Modi, primeiro ministro daquele país. Ele ressaltou que “as leis da Índia são rígidas” e que “a rede X precisa respeitar as normas do país asiático”.

A hipocrisia de Musk é clara. Longe da defesa da liberdade de expressão, o magnata deixa evidente que a sua intenção com a aquisição do X foi transformá-lo em brinquedo privilegiado para coagir adversários, sejam eles governos progressistas, Estados democráticos ou concorrentes para os negócios de seu conglomerado global.

Complementarmente, Musk atua para facilitar os interesses políticos de seus aliados da extrema direita global. A rede X não se transformou apenas em um depósito de ódio e de várias formas de violência: misoginia, homofobia, xenofobia ou violência extrema. Ela se tornou um poderoso aparelho na definição da opinião pública, havendo muitas evidências de sua interferência em processos eleitorais ao redor do mundo, como denunciou o Centro de Monitoramento do Ódio Digital dos EUA. Apenas neste ano, a organização identificou milhões de acessos a conteúdos que seriam “prejudiciais ao equilíbrio eleitoral”.

Musk faz do X seu veículo comunicativo privado para impor os marcos geoeconômicos de seus negócios, alinhando-se geopoliticamente com líderes autocráticos. Nesse sentido, surge a pergunta: além do alinhamento com Bolsonaro e a extrema direita brasileira, quais são os reais interesses políticos e comerciais de Musk nesse conflito com a Justiça brasileira, levando-o a esticar a corda até o ponto de forçar o fechamento do X no Brasil?

Do ponto de vista político geral, há o risco iminente de o esforço empreendido por “Xandão” (apelido dado a Moraes pela extrema direita) contra os abusos da extrema direita nas redes sociais inspirar experiências em outros países. Isso iria dificultar as operações de Musk, aumentando os custos de vigilância e a responsabilidade jurídica das plataformas pelos conteúdos veiculados.

Caso as autoridades judiciais de outros países venham a seguir o “modelo Xandão”, Musk terá um triplo problema: mais custos de produção, mais riscos judiciais e menor capacidade de intoxicação do debate público para salvaguardar os interesses de seus aliados políticos autoritários.

Beneplácito de políticos autoritários

Algo semelhante vemos com os ataques de Musk às legislações para combater os abusos da extrema direita nas redes sociais,como o DSA e DMA, surgidas primeiramente na UE. E não é coincidência que Austrália e Reino Unido sejam outros alvos do sul-africano. São países que avançam em suas legislações para o universo digital.

O pesadelo de Musk é pensar que “Xandões” e “DSAs-DMAs” possam se multiplicar pelo mundo, reduzindo o poder de fogo do X. Por trás de Musk, contamos com o beneplácito e interesse de políticos autoritários, de empresários dessas mídias sociais e seus sequazes em veículos de imprensa e mídias digitais.

Do ponto de vista estritamente comercial, por trás do fechamento do X no Brasil, identificam-se dois pontos centrais. De um lado, estão os interesses da Starlink no Brasil, especialmente na Amazônia. A empresa de antenas de Musk tem uma grande cobertura na região, com repercussões geopolíticas evidentes. Por outro lado, há também os interesses da Tesla. Nesse caso, se cruzam a produção de lítio no gigante sul-americano e a aliança promovida pelo governo de Lula da Silva com a gigante chinesa BYD, concorrente imediata da Tesla. No meio está a guerra fria comercial entre os Estados Unidos e a China, em que Musk é um dos maiores interessados.

A briga apenas começou e nos próximos dias surgirão mais informações que lançarão luz sobre esse conflito. Enquanto isso, os brasileiros estão sem acesso ao X, mas sem sentir sua soberania degradada pelos interesses de um magnata excêntrico e extremista.


*Beto Vasques é diretor de relações institucionais do Instituto Democracia em Xeque e professor de comunicação política da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)

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Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

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