Opinião pública, preconceito racial e a receptividade de estrangeiros no Brasil
Artigo analisa a percepção de brasileiros sobre a chegada de imigrantes ao país e mostra que tanto dimensões culturais, relacionadas à origem e à cor da pele, quanto econômicas, que remetem à concorrência no mercado de trabalho, influenciavam a opinião sobre a vinda de estrangeiros para o país
Artigo analisa a percepção de brasileiros sobre a chegada de imigrantes ao país e mostra que tanto dimensões culturais, relacionadas à origem e à cor da pele, quanto econômicas, que remetem à concorrência no mercado de trabalho, influenciavam a opinião sobre a vinda de estrangeiros para o país
Por Pedro Santos Mundim e Cíntia Soares Rodrigues dos Santos*
No dia 24 de janeiro de 2022, o imigrante congolês Moïse Kabagambe, que veio para o Brasil como refugiado político em 2014, foi espancado até a morte na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. O fato teve repercussão nacional e gerou bastante indignação. Por ser um imigrante negro e africano, levantou-se a suspeita de que, entre as motivações para a sua morte, estariam tanto a sua cor da pele, quanto a sua origem. Além disso, é importante ressaltar que Moïse foi espancado por brasileiros que, ao menos na visão de alguns, viveriam num país sem racismo, ou numa “democracia racial”, dado o nosso processo histórico de construção da sociedade repleta de misturas de cores e culturas.
Coincidentemente, no mesmo mês de janeiro de 2022 havia terminado o processo, iniciado em junho de 2021, de submissão do artigo intitulado Preconceito racial ou competição econômica? A opinião pública sobre a vinda de estrangeiros para o Brasil, publicado recentemente na revista Colombia Internacional. Como o próprio título sugere, nosso objetivo foi analisar como brasileiros e brasileiras veem os diferentes tipos de estrangeiros que chegam ao país. Infelizmente, as conclusões a que chegamos sugerem que a morte de Moïse não seria, simplesmente, um fato aleatório e dissociado de valores como xenofobismo e, principalmente, racismo.
Existe uma imensa literatura internacional sobre opinião pública e imigração.[1] Afinal, diversos países europeus, além dos Estados Unidos, lidam há anos com a questão dos imigrantes e refugiados. As principais explicações sobre uma maior ou menor aceitação desses indivíduos nos Estados Unidos ou em países centrais europeus encontram-se, principalmente, em três fatores:
- político-culturais: imigrantes capazes de falar o idioma oficial do país, brancos, cristão e que se adaptam mais facilmente às culturais locais tendem a ser preferidos;
- econômicos: a rejeição a estrangeiros aumenta em momentos de crise econômica e imigrantes econômicos podem ser vistos como uma ameaça competitiva; e
- ideológicos: pessoas e governos de direita são menos receptivos aos imigrantes.
Para avaliar se tais fatores atuariam de maneira semelhante no Brasil, analisamos uma pesquisa de opinião pública encomendada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, feita em julho de 2015, que continha um bloco de perguntas sobre imigração. Nessa época, o país vinha recebendo uma grande quantidade de imigrantes haitianos, que começaram a se deslocar para diversas partes da América Latina após a destruição causada pelo grande terremoto que assolou o Haiti em 2010. Logo, deve-se ressaltar que o principal interesse do governo brasileiro era justamente captar a percepção das pessoas sobre esse movimento migratório.
Dado o contexto da pesquisa, os haitianos (22.9%) foram, naturalmente, a nacionalidade de estrangeiros mais mencionada pelos brasileiros, seguidos dos latinos (11.7%), asiáticos (13.1%), africanos (12.3%), europeus (5.3%), norte-americanos (3.1%) e outras nacionalidades (31.6%). Mas a nossa principal indagação era saber se características de origem e cor da pele, especialmente os de cor negra, teriam impacto sobre a receptividade dos imigrantes em terras tupiniquins. Afinal, dados da mesma pesquisa mostravam que a vinda de estrangeiros para morar no Brasil era algo positivo para 43%, mas negativo para 40% – outras respostas somaram 17%. Como a margem de erro da pesquisa era de ± 3%, os brasileiros estavam claramente divididos sobre essa questão.
As nossas análises mostraram que estrangeiros de origem haitiana e africana eram percebidos de maneira mais negativa pela opinião pública, o que não ocorria com os demais grupos de imigrantes.[2] De todos os grupos de estrangeiros, eles foram os únicos cuja vinda para o Brasil tinha maiores chances de ser vista de maneira negativa, ao contrário de positiva.
Uma outra forma de analisar tais resultados é descrevê-los em termos de probabilidades preditas, que podem ser lidas em termos percentuais. A vinda de estrangeiros de origem haitiana e africana tinha 17% de chances a mais de ser visto de maneira negativa. Existia, portanto, uma seletividade para a aceitação de cidadãos oriundos de países de população predominante negra.
Contudo, as nossas análises também mostraram que a economia era importante. Afinal, em julho de 2015 o Brasil estava passando por uma crise econômica que havia, inclusive, derrubado a popularidade da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), e as pesquisas sobre opinião pública e imigração já haviam demostrado que, em momentos de crise econômica, a receptividade aos estrangeiros era menor, principalmente para os imigrantes econômicos, ou seja, aqueles que vinham em busca de trabalho. Também foi perguntado o principal motivo pelo qual as pessoas eram contra a vinda de estrangeiros para o Brasil: 19% disseram ser contra porque os estrangeiros ocupavam “espaço no mercado de trabalho no Brasil”.
Nossas análises mostraram que os brasileiros que acreditavam que a vida havia melhorado nos últimos dez anos (37% da amostra) apresentaram uma opinião mais positiva do que negativa em relação à vinda de estrangeiros para o país.[3] Dito de outro modo, os brasileiros mais satisfeitos com a vida tinham cerca de 10% de chance a mais de expressar uma visão positiva da vinda de estrangeiros para o país. Ou seja, a dimensão econômica também se fazia presente nas considerações dos brasileiros e brasileiras sobre a vinda de estrangeiros para o Brasil.
No geral, o que encontramos foi um cenário mais complexo no qual tanto dimensões culturais, relacionadas à origem e à cor da pele, quanto econômicas, que remetem à concorrência no mercado de trabalho, influenciavam a opinião pública em relação à vinda de estrangeiros para o Brasil.
Isso faz todo o sentido, pois, ao falarmos de questões ou fenômenos sociais, a expectativa é que não haja uma causa que explique, sozinha e de maneira suficiente, um certo tipo de comportamento. Dito de outro modo, a rejeição aos imigrantes não ocorre apenas por preconceito racial, por exemplo, ou por medo de encontrar um competidor no mercado de trabalho. Contudo, e isso é importante frisar, podemos sugerir que um causa da rejeição à vinda de estrangeiros é mais forte, ou mais importante, ou mais presente, do que outra. E, no caso do nosso artigo, as evidências apontam de maneira mais consistente para o preconceito racial.
Defensores da democracia racial poderão dizer que a rejeição a haitianos ou africanos se deve não à cor da pele, mas ao fato de esses países serem vistos, no imaginário de muitos, como economicamente pobres. O problema, portanto, não seria cultural ou estrutural, mas de renda. Mas, neste caso, não deveríamos ter encontrado uma menor receptividade em relação aos imigrantes da América Latina? O problema é que nossas análises não mostraram isso, o que dá robustez ao argumento do preconceito racial e de origem, cujo mecanismo causal encontra-se na cor da pele dos imigrantes.
Outro ponto importante a se ressaltar em relação ao imaginário popular brasileiro é a ideia de que o Brasil é um país receptivo aos estrangeiros. Mas o fato de sermos um país miscigenado e que convive com diversas culturas não implica, necessariamente, em uma ausência de preferências por determinados tipos de imigrantes.
No artigo, apresentamos análises históricas para demonstrar que houve, sim:
- uma hierarquia e classificação das nacionalidades preferidas e aceitas no país; a presença de pensamento eugenista entre as elites políticas brasileiras nos séculos XIV e XX;
- a adoção de políticas de imigração que buscaram privilegiar povos europeus a virem para o país;
- e uma política institucional de branqueamento racial.
A questão era o quanto tudo isso se refletiria, ainda hoje, na opinião pública. O que nossa análise mostrou foi que, ao menos para uma parte dos brasileiros, origem e cor da pele importam.
Voltamos ao caso Moïse Kabagambe, discutido no início deste artigo. Ele teria sofrido o mesmo tipo de violência caso fosse um imigrante branco e europeu, por exemplo, ao contrário de negro e africano? Claro, essa é uma pergunta que pode especulativa. Contudo, também pode ser vista como uma consideração contrafactual. Nesse sentido, arriscaríamos a dizer que caso Moïse fosse branco e europeu, as chances de ele sofrer o mesmo tipo de violência seriam menores. Ou seja, não excluímos a possibilidade da ocorrência, mas apenas diminuímos a probabilidade de ela acontecer. Dado o contexto da discussão apresenta no artigo “Preconceito racial ou competição econômica?”, cujos principais pontos foram levantados aqui, que essa é uma consideração legítima, ainda que bastante incômoda.
*Pedro Santos Mundim é professor associado de ciência política na Universidade Federal de Goiás. Entre 2014 e 2015, foi Assessor Especial do Gabinete e Diretor da Assessoria de Opinião Pública da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República do Brasil
Cíntia Soares Rodrigues dos Santos é bacharela em relações internacionais, mestra em ciência política pela Universidade Federal de Goiás e doutoranda em história, política e bens culturais da Fundação Getúlio Vargas.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
[1] Uma parte dessa literatura encontra-se descrita e referenciada no próprio artigo.
[2] Questões técnicas sobre como as variáveis do banco de dados foram trabalhadas, além das técnicas estatísticas utilizadas para analisá-las, encontram-se descritas no próprio artigo.
[3] Sabemos que essa não era uma medida ideal para medir a percepção da economia entre os brasileiros, mas era a pergunta do questionário que mais se aproximava de uma variável econômica.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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