Vidas Paralelas – Rubens Ricupero e Celso Lafer nas relações internacionais do Brasil
Trajetórias dos dois personagens fundamentais da política externa brasileira são o foco de livro sobre sua marca indelével no cenário cultural e intelectual do país. Para diplomata, os dois contribuíram para a imagem e o papel que o Brasil conseguiu forjar para si no cenário mundial
O embaixador Rubens Ricupero e o ex-chanceler Celso Lafer são duas das personalidades mais conhecidas e respeitadas no panorama cultural e no cenário brasileiro de conhecimento, produção e atuação nas relações internacionais do Brasil. Eles apresentam certa similaridade de pensamento e de realizações, segundo trajetórias que se cruzaram, que se entrelaçaram e que se uniram num mesmo propósito: elevar o status do Brasil no mundo, melhorar a cultura da nação, a política do país, a vida diária dos brasileiros e dos imigrantes que para aqui vieram e que aqui construíram uma sociedade vibrante, diversificada, como foram, aliás, os seus bisavôs, chegados ao Brasil no final do século XIX, e que aqui empreenderam uma vida de trabalho e de construção do próprio país.
Eles possuem muitas “afinidades eletivas”, construídas tanto no labor acadêmico, quanto no trabalho diplomático, assim como exibem dois percursos paralelos, merecendo, portanto, apresentação e avaliação conjunta, o que pode ser feito por meio de um percurso bibliográfico e de um relato mais ou menos linear sobre seus desempenhos notáveis na vida pública e nas relações exteriores do Brasil.
Mais exatamente: pode-se abordar a produção literária e as atividades públicas de Rubens Ricupero e de Celso Lafer pela via de uma história intelectual, capaz de segui-los no desempenho de suas funções respectivas, como professores e como diplomatas, assim como pelo relato da contribuição de ambos para as relações internacionais do Brasil, tanto no plano da produção intelectual propriamente dita, quando no terreno das atividades públicas nas quais estiveram engajados, como pensadores, como tribunos de ideias e propositores de políticas, como burocratas de alto escalão, no campo da política externa e da diplomacia.
O volume total da produção de cada um deles é absolutamente assustador, não apenas pela variedade das abordagens nas diversas vertentes de que se ocuparam, mas também pela qualidade do que escreveram ou disseram. Muitos dos atuais diplomatas, assim como grande parte dos pesquisadores e professores da área de relações internacionais se beneficiaram da produção publicada pelos dois ao longo das últimas quatro ou cinco décadas, ou se inspiraram nos exemplos que ambos prodigaram em suas atividades práticas nos encargos que assumiram nos últimos sessenta anos da vida nacional.
As trajetórias de vida de Rubens Ricupero e de Celso Lafer evidenciam uma motivação comum, profundamente engajada no estudo dos problemas internacionais do Brasil, desde os primeiros trabalhos conhecidos, e uma constância nesse tipo de produção – em direitos humanos, na história diplomática, nas relações econômicas internacionais, na integração, no direito internacional – que resulta, em sua essência e centralidade analítica, numa grande coerência e honestidade intelectual.
Ambas as trajetórias podem ser vistas sob o conceito de “vidas paralelas”. Elas o são a mais de um título, independentemente da diferença de origens sociais, que marcaram as primeiras fases da vida acadêmica e profissional de cada um deles. A partir de certo momento, as paralelas se cruzaram, se imbricaram e não mais se desligaram, nem se desfizeram.
O que há de peculiar, ou de exclusivo, a cada um? O que os distingue entre si, e o que os une, fundamentalmente? Cada um, separadamente, mereceria várias biografias, suas obras publicadas oferecem matérias para dezenas de dissertações, muitas teses de doutorado, centenas de artigos analíticos, mas não parece existir, até aqui, um estudo conjunto, sobre esses dois amigos de coração, duas almas gêmeas na vocação de servir o Brasil em sua vertente internacional.
Foi o que eu decidi fazer, e o que agora estou concluindo, depois de um ano inteiro de leituras, anotações, visitas a bibliotecas, intercâmbio de mensagens e algumas conversas com os dois, sob o formato de um livro, dotado dessa perspectiva unificadora das Vidas Paralelas.
Algum motivo especial para esta iniciativa agregadora de caráter intelectual? O que une, essencialmente, Ricupero e Lafer? O que deu origem e o que, de certa forma, legitima e justifica este meu empreendimento, de estudar a trajetória de ambos? Uma mesma origem na imigração, ainda que diferente em suas raízes, uma trajetória similar de construção de vida pelo trabalho, o mesmo esforço nos estudos, uma absoluta identidade de propósitos quanto a objetivos maiores.
Origens divergentes, no passado, mas lançadas no cadinho convergente dos grandes fluxos imigratórios no Brasil do final do século XIX e do início do século XX; trajetórias não exatamente paralelas na juventude de estudos, mas confluindo no mesmo universo do direito, das humanidades, do interesse comum por assuntos internacionais na primeira fase da vida madura.
Dois meios sociais diferentes, tradições familiares separadas, mas alguns traços similares entre eles, o que me motivou a juntá-los nesse paralelismo de realizações, no campo das reflexões sobre as relações internacionais do Brasil e no terreno prático das atividades diplomáticas. Provavelmente também uma identificação pessoal com a trajetória e o trabalho acumulado ao longo de várias décadas de estudos, de escritos, de propósitos.
Mais do que as reflexões e escritos, ou o desempenho de cada um a serviço da diplomacia brasileira, o que os une, basicamente, são dois elementos intangíveis, que foi o que me lançou na concepção desta obra de história intelectual: cultura e inteligência. Independentemente de todos os artigos, ensaios, livros e entrevistas – dezenas de quilos de material impresso, de cada um dos lados – e do ativismo exemplar nas relações internacionais do Brasil, no exercício prático de sua diplomacia, o que distingue, mais do que qualquer outra coisa, os dois personagens, por mim escolhidos para uma espécie de bisturi analítico sobre seus escritos e realizações, foi justamente estes traços do caráter de cada um, em relação aos quais eu tenho profunda devoção, um duplo Graal sempre perseguido: cultura e inteligência.
Quando apresentei a eles, em julho de 2023, o meu projeto de elaborar uma história intelectual comum, o próprio Ricupero me escreveu estas palavras, a respeito dos paralelismos entre ambos:
‘Um aspecto óbvio é que, apesar das diferenças, Celso e eu pertencemos a uma mesma família de orientação política e filosófica: somos ambos liberais com consciência social. Embora com muito menor base filosófica, admiro as mesmas personalidades que Celso: Isaiah Berlin, Norberto Bobbio, Hannah Arendt, Raymond Aron. Tanto na política interna brasileira como em relação à política externa, a real e a ideal, não creio que existam entre nós diferenças fortes…’
O resultado, portanto, foi um livro de história intelectual, no sentido mais direto da expressão. Ele trata de duas personalidades influentes no pensamento e na atuação prática das relações internacionais do Brasil. Eles são influentes pelas obras produzidas, pelas ideias defendidas, pelas ações conduzidas em diferentes vertentes de suas respectivas vidas: como professores, pensadores e autores de obras relevantes num vasto leque das ciências sociais e humanas, como ativistas civis e propositores de medidas para a condução política do país, em especial na vertente externa, bem como, last but not the least, como decisores setoriais quando assumiram responsabilidade por cargos de relevo em governos do passado: ambos como ministros de Estado, Celso Lafer duas vezes na chefia do Itamaraty (1992 e 2001-2002), Ricupero como ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, logo em seguida como ministro da Fazenda no lançamento do Plano Real.
Os dois personagens destas Vidas Paralelas deixam uma marca indelével no cenário cultural e intelectual do Brasil, o que emerge naturalmente a partir de seus respectivos desempenhos no plano da elaboração e transmissão de ideias, da produção de conhecimento nos campos da ciência política, da história, do direito, das relações internacionais, entre várias outras das humanidades e das ciências sociais. Eles também contribuíram, com o melhor de cada um deles, no universo geral da cultura, e no mais especializado da diplomacia, para a imagem e o papel que o Brasil conseguiu forjar para si no cenário mundial, ambiente no qual atuaram, de forma muito intensa, juntos ou separadamente, e no qual eles constituem, justamente, dois dos mais distinguidos representantes da inteligência nacional.
Sumário da obra Vidas Paralelas, em publicação
Obras relevantes:
Celso Lafer:
– Relações internacionais, política externa e diplomacia brasileira: pensamento e ação. Brasília: Funag, 2018, 2 vols.
– Hannah Arendt: Pensamento, persuasão e poder. 3ª ed.; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.
– Um percurso no Direito do Século XXI. São Paulo: Atlas, 2015, 3 vols.
– Norberto Bobbio: trajetória e obra. São Paulo: Perspectiva, 2013.
– A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. Barueri, SP: Manole, 2005.
– A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira: passado, presente e futuro. 2a. ed., revista e ampliada; São Paulo: Perspectiva, 2004.
– Comércio, desarmamento, direitos humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
– A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
– Política externa brasileira: três momentos. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 1993.
– A reconstrução dos direitos humanos, um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
– O Brasil e a crise mundial: paz, poder e política externa. São Paulo: Perspectiva, 1984.
– Paradoxos e possibilidades: Estudos sobre a Ordem Mundial e sobre a Política Exterior do Brasil num Sistema Internacional em Transformação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
Rubens Ricupero:
– A Diplomacia na Construção da Nação, 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal, 2017.
– “O Brasil no mundo”, In: Costa e Silva, Alberto (org.). Crise Colonial e Independência, 1808-1830. Madri-Rio de Janeiro: Fundación Mapfre-Objetiva, 2011, p. 115-159.
– “A inserção do Brasil no mundo”, in: Botelho, André; Schwarcz, Lilia Moritz (orgs.). Agenda Brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 458-469.
– Diário de Bordo: a viagem presidencial de Tancredo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.
– Esperança e Ação: a ONU e a busca de desenvolvimento mais justo. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
– O Brasil e o dilema da globalização. 2ª ed.; São Paulo: Senac-SP, 2001.
– Rio Branco: o Brasil no Mundo. Rio de Janeiro. Ed. Contraponto, 2000.
– O ponto ótimo da crise. Rio de Janeiro: Revan, 1998.
– Visões do Brasil: ensaios sobre a história e a inserção internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1995.
– “A diplomacia do desenvolvimento”. In: Pereira de Araujo, João Hermes; Azambuja, Marcos; Ricupero, Rubens. Três Ensaios sobre diplomacia brasileira. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1989, p. 193-209.
– A Abertura dos Portos. São Paulo: Senac-SP, 2007 (co-organização com Luis Valente de Oliveira).
– Rio Branco”, in: João Hermes Pereira de Araujo. José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco: Uma Biografia Fotográfica,1845-1995. Brasília: Funag, 1995.
Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com
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