Por uma geografia moral das notícias falsas – visões brasileiras da Escandinávia
Parte da direita latino-americana utiliza países escandinavos como referências morais que, ao serem retratadas de forma distorcida, servem para justificar políticas regressivas, ataques ao Estado de bem-estar e retórica moralista, lançando mão de uma legitimação com base na “cultura”, como símbolo de branquitude e “civilização” — ao custo da complexidade dos contextos locais

Nove anos atrás, comecei um doutorado de dupla titulação em relações internacionais entre a USP e o King’s College London com base nesta última universidade. Como muitas vezes acontece na universidade e em outras instituições de ensino, grande parte do aprendizado se dá com os outros alunos que, oriundos de culturas e geografias distintas, trazem perspectivas sobre o mundo que enriquecem conversas, debates e eventualmente artigos como o presente caso.
Sendo Dinamarquês e tendo morado durante anos no Brasil, já sabia que os países escandinavos durante anos foram exaltados como modelos de sucesso em políticas sociais. Seus sistemas de bem-estar, altos níveis de igualdade e desenvolvimento humano são frequentemente usados para argumentar que políticas social-democratas são não apenas possíveis, mas eficazes no mundo contemporâneo.
‘A idealização de uma suposta “cultura” mais “civilizada” da Dinamarca ignora a história de países coloniais comerciantes de escravos e lugar de lutas por direitos’
No entanto sei que esta moeda tem seu inverso na idealização de uma suposta “cultura” que seria mais “civilizada” e moralmente evoluída, ideal este que, além do racismo, ignora a história da Dinamarca e outros países da região, como países coloniais comerciantes de escravos e lugar de lutas – às vezes violentas – por direitos sociais e democracia.
A relevância política (e político-partidária) desta geografia moral mostrou-se nitidamente para mim quando uma colega mexicana me perguntou sobre uma notícia circulando online nas redes sociais do México, Argentina e Brasil. Assim, minha colega tinha visto, com alguma incredulidade, que na Dinamarca quem recebe benefícios sociais não pode votar, sendo tal factoide usado como base para apelar a implementar a mesma política no México. Eu, com um certo choque, neguei esta notícia e política (brutal e injusta na minha visão), tendo já recebido benefícios sociais de vários tipos, e votado mesmo assim (até porque minha mãe não deixa de me obrigar a seguir sempre este rito da cidadania).
No entanto, como muitas vezes se dá, a surpresa e o choque de uma ideia estranha e desconhecida despertou minha curiosidade, e comecei a ir atrás da origem desta notícia falsa, e como se espalhou na América Latina atual.
‘A Escandinávia tem sido usada de forma distorcida em narrativas políticas no Brasil e em outros países latino-americanos marcados por uma forte ressurgência de uma política de direita’
Assim, neste artigo vou descartar uma análise da viabilidade ou justiça de políticas sociais, e ao invés disso, lançar mão de uma exploração de como a Escandinávia — especialmente Dinamarca e Suécia — tem sido usada de forma distorcida em narrativas políticas no Brasil e em outros países latino-americanos marcados por uma forte ressurgência de uma política de direita que tende a rejeitar políticas sociais igualitárias e o Estado como um instrumento de justiça social.
Neste contexto vejo que as sociedades escandinavas estão sendo apropriadas como instrumentos retóricos por parte da direita — não para promover políticas progressistas ou distribuição de renda, mas para espalhar desinformação e legitimar projetos autoritários que perpetuam a violenta desigualdade que está na base de grande parte dos problemas do Brasil atual e histórico, particularmente a instabilidade política. A qual se dá em parte com a mobilização das classes médias contra políticas sociais e perda de privilégios, inclusive notadamente através de fake news espalhadas com financiamento das classes abastecidas tanto recentemente nos atos de 8 de janeiro, como historicamente, no golpe de 1964.
A análise se baseia em dois estudos de caso de fake news que circularam amplamente, mobilizando imaginários morais e distorcendo dados para justificar ataques ao Estado de bem-estar social, aos direitos sociais e às instituições democráticas, sendo o primeiro exemplo o citado acima e o segundo sobre o salário mínimo.
‘Essa questão é particularmente relevante, pois diz respeito à forma como determinados espaços são mobilizados simbolicamente para reforçar noções de ordem, civilidade e branquitude’
Como pesquisador da Dinamarca, essa questão é particularmente relevante, pois diz respeito não apenas à manipulação de informações, mas também à forma como determinados espaços — sobretudo os do Norte Global — são mobilizados simbolicamente para reforçar noções de ordem, civilidade e branquitude em contextos políticos marcados por desigualdades sociais e raciais profundas.
Assim sugiro que podemos entender o alcance destas notícias de origem obscura, através de dois conceitos: geografias e pânicos morais.
Pânico moral como estratégia política
Segundo Stanley Cohen, pânicos morais ocorrem quando uma condição, episódio ou grupo de pessoas é definido como uma ameaça aos valores e interesses de uma sociedade.
A direita latino-americana tem recorrido sistematicamente a esse tipo de mobilização afetiva para atacar o “comunismo”, a “corrupção”, e os direitos LGBTQIA+.
Com o advento das redes sociais, o poder de disseminação dessas narrativas foi exponencialmente ampliado, como evidenciado nas eleições brasileiras de 2016 e 2020. Tais discursos, lançavam mão nitidamente de geografias morais na definição de Shapiro, ou seja, “um conjunto de afirmações éticas silenciosas que pré-organizam discursos ético-políticos explícitos” sendo particularmente organizadas em torno de uma visão espacial do mundo que identifica a corrupção no congresso, na esquerda ou na “cultura brasileira”, sendo que a corrupção notavelmente envolve uma relação, seja entre esquerda e direita, políticos e empresariado, judiciário e políticos entre muitos outros.
‘Estreitamente ligados à chamada pauta “moral” ou “de costumes”, esses pânicos morais também se voltam contra as políticas sociais’
Estreitamente ligados à chamada pauta “moral” ou “de costumes”, esses pânicos morais também se voltam contra as políticas sociais. No centro dessa retórica está a ideia de que a assistência estatal cria dependência, promove preguiça e incentiva o crime e o uso de drogas — sobretudo entre grupos racializados.
A Escandinávia, então, passa a ser instrumentalizada como o exemplo “civilizado” a ser seguido — mesmo que os dados e contextos, econômicos, políticos e sociais dessas sociedades sejam ignorados ou distorcidos.
O voto dos beneficiários de programas sociais na Dinamarca
Em 2023, viralizou no México, no Brasil e na Argentina a notícia mencionada acima alegando que, na Dinamarca, pessoas que recebem benefícios do governo perdem o direito de votar. A informação foi desmentida pela Embaixada da Dinamarca e por plataformas notícias e de checagem de fatos como o site argentino Chequeado e o brasileiro UOL.
Essa fake news tem raízes históricas – de fato, entre 1849 e 1961, pessoas que dependiam da assistência pública na Dinamarca podiam perder certos direitos civis. No entanto, reformas sociais profundas, começadas em 1933 e finalizadas em 1961, aboliram tais restrições.
‘Uma estratégia comum de notícias falsas é ignorar o contexto social, institucional, histórico, e político para promover uma narrativa moralista, culturalista e racista’
O uso dessa história fora de contexto ilustra uma estratégia comum de notícias falsas: ignorar o contexto social, institucional, histórico, e político para promover uma narrativa moralista, culturalista e racista onde o “cidadão produtivo” do Norte é contrastado com o “parasita social” do Sul Global.
É importante mencionar também que ignora a extrema violência desta política dinamarquesa para a população indigente que incluía não somente a perda de direitos políticos mas civis também, sendo que recipientes de assistência social poderiam ser forçados a entrar em casas de pobres, pouco diferentes de prisões, e com várias restrições em todas as esferas.
O Instituto Von Mises Brasil e o salário mínimo dinamarquês
Outro exemplo vem do Instituto Von Mises Brasil (IVMB), um “think tank” de direita. O mesmo publicou um texto sobre a relação entre a classe “parasítica” e “empreendedora”, visando argumentar que esta seria mais justa dando mais liberdade e flexibilidade econômica para os “empreendedores”.
Além da linguagem de cunho moralista e desumanizante, o texto alega primeiro que a Dinamarca não possui salário mínimo, sendo tal factoide usado para criticar o salário mínimo brasileiro e defender que ele representa uma barreira à liberdade econômica e de empreendimento.
No entanto, o factoide ignora o contexto político, social, econômico e institucional, qual seja que a Dinamarca possui um sistema tripartite no qual sindicatos, empregadores e o Estado negociam salários coletivos mínimos, que funcionam, na prática e diante a lei, como um piso salarial.
‘O modelo dinamarquês só é possível devido ao alto grau de organização sindical e igualdade socioeconômica, fornecendo as condições mínimas de uma negociação justa— condições ausentes no Brasil, onde o Estado e os partidos políticos estão fortemente comprometidos com o grande empresariado’
Crucialmente, esse modelo só é possível devido ao alto grau de organização sindical e igualdade socioeconômica, fornecendo as condições mínimas de uma negociação justa— condições ausentes no Brasil, onde o Estado e os partidos políticos estão fortemente comprometidos com o grande empresariado, que usa seu poder econômico para corromper o processo político, instrumentalizando o Estado para servir seus interesses, inclusive com uso da violência física contra a classe trabalhadora, o que inviabiliza a transposição direta desse modelo. Ou seja, o argumento ignora fatos contextuais fundamentais da realidade local – dinamarquesa e brasileira – para fazer um argumento que lança mão de um imaginário moral para se legitimar.
No mais, deixando novamente de fora o contexto, o artigo argumenta que quem é demitido não tem direito a indenização, um fato por si só legalmente fatual, mas cuja viabilidade social e econômica se baseia na forte rede de proteção social que recebe quem é demitido, e mesmo quem decide se demitir para procurar outro emprego, sendo esta rede paga pelos altos impostos. É este fato que dá, na realidade, ao sistema dinamarquês um alto grau de flexibilidade tanto para empreendedores quanto para trabalhadores.
Conclusão: A Escandinávia como geografia moral para alimentar pânicos morais.
Qual conclusão podemos tirar dos exemplos citados acima para melhor entender como as notícias falsas são produzidas e espalhadas?
Para concluir e propor uma linha de pesquisa no tema, termino apontando que parte da direita latino-americana utiliza países escandinavos como referências morais que, ao serem retratadas de forma distorcida, servem para justificar, de forma algo contraditória, políticas regressivas, ataques ao Estado de bem-estar e retórica moralista, lançando mão de uma legitimação com base na “cultura”, como símbolo de branquitude e “civilização” — ao custo da complexidade dos contextos locais.
‘A circulação de informações é instantânea, mas ainda assim filtrada por imaginários históricos profundamente enraizados em ideias coloniais sobre branquitude, progresso e subdesenvolvimento’
Esse fenômeno contribui para nossa compreensão das geografias morais em um mundo interconectado e hipermoderno, onde a circulação de informações é instantânea, mas ainda assim filtrada por imaginários históricos profundamente enraizados em ideias coloniais sobre branquitude, progresso e subdesenvolvimento.
A Europa — e especialmente a Escandinávia — permanece como um horizonte moral idealizado por setores das elites e classes médias latino-americanas, servindo como parâmetro de comparação seletiva para justificar agendas conservadoras, violentas e antidemocráticas.
Além de combater fake news, é fundamental entender o imaginário culturalista e moralista que sustenta esse uso seletivo de outras realidades. Só assim será possível defender uma democracia informada, crítica, plural e que leve em conta a história, cultura e sociedade brasileira.
Christoffer Guldberg é professor e doutor pelo King's College London e pela USP, com uma tese sobre violência e resistência policial no Brasil.
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