Presidência do Brasil no G20 enxugou o gelo de uma ordem mundial em derretimento
Qualquer país com o mesmo status que o Brasil desfruta no sistema internacional sofreria as mesmas limitações numa era em que grandes potências, que possuem poderio econômico-militar, pensam acima de tudo em si
Por Vinícius Rodrigues Vieira*
Enxugar gelo: numa metáfora simples, é assim que se pode resumir o papel do Brasil na liderança do G20, que reúne os mercados nacionais mais relevantes do mundo, além da União Europeia (UE) e União Africana.
Não se trata, porém, do resultado de erros da diplomacia brasileira sob o atual governo. Qualquer país com o mesmo status que o Brasil desfruta no sistema internacional — uma potência média, com certa influência regional, mas sem presença em escala global — sofreria as mesmas limitações numa era em que grandes potências, que possuem poderio econômico-militar, pensam acima de tudo em si.
Todos “First”
Não estamos apenas no mundo do America First, disponível a partir de 2025 em versão reloaded e com aditivos sob a direção de Donald Trump. China First, Russia First, UE First: cada um olha para o próprio umbigo em vez de tentarem estabelecer o mínimo de coordenação entre si em temas como aquecimento global, comércio e segurança internacional. Não reside, infelizmente, sobre os ombros de potências médias a capacidade de sentar-se à mais nobre das relações internacionais para falar grosso com o restante do mundo.
Ainda assim, potências regionais podem, sim, influenciar elementos pontuais das relações entre países e, portanto, da ordem global. Comparado à presidência da Índia no G20 no ano anterior, Brasil apresenta avanços notórios em questões sociais, pois colocou em pauta a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, o que está em linha com a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 1 (erradicação da pobreza) e 2 (fome zero e agricultura sustentável).
Sob comando brasileiro, também ganhou ainda mais prioridade o debate sobre combate a mudanças climáticas, com ênfase na otimização dos fundos voltados para esse desafio global, dos quais ganha destaque a ideia a ser apresentada no Rio de Janeiro de formar um fundo para combater a disseminação de desinformação no setor.
Esses pontos contrastam com a falta de avanço nos debates acerca das mais que necessárias reformas da governança global. Justamente neste ponto é que reside o maior alerta para o Brasil e demais membros do G20 que não são grandes potências: lembrando Garrincha na Copa de 1958, pode-se dizer que falta combinar uma vitória com os russos — e os americanos, chineses e europeus.
Com o retorno de Trump à Casa Branca, Moscou em guerra contra a Ucrânia e Pequim às voltas com problemas econômicos internos, apenas a UE — pelo menos enquanto não for capturada por forças de ultradireita — tende a demonstrar o mínimo de boa vontade para aderir a uma agenda de ações globais.
Nacionalismos obscurecem aliança global
Isso se não houver ainda mais mudanças nos interesses das grandes potências em função das ações de Trump 2.0. Por exemplo, numa era de crescente nacionalismo, qual a razão para se apoiar uma aliança global para combater a fome e a pobreza se os países buscam soluções unilaterais ou bilaterais, fazendo parcerias com aliados regionais ou com os quais há maior afinidade ideológica?
A China, que pela dimensão econômica poderia ocupar o vazio deixado pelos Estados Unidos no multilateralismo, tampouco demonstra interesse em exercer o papel de articular a provisão de bens públicos globais. A UE e outros atores políticos europeus, notadamente o Reino Unido, terão de destinar mais recursos para sua própria segurança.
Isso porque Trump já demonstrou ser favorável a um entendimento com a Rússia na guerra contra a Ucrânia — o que pode encorajar Vladimir Putin a reivindicar mais territórios no Leste Europeu — e procura reduzir os compromissos americanos no âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), pressionando, assim, os europeus a colocar mais dinheiro em despesas militares.
Legado superficial no clima
Na questão climático-ambiental, qualquer que seja o legado brasileiro no G20, o risco de superficialidade é ainda maior — novamente por causa de mudanças à vista na configuração do jogo de poder entre as grandes potências e os interesses de outros membros do bloco. Por exemplo, é certo que Trump vai novamente retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris, o que deve anular qualquer efeito da parceria sobre transição energética que Lula vai assinar com Joe Biden durante a reunião do G20.
Ademais, a Índia — que flerta com o status de grande potência por ter armas nucleares e crescimento econômico robusto nos últimos anos — depende essencialmente de combustíveis fósseis e não dá o menor sinal de deixar isso de lado. Raciocínio idêntico se aplica a outras potências regionais do G20, como a Indonésia e o México.
Assim, salvo um milagre, a presidência brasileira do G20 — alardeada como instrumento para demonstrar a capacidade de o Brasil ter um papel ativo na reformulação da ordem global no século 21 — deve-se encerrar com resultados limitados, pois outros membros do bloco fazem ouvidos moucos para com o desejo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em liderar o mundo do desenvolvimento.
Lula, aliás, sequer conta com o apoio do principal parceiro histórico do Brasil que também integra o G20, a Argentina. Sob o comando do direitista Javier Milei, Buenos Aires rejeita tudo que o Brasil defende. Se não conseguimos sequer liderar nosso entorno, reivindicar um papel ativo na formulação da ordem global para além de temas específicos é pura quimera. Estamos enxugando gelo.
Vinícius Rodrigues Vieira, Professor Associado de Economia e Relações Internacionais, Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP)
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