06 maio 2022

Rafael Villa: Integração regional enfrenta desafio institucional por não ser vista como política de Estado por governantes

Para professor de relações internacionais, a falta de integração da América do Sul não é um problema de governos de esquerda ou de direita, mas de falta de convergência de interesses e de visão conjunta para a região

Para professor de relações internacionais, a falta de integração da América do Sul não é um problema de governos de esquerda ou de direita, mas de falta de convergência de interesses e de visão conjunta para a região

Por Daniel Buarque

A posse de Gabriel Boric como presidente do Chile alimentou uma percepção de fortalecimento das esquerdas da América Latina, com uma promessa de maior integração da região. Apesar de um possível maior alinhamento de governos de esquerda no continente, não há garantias de uma aceleração do processo de integração, segundo o professor de relações internacionais Rafael Villa, da USP. 

Segundo Villa, “a experiência da primeira década do século mostrou que havia muitas dificuldades de convergência nos processos de integração entre os próprios governos de esquerda”. Para ele, o problema principal é a dificuldade em criar condições institucionais por parte dos governos na concepção de que a integração é um projeto de Estado, e não de governo.

Além disso, o professor avalia que é difícil pensar em uma nova “onda rosa”, de governos de esquerda, na região da mesma forma que houve no passado, pois os contextos político e econômico são muito diferentes.

Villa analisou os possíveis impactos da posse de um governante de esquerda no Chile nas relações com o Brasil. Segundo ele, apesar da falta de alinhamento entre o chileno e Jair Bolsonaro, não há motivos para esperar atritos ou mudanças nas já estabelecidas conexões entre os dois países. 

Leia a entrevista completa abaixo.

Daniel Buarque – O que a posse do presidente Gabriel Boric no Chile representa para o Brasil e para os seus interesses na região? 

Rafael Villa – No âmbito político, representa uma mudança importante no alinhamento que se havia dado entre o anterior governante, Sebastián Piñera, e o governo de Jair Bolsonaro. Ali vai existir um claro corte na relação entre os governos. De qualquer maneira, as relações diplomáticas continuarão dentro da normalidade. O Brasil e o Chile não têm grandes atritos políticos neste momento, fora essa diferença de visões políticas que caracterizam os dois governantes. Em outros aspectos, como relações econômicas e investimentos, também não vai haver uma mudança muito grande. Entretanto uma mudança de governo no Brasil, por exemplo, para uma para uma opção mais de esquerda ou centro-esquerda nas próximas eleições, pode representar uma maior aproximação em relação ao Chile em relação a processos de integração regional como o Mercosul ou um maior alinhamento desses países em organizações internacionais, como organização mundial do comércio ou o G20. Isso por enquanto não está na agenda, mas potencialmente poderá acontecer. 

Daniel Buarque – Boric fez acenos a Lula antes da sua eleição, o convidou para a posse, enquanto declarou que também queria ter boa relação com Bolsonaro, apesar das diferenças. Mas Bolsonaro não foi para a posse dele. No caso de uma reeleição de Bolsonaro, essas diferenças políticas podem ter um efeito negativo nas relações entre os dois países?

Rafael Villa – Politicamente, sim, pode afetar bastante o relacionamento entre Brasil e Chile. Se Bolsonaro for reeleito e persistir com posturas autoritárias, isso afetaria. Parece claro na agenda de política exterior de Boric o afastamento e a crítica a governos autoritários na América Latina, sejam de direita ou esquerda. O fato de ele ter sua origem na esquerda não o faz fechar os olhos ou deixar de criticar governos autoritários de esquerda na América Latina. E Bolsonaro, em um potencial segundo mandato, se continuar essa tônica autoritária com a qual ele se relaciona com a sociedade brasileira, sem dúvidas isso terá um custo político nas relações. 

Daniel Buarque – A posse de Boric no Chile se juntou ao que alguns analistas chamam de volta de governos de esquerda na América Latina. Acha que pode-se falar de uma nova onda rosa na América Latina como houve nos anos 2000. 

Rafael Villa – Pode ser verdade, porém os contextos são muito diferenciados. Quando emerge a primeira onda rosa, na primeira década do século, isso se fez num contexto em que as economias latino-americanas em geral cresciam muito e havia o boom de commodities, petróleo, gás, soja e cobre. Isso favoreceu uma certa política por parte desses governos. E isso fez com que houvesse um efeito em cascata, e a América Latina foi praticamente pintada politicamente de vermelho. Mas as condições agora são muito diferentes. Agora há um momento de crises econômica, política e de guerras. Então o tipo de governante “rosa” que poderia voltar não seria mais aquele aquele governante estilo Chávez, Morales, Corrêa, com uma linguagem não quase incendiária, com fortes doses de populismo. Levando em conta tanto o contexto político em que governantes aprenderam com erros do passado quanto os limites da atualidade, a situação é diferente. 

Daniel Buarque – Apesar desse contexto diferente, acha que essa conjunção de governos mais de esquerda pode voltar a falar de uma integração maior da América do Sul?

Rafael Villa – A integração tem sido perpassada nos anos da atual onda conservadora por uma clivagem ideológica. A Unasul, por exemplo, e o próprio Mercosul têm sido vistas por Bolsonaro e outros governantes sob uma ótica bastante ideologizada. Isso tem levado a um enfraquecimento do processo de integração. Ou a uma instrumentalização por parte de algum remanescente de esquerda, como no caso da Unasul ou do Grupo de Lima, que tinha como principal objetivo o questionamento do governo de Nicolás Maduro na Venezuela. Houve essa clara clivagem ideológica na visão da integração. E isso paralisou avanços mais substantivos no projeto de interação. 

Mas a volta de governos de esquerda não garante uma aceleração do processo de integração. A experiência da primeira década do século mostrou que havia muitas dificuldades de convergência nos processos de integração entre os próprios governos de esquerda. O problema da integração não é um problema de esquerda ou direita. É um problema de ir criando condições institucionais por parte dos governos na concepção de que a integração é um projeto de Estado, e não de governo, ou de ideologia. Enquanto não se entender isso, a integração continuará a passar por crises.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/nova-onda-rosa-na-america-latina-depende-do-brasil/

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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