24 julho 2025

Round 6, ultraliberalismo e a morte da imaginação

Fenômeno de audiência, a série da Netflix chega ao fim mais apelativa e com um desfecho que só entrega mais do mesmo

Foto: Divulgação

Lançada em 2021, a série coreana Round 6 (Squid Game) rapidamente se tornou um fenômeno de audiência, uma das mais assistidas do catálogo da Netflix em todo o mundo. Na trama, centenas de pessoas eram recrutadas para participar de uma disputa misteriosa. O vencedor receberia um grande prêmio em dinheiro. Mas, para a surpresa dos jogadores, tratava-se de uma gincana mortal. Quem não conseguisse completar as provas era executado.

Nesta disputa travada num ambiente fechado, uma ilha de localização secreta, desistir não era uma opção, a menos que a maioria estivesse de acordo. Parar implicaria voltar para casa sem nada. Conforme os jogos avançavam, a convivência entre os competidores ia se tornando tensa e violenta. Até onde pode existir esperança ou cooperação em um jogo que não se trata apenas do grande prêmio, mas de permanecer vivo?

‘O que a série coloca em evidência são vidas dilaceradas em uma sociedade em que a concentração de renda é cada vez maior, na qual a despeito da tecnologia, há mais pobreza, endividamento e desespero’

Round 6 lembra outras distopias como Battle Royale ou Jogos Vorazes. Mas, para além da carnificina, o que a série coloca em evidência são vidas dilaceradas em uma sociedade em que a concentração de renda é cada vez maior, na qual a despeito da tecnologia, há mais pobreza, endividamento e desespero. Diferente das produções citadas, os jogadores aqui não foram obrigados a entrar na disputa. Para boa parte, isso é indicativo de falta de alternativas, não de ambição desenfreada.

Round 6 enche os olhos com os cenários que lembram videogame e cores fortes, mas conquista pela tentativa humana de tentar formar laços de solidariedade para sobreviver a situações extremas – ainda que esses laços sejam temporários, já que no topo da pirâmide social não há lugar para muitos. Avança quem consegue usar o outro como escada, deixar para trás o aliado de ontem e, principalmente, quem não tem medo de sujar as mãos. Os mascarados de macacão rosa completam este cenário como capatazes: estão “apenas cumprindo ordens”, mas não deixam de criar mecanismos sórdidos de lucrar com os restos da tragédia.

‘Os super ricos. Eles estão lá para nos lembrar que aquele estilo de vida só é possível devido aos massacres, às vidas dilaceradas’

Diferente das lutas de gladiadores do passado, este não era um espetáculo para as massas. É um divertimento exclusivo, feito para os super ricos. Eles estão lá para nos lembrar que aquele estilo de vida só é possível devido aos massacres, às vidas dilaceradas. 

O final da primeira temporada acena para a possibilidade de vencer com o mínimo de padrões éticos em um sistema ultra competitivo e cruel. Mas, independente da consciência sobre as injustiças, das vitórias ocasionais, dos poucos laços de solidariedade que se podem construir num mundo de competições mortais, o jogo não para.

Democracia e revolta

O criador do programa Hwang Dong-hyuk disse em entrevistas que Round 6 foi concebida como uma minissérie, uma história fechada, sem planos para uma continuação. Mas, pressionado pelos fãs da série e pelo tilintar das moedas (ele declarou que não teve grandes lucros com a primeira parte), decidiu “voltar ao jogos” para mais duas temporadas. Metalinguagem pouca é bobagem. 

Assim, a segunda temporada chegou ao catálogo dando a impressão de que o jogador 456 finalmente viraria o jogo. Ou melhor, acabaria com ele. Quando descobrem estar numa disputa mortal, parte dos jogadores fica indignada e se recusa a seguir na disputa. Contudo, o descontentamento não é unânime. Mesmo compreendendo os riscos, boa parte quer permanecer no jogo. 

Diante dos porquinho cheio de maços de dinheiro exibido de forma esplendorosa,  os jogadores votam para decidir se irão embora com o montante acumulado até aquele momento ou se disputarão mais um jogo. A votação chega ao fim empatada, sendo decidida por um participante que sabemos de antemão ser um infiltrado.  

‘Vendida como uma expressão da vontade geral, a votação acaba se converte num meio de legitimar a opressão’

A questão do sufrágio é interessante por mostrar os limites desse expediente para a resolução de situações de injustiça/violência/terror, já que o comportamento eleitoral não é algo previsível. Há quem veja nesse instrumento uma possibilidade de libertação coletiva. Outros escolhem de acordo com seu próprio interesse. Também deve ser levado em consideração o fato de que as regras e circunstâncias em que a votação ocorre são determinadas por quem tem interesse que o jogo continue. Vendida como uma expressão da vontade geral, a votação acaba se converte num meio de legitimar a opressão.

Apesar da decepção, Seong Gi-hun não desiste. Soubemos na primeira temporada que o jogador 456 tem um passado de ativismo trabalhista e foi demitido após participar da ocupação de uma fábrica. A história do protagonista é uma referência à greve Ssangyong Motor 2009, na qual quase 2.600 trabalhadores ocuparam a fábrica durante 77 dias para protestar contra as demissões antes da polícia reprimir violentamente a greve.

‘Não surpreende que, uma vez que a saída “democrática” se mostra impossível, a resistência tome a forma de um levante’

Logo, não surpreende que, uma vez que a saída “democrática” se mostra impossível, a resistência tome a forma de um levante. Como não surpreende que alguns se voluntariem para morrer lutando ao invés de se entregar passivamente a um destino trágico. Que outros estejam tão amedrontados que, ainda que concordem com o levante, tenham medo de se juntar a ele. Nada disso explica o fracasso da rebelião, causado pelo monopólio dos mecanismos de vigilância e por um traidor infiltrado. 

Não somos cavalos?

A conclusão da história começa com a derrota do levante e a exposição dos corpos dos insurretos. Incentivados a lutar entre si, os jogadores caminham para o próximo jogo tal qual o gado caminha para o abate. A solidariedade criada pelos mais vulneráveis, sobretudo entre o grupo de mulheres, não é capaz de resistir à sanha das ambições individuais, que agora se revelam sem o menor pudor. Num ato final de afirmação de princípios, o protagonista se sacrifica para preservar a vida de um inocente. “Não somos cavalos”, diz aos apostadores antes de se entregar para a morte.

Não sabemos se este apelo à consciência dos milionários e do organizador dos jogos surte algum efeito, A trama é interrompida pela invasão da ilha, que é evacuada às pressas. Seis meses depois temos um vislumbre de final feliz. Um bebê órfão entregue aos cuidados do policial junto com o prêmio. Uma pequena paciente oncológica em remissão na companhia do pai, resgatado dos jogos por uma desertora do exército da Coreia do Norte (e do trabalho nos jogos). Reencontros de familiares separados. A filha do protagonista recebe a herança do pai.   

‘Antes de ser uma conclusão “realista”, o desfecho representa a morte da imaginação política’

Se por um lado a figura da criança representa a possibilidade de futuro, a cena final (que mostra que o jogo não acabou, apenas mudou de endereço) faz pensar em que futuro é possível nesse cenário. Antes de ser uma conclusão “realista”, o desfecho representa a morte da imaginação política. 

Em obras como O conto da aia, The Last of Us, Duna, Matrix, Mad Max ou The Fallout a derrocada do mundo como o conhecemos é seguida de uma reorganização do modo de vida e das resistências. Já o desfecho de Round 6 é um giro de 360 graus: tudo volta para o mesmo lugar. Quando isso acontece, a impressão é que não adianta resistir, porque nada vai mudar. As últimas palavras do protagonista perdem, então, o sentido. Continuamos sendo cavalos.  

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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