30 maio 2022

Saída de empresas estrangeiras da Rússia ecoa campanha de pressão contra o sistema racista do apartheid na África do Sul

Levantamento indica que cerca de mil empresas de outros países decidiram deixar a Rússia para pressionar o governo de Vladimir Putin a se retirar da Ucrânia, cessar ataques a civis e parar de reprimir os cidadãos russos que estão protestando contra a guerra. Ação corporativa concertada demonstra como as empresas podem alavancar seu poder de barganha em países estrangeiros

Levantamento indica que cerca de mil companhias de outros países decidiram deixar a Rússia para pressionar o governo de Vladimir Putin a se retirar da Ucrânia, cessar ataques a civis e parar de reprimir os cidadãos russos que estão protestando contra a guerra. Ação corporativa concertada demonstra como as empresas podem alavancar seu poder de barganha em países estrangeiros

Restaurante do McDonald’s em Kaliningrado, na Rússia

Por Stephen Bagwell e Meridith LaVelle*

O McDonald’s deu a muitos russos o primeiro gosto do capitalismo há três décadas. Agora, a gigante global de fast-food está deixando o país. A Starbucks também está de saída.

Ao todo, cerca de 1.000 empresas decidiram deixar a Rússia até agora, de acordo com um levantamento do professor de administração de Yale, Jeffrey Sonnenfeld.

Somos estudiosos de direitos humanos, economia política e relações internacionais. Em nossa opinião, essa ação corporativa concertada demonstra como as empresas podem alavancar seu poder de barganha em países estrangeiros – assim como países, incluindo os Estados Unidos, e organizações não governamentais como Anistia Internacional e Human Rights Watch tentam fazer.

Tornando a invasão mais cara

Além de pressionar a Rússia a sair da Ucrânia e cessar seus ataques a civis, empresas estrangeiras estão cobrando que o governo de Vladimir Putin pare de reprimir os cidadãos russos que estão protestando contra a guerra.

Por meio de uma combinação de retenção de fundos, venda de ativos e recusa a fazer negócios com clientes e empresas russos, corporações e investidores globais estão tornando a invasão de Putin na Ucrânia e a repressão doméstica mais caras. Mesmo após o término do conflito, pode haver mudanças maiores nos investimentos, dificultando a recuperação da Rússia.

Isso é especialmente verdadeiro devido à dependência russa das exportações de petróleo e gás. A invasão da Ucrânia está estimulando os importadores de combustíveis fósseis russos a encontrar alternativas.

No geral, estimativas recentes indicam a perda de centenas de milhares de empregos russos por causa dessa reviravolta.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/empresas-que-estao-deixando-a-russia-cedem-a-pressao-publica-mas-nao-estao-fazendo-diferenca-real/

Precedente sul-africano

Esse tipo de pressão do setor privado que visa melhorar as condições de direitos humanos não é nova.

Um claro precedente surgiu quando movimentos antiapartheid surgiram globalmente para protestar contra o sistema racista na África do Sul. Liderados por pessoas no Reino Unido, esses movimentos provocaram boicotes generalizados de produtos sul-africanos nas décadas de 1970 e 1980.

Resultados notáveis ​​incluíram a proibição de sul-africanos brancos de participar de eventos internacionais de críquete e rugby e forçar o banco Barclays a sair da África do Sul. Vemos ecos dessa campanha na proibição de uma proeminente ginasta russa por usar um Z, que simboliza o apoio à guerra da Rússia na Ucrânia.

Muitos governos impuseram sanções durante as décadas de 1970 e 1980, liderados por países europeus. O envolvimento dos EUA, por meio de uma lei aprovada em 1986 sobre as objeções do presidente Ronald Reagan, aumentou essa pressão econômica.

Muitos dos golpes na economia da África do Sul, no entanto, vieram de campanhas de desinvestimento lideradas em grande parte por grupos antiapartheid em universidades.

Esses grupos buscavam pressionar as instituições de ensino superior a vender ações e outros ativos em suas dotações vinculadas a empresas que faziam negócios com a África do Sul. Em 1990, mais de 180 faculdades e universidades americanas haviam vendido pelo menos alguns desses ativos. Esses esforços então se espalharam para os governos locais e estaduais e o setor privado. Mais de 200 empresas cortaram seus laços com a África do Sul.

O que as empresas de tecnologia estão fazendo

Os esforços internacionais para pressionar regimes abusivos para acabar com a violência evoluíram desde a era antiapartheid, refletindo o crescente papel da tecnologia nos negócios e na sociedade.

As empresas de tecnologia e redes sociais também buscaram, tanto na Ucrânia quanto na Rússia, proteger os direitos civis e políticos.

O Snapchat, por exemplo, desativou os recursos de mapa de calor de seus usuários localizados na Ucrânia para impedir que os militares russos pudessem localizar grupos de civis ucranianos.

Na Rússia, no entanto, pelo menos alguns desses esforços podem sair pela culatra.

O governo russo optou por bloquear o acesso de civis na Rússia ao Facebook e ao Twitter, depois que essas plataformas bloquearam a mídia estatal russa em seus sites. Essas são as principais plataformas que os dissidentes usam para documentar e compartilhar abusos de direitos por autoridades russas de forma rápida e eficiente para o público global. Além disso, os opositores russos de Vladimir Putin estavam usando cada vez mais as redes sociais para coordenar seus protestos e manifestações antes do início da guerra na Ucrânia.

Cortar esses serviços diminui muito a capacidade dos cidadãos russos de planejar protestos e compartilhar imagens desses eventos.

Novas rachaduras no apoio a Putin em casa

Campanhas globais de pressão são geralmente melhores em prevenir o início da violência do que em acabar com um conflito mortal. No entanto, mesmo quando essa pressão começa em tempos de guerra, ela pode limitar a gravidade dos tipos mais extremos de violência, como o genocídio, pesquisadores descobriram.

Essa abordagem parece funcionar melhor quando a pressão externa é associada a demandas de grupos domésticos, especialmente organizações seculares, culturais e religiosas que não estão engajadas na política, mas geralmente visam beneficiar a sociedade.

Embora essas organizações sejam geralmente fracas na Rússia, o país tem uma oposição política organizada – embora reprimida. Em fevereiro e março de 2022, mais de 14.000 pessoas foram detidas por protestar contra a guerra, segundo o OVD-Info, um grupo independente de monitoramento de protestos.

A maior prisão em massa da história pós-soviética da Rússia ocorreu em 6 de março de 2022, quando as autoridades detiveram 5.000 pessoas em quase 70 cidades que protestavam pacificamente contra a invasão da Ucrânia.

E novas rachaduras no apoio a Putin estão aparecendo.

Líderes empresariais russos, como o magnata Oleg Tinkov –que fundou um dos maiores bancos da Rússia– estão se manifestando, assim como funcionários do governo e membros da comunidade militar.

Boris Bondarev, diplomata da missão permanente da Rússia em Genebra, também renunciou, dizendo: “Simplesmente não posso mais compartilhar essa ignomínia sangrenta, estúpida e absolutamente desnecessária”.

Esses atos de desafio sugerem que há uma campanha crescente na Rússia para parar a violência na Ucrânia em um momento em que a pressão corporativa global certamente está incomodando Putin.

Mas, com certeza, ele tomou várias medidas para isolar a economia da Rússia antes de atacar a Ucrânia, incluindo estocar reservas estrangeiras, reduzir as importações de países ocidentais e aumentar o comércio com países como a China. Isso faz com que seja muito cedo para saber se o crescente êxodo corporativo fará uma grande diferença em termos de acabar com a violência russa.


*Stephen Bagwell é professor assistente de ciência política na Universidade de Missouri-St.Louis

Meridith LaVelle é doutoranda em ciência política e relações internacionais na Universidade da Georgia


Este artigo é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons license. Leia o artigo original.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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