04 outubro 2023

Saúde para uma vida mais plena e digna

O administrador Paulo Nigro entende que o investimento em Saúde é finito e limitado em um país de dimensões continentais como o Brasil. Apesar desse cenário desafiador, houve avanços significativos com a criação do SUS, um sistema que se baseia em princípios constitucionais como integralidade, universalidade e equidade. Diante disso, o articulista acrescenta que “somente após termos uma compreensão dessa visão macro, poderemos entender o contexto da Saúde suplementar hoje no país, assim como enfrentar os obstáculos que se apresentam, a fim de proporcionar uma saúde mais equânime e de qualidade para toda a população”

O administrador Paulo Nigro entende que o investimento em Saúde é finito e limitado em um país de dimensões continentais como o Brasil. Apesar desse cenário desafiador, houve avanços significativos com a criação do SUS, um sistema que se baseia em princípios constitucionais como integralidade, universalidade e equidade. Diante disso, o articulista acrescenta que “somente após termos uma compreensão dessa visão macro, poderemos entender o contexto da Saúde suplementar hoje no país, assim como enfrentar os obstáculos que se apresentam, a fim de proporcionar uma saúde mais equânime e de qualidade para toda a população”

Por Paulo Nigro*

Para compreender os desafios que o setor de Saúde enfrenta hoje, é necessário, em primeiro lugar, dar um passo atrás e analisar como o Brasil e o mundo estão lidando com o cenário socioeconômico. Somente após termos uma compreensão dessa visão macro, poderemos entender o contexto da saúde suplementar hoje no país e como enfrentar os obstáculos que se apresentam, a fim de proporcionar uma saúde mais equânime e de qualidade para toda a população.

Este texto foi publicado na edição 63 da revista Interesse Nacional. Clique aqui para ver a edição completa

Na área da saúde, devido à grande quantidade de variáveis que influenciam toda a sua cadeia, as últimas duas décadas testemunharam momentos de altos e baixos. Enquanto o setor trabalha para proporcionar atendimento a todos, ele também enfrenta desafios demográficos, como o aumento contínuo da população e o crescimento da expectativa de vida. Segundo o Banco Mundial, a expectativa de vida do brasileiro, em 2020, era de 74,01 anos, em contraste com os 65,98 anos registrados em 1990, há 30 anos.

Com as crises financeiras, muitas pessoas perderam seus empregos e, consequentemente, o acesso aos serviços de saúde privados. Embora o número de pessoas com acesso à saúde privada esteja crescendo, o país ainda enfrenta baixo ritmo de crescimento da economia e redução na criação de empregos formais, conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED).[1] O Produto Interno Bruto (PIB) tem mostrado um crescimento gradual, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No primeiro semestre de 2023, o PIB registrou um aumento acumulado de 3,7%.[2]

O valor arrecadado pelo PIB é um indicador importante do montante que o Governo terá disponível para investir em seu sistema de saúde. Quanto maior o valor total, maior será o investimento. Cerca de 9% do PIB brasileiro é alocado para a saúde privada, sendo que, desses, apenas 4% são destinados à saúde pública.[3]

O investimento em saúde é finito e limitado em um país de dimensões continentais como o Brasil. No entanto, mesmo diante desse cenário desafiador, houve avanços significativos na área de saúde, começando pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, com o objetivo de revolucionar o acesso à saúde no Brasil. Esse sistema passou a oferecer atendimento a todos os brasileiros de forma descentralizada, distribuindo responsabilidades entre as esferas federal, estadual e municipal. O SUS se baseia em princípios fundamentais em sua constituição: integralidade, universalidade e equidade. Já a saúde suplementar, como o nome sugere, é um complemento ao sistema de saúde público e deveria funcionar de forma simbiótica. Quanto mais pessoas são atendidas na saúde privada, menor é o impacto sobre a saúde pública.

Agora que expliquei mais sobre como chegamos até aqui, vamos dar aquele passo para frente e entrar mais a fundo no cenário da saúde privada no país, formada por planos de saúde (saúde suplementar) e prestadores de serviços privados (inclusive filantrópicos). De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em 2022, o setor de saúde suplementar arrecadou R$ 237,6 bilhões em receita com as mensalidades. No entanto, suas despesas assistenciais alcançaram R$ 208,2 bilhões no mesmo período. A diferença entre esses valores é muito pequena para gerenciar adequadamente os mais de 50 milhões de beneficiários que pagam para ter assistência médico-hospitalar.

A reserva técnica dos planos de saúde

Um aspecto que agrava ainda mais esse cenário preocupante é o fato de que parte da receita das operadoras de saúde provém dos retornos financeiros de investimentos feitos com a reserva técnica dos planos de saúde. Em outras palavras, a ANS exige que cada plano de saúde mantenha uma reserva técnica separada, contendo recursos suficientes para garantir o pagamento de prestadores de serviços e a continuidade da assistência aos beneficiários, no caso de a empresa enfrentar dificuldades financeiras. Os montantes retidos nessa reserva são investidos, gerando rendimentos que se somam às receitas declaradas pelas operadoras.

Portanto, um plano de saúde pode apresentar um resultado operacional deficitário em sua operação diária, mas seu balanço geral pode parecer positivo graças aos investimentos provenientes da reserva técnica. Isso pode mascarar a realidade da situação ou adiar possíveis problemas de desestruturação na saúde suplementar. No primeiro semestre de 2023, as operadoras de saúde reportaram um resultado operacional negativo de R$ 4,3 bilhões. O setor acumula oito trimestres consecutivos de déficit operacional desde 2021, resultando em um prejuízo acumulado ao longo desse período que ultrapassa a marca negativa de R$ 18,7 bilhões.[4]

As causas das despesas elevadas dos planos de saúde já são conhecidas, e há muito tempo se vem emitindo sinais de alerta de que o que estamos presenciando hoje poderia acontecer. O uso inadequado dos planos de saúde tornou-se tão arraigado que as operadoras estão tendo dificuldades em quebrar esse ciclo, que prioriza o tratamento de doenças complexas em detrimento da prevenção e da assistência primária. Portanto, estamos diante de um modelo insustentável e que deve ser repensado com urgência.

O que se destaca atualmente na assistência à saúde não é simplesmente a prestação de serviços, mas sim a entrega de valor ao paciente. Isso vai além de realizar exames; envolve acompanhar o paciente para oferecer o cuidado adequado, na medida certa, no momento correto e com o custo apropriado. A esse conceito damos o nome de value-based healthcare (VBHC), um modelo de assistência à saúde no qual os provedores são remunerados com base nos resultados clínicos dos pacientes. Isso fortalece uma abordagem de cuidado integral, promovendo a saúde, reduzindo a ocorrência de doenças crônicas e auxiliando as pessoas a viverem vidas mais saudáveis, sempre com base na medicina baseada em evidências.

Abordagens diversas para o cuidado integral

Existem várias abordagens que podem ser adotadas a partir desse modelo de VBHC. No Hospital Sírio-Libanês, por exemplo, identificamos 18 linhas de cuidado predominantes nas quais cada resultado clínico é mapeado em processos assistenciais, visando manter desfechos clínicos mais positivos a custos acessíveis. Monitoramos os resultados e o cuidado aos pacientes não apenas durante a internação hospitalar, mas também após a alta. A palavra-chave aqui é “pertinência.” Qual tratamento proporcionará o melhor resultado clínico para o paciente? Existem tratamentos menos complexos que podem oferecer o mesmo resultado a um custo menor? E se o tratamento mais econômico não for a opção mais indicada neste momento, qual é o momento certo para aplicar terapias mais dispendiosas? Todas essas perguntas estão sendo abordadas no mapeamento de processos para cada quadro clínico, um elemento fundamental do VBHC.

No Sírio-Libanês, fomos pioneiros em dar um passo atrás para tentar quebrar o ciclo e criar um futuro mais equilibrado para o setor de saúde. Criamos o programa “Cuidando de Quem Cuida,” no qual os funcionários do hospital e seus familiares são atendidos por um time multidisciplinar de saúde da própria instituição, oferecendo consultas, exames e cirurgias. Com base na experiência interna com nossos colaboradores e seus familiares, desenvolvemos o programa de Saúde Populacional, uma solução que surgiu da necessidade de reduzir e controlar os gastos com saúde sem perder a qualidade assistencial. Partindo do programa piloto “Cuidando de Quem Cuida” e dos resultados positivos obtidos na atenção primária a conectando e integrando com outros níveis assistenciais, esse projeto evoluiu para se tornar um produto disponível para empresas contratantes em todo o mercado. Atualmente, com presença em São Paulo, Brasília e outros locais do Brasil, atendemos a cerca de 180 mil vidas, contando com 11 ambulatórios internos aos clientes e unidades externas. Continuamos a perpetuar o legado de excelência técnica do Hospital Sírio-Libanês, agora como uma plataforma digital de saúde abrangente e contínua, que facilita a entrega do cuidado que as pessoas desejam com o que elas realmente precisam.

O enfoque na saúde populacional é um dos caminhos que podemos seguir para auxiliar no controle dos custos e proporcionar cuidados de excelência à população, mas não é o único perseguido pelo Sírio-Libanês. Dentro das limitações geográficas do país, levar a referência de qualidade em saúde da nossa instituição a mais brasileiros requer uma abrangência para além dos seus muros. Nesse contexto, a pandemia de Covid-19 impulsionou o uso da telemedicina no Brasil, superando as barreiras físicas. A adoção da telemedicina suscitou questionamentos do Conselho Federal de Medicina (CFM), porém, durante a pandemia, sua autorização foi ratificada por meio de um decreto de estado de emergência e, posteriormente, em dezembro de 2022, foi regulamentada como Lei da Telemedicina, estendendo essa facilidade ao SUS.

Atualmente, dados da Saúde Digital Brasil (SDB) revelam que entre 2020 e 2021, mais de 7,5 milhões de atendimentos foram realizados por meio da telemedicina no Brasil, com mais de 52,2 mil médicos conduzindo consultas a distância. O índice de resolução dos atendimentos atingiu 91%, sem a necessidade de deslocamento do paciente para o pronto-socorro. A telemedicina surgiu como uma tecnologia que nos permitiu ampliar a abrangência da assistência à saúde e representa uma das potenciais soluções para expandir a implementação do VBHC, controlar os custos e assegurar assistência à saúde para um maior contingente de brasileiros. Ela pode ser uma ferramenta transformadora, mas depende de uma estratégia de cuidado que almeja maximizar a entrega de valor.

O avanço da telemedicina no extenso Brasil

Dentre as vantagens da telemedicina, destaca-se a possibilidade de estabelecer parcerias entre hospitais filantrópicos privados de referência para apoiar os profissionais que atuam na rede pública de Unidades Básicas de Saúde (UBS) em áreas com escassez de médicos especialistas. Além das teleconsultas médico-paciente, essa tecnologia aproxima os profissionais de saúde por meio de videoconferências para discutir casos específicos, um procedimento conhecido como teleinterconsulta. O Sírio-Libanês, considerado hospital de excelência, juntamente com outros cinco hospitais filantrópicos no Brasil, integra o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde, Proadi-SUS, criado em 2009, com o objetivo de apoiar e aprimorar o SUS por meio de projetos de capacitação de recursos humanos, pesquisa, avaliação e incorporação de tecnologias, gestão e assistência especializada demandados pelo Ministério da Saúde.

Esses hospitais investem recursos no SUS correspondentes à isenção de tributos como PIS, Confins e Cota Patronal do INSS, por meio de projetos e da transferência de sua expertise em temas de saúde. Esses projetos levam à população a experiência desses hospitais em iniciativas que atendem às necessidades do SUS. Dentre os principais benefícios, destacam-se a redução das filas de espera, a capacitação de profissionais, a realização de pesquisas de interesse da saúde pública para atender às necessidades atuais da população brasileira, a gestão do cuidado apoiada pela inteligência artificial e a melhoria da gestão de hospitais públicos e filantrópicos em todo o Brasil.

Um dos projetos dos quais o Sírio-Libanês participa é o TeleNordeste, um programa colaborativo entre diversos hospitais que integram o Proadi-SUS. Esse programa oferece assistência médica especializada em todos os estados da região Nordeste do Brasil por meio da telemedicina. O Sírio-Libanês atua nos estados do Ceará e da Bahia, oferecendo teleinterconsultas em diversas especialidades, como endocrinologia, neurologia, psiquiatria, cardiologia, reumatologia, ortopedia, pediatria, ginecologia, urologia, além de teleinterconsultas com nutricionistas e enfermeiros.

O projeto amplia o acesso da população local a especialidades médicas e promove a capacitação de profissionais no apoio diagnóstico e terapêutico por meio da troca de conhecimento entre eles. Esse projeto colaborativo já realizou mais de 12 mil atendimentos, beneficiando mais de 1,5 mil unidades de Saúde da Família e ativando 1,4 mil UBS. O projeto apresenta uma taxa de evitação de encaminhamento para atendimento presencial com especialista superior a 85%. O Sírio-Libanês oferece suporte a 700 UBS no interior da Bahia e do Ceará para aprimorar a assistência e reduzir os tempos de espera das consultas, bem como evitar o encaminhamento desnecessário de pacientes.

Outro projeto do Proadi-SUS que se baseia na telemedicina é o TeleUTI, que estabelece uma conexão entre especialistas dos hospitais de excelência e equipes multiprofissionais que atuam em Unidades de Terapia Intensiva (UTI), especialmente aquelas que não contam com especialistas em medicina intensiva. O projeto visa melhorar o desfecho clínico dos pacientes, reduzir o tempo de internação e diminuir a taxa de mortalidade. São oferecidos treinamentos contínuos para os profissionais dos hospitais participantes, visando à implementação de protocolos e diretrizes de cuidados em UTIs baseados nas melhores práticas.

O TeleUTI contribui para uma expressiva redução nas taxas de mortalidade das UTI´s atendidas pelo programa. Ao mesmo tempo, promove utilização eficaz dos recursos públicos e a redução de desperdícios financeiros no SUS, ampliando o acesso de mais pacientes aos leitos de UTI e aumentando a segurança dos atendimentos. O Sírio-Libanês já prestou assistência a 4,5 mil pacientes, realizou 17,4 mil discussões clínicas e apoiou cerca de 900 profissionais de saúde do setor público em UTIs dos estados do Acre, Maranhão, Pará e Piauí no último ano. Em colaboração com outros projetos do Proadi-SUS, há o acompanhamento de mais de 800 leitos adultos em UTIs de mais de 80 hospitais em todo o país.

Há muito a ser feito para transformar o setor de saúde no Brasil, especialmente no caso da saúde suplementar. Como disse anteriormente, torna-se imperativo e urgente um repensar completo do ecossistema da saúde para que os diversos elos da cadeia se unam na busca de um novo modelo que seja economicamente sustentável e que, sobretudo, mantenha a “barra alta” da qualidade e segurança da assistência. Os exemplos citados acima são caminhos comprovados que, se forem utilizados combinando tecnologias emergentes, vontade política e orientação por dados, medidos pelas métricas que privilegiem a pertinência e a integridade, ficará cada vez mais possível garantir que a assistência médica seja um direito de todos e promova o bem-estar e a qualidade de vida para uma vida mais plena e digna a todos.  


Paulo Nigro* é engenheiro mecânico, com MBA em administração e formação executiva pela International Institute for Management Development e pela Singularity Education Group. Foi CEO global e vice-presidente em instituições como Tetra Pak, Aché, Intercement e GranBio. Desde 2021, é CEO do Hospital Sírio-Libanês


Referências

[1]
Cenário Saúde – Volume 8, No 3 de 2023 – Abramge Associação Brasileira de Planos de Saúde. Disponível em: <https://abramge.com.br/portal/index.php/pt-BR/biblioteca-abramge/biblioteca-cenario-saude/1265-cenario-saude-volume-8-n-3-de-2023>. Acesso em: 1 set. 2023.

[2]
 PIB cresce 0,9% no 2o trimestre de 2023 | Agência de Notícias. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/37773-pib-cresce-0-9-no-2-trimestre-de-2023>. Acesso em: 1 set. 2023.

[3]  PIER.WS. Representantes do SUS debatem financiamento da saúde — Setor Saúde. Disponível em: <https://setorsaude.com.br/representantes-do-sus-debatem-financiamento-da-saude/>. Acesso em: 1 set. 2023. ‌

[4]
Posicionamento FenaSaúde sobre o resultado econômico-financeiro do 2o trimestre das operadoras. Disponível em: <https://www.segs.com.br/seguros/382997-posicionamento-fenasaude-sobre-o-resultado-economico-financeiro-do-2o-trimestre-das-operadoras>. Acesso em: 5 set. 2023.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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